A estrutura reinol na colônia ou Héracles versus a Hidra de Lerna

Sandro Alex de Souza Simões
Procurado Federal Especializado- INSS, Professor de Teoria da Constituição e História do Direito no Centro Universitário do Pará – CESUPA,Mestre em Direito Público- UFPA

O significado do Governo Geral e da Administração na Colônia

Após uma experiência de cerca de 40 anos de colonização espontânea e exploração incipiente e assistemática do litoral brasileiro, o que produziu resultados pífios para a metrópole, Portugal viu-se instado a promover uma tomada de decisão quanto ao uso possível da colônia.

É indiscutível o móvel da necessidade de defender a nova terra face aos cada vez mais invasivos planos e avanços das potências marítimo-coloniais em ascensão, ávidas a questionar por sua ação a partilha do “novo éden” feita por Portugal e Espanha, sob chancela papal. Aí Holanda e França tem papel destacado.

As dificuldades da exploração da nova terra para Portugal são visíveis desde o início, não somente pela instância dos motivos de ordem prudencial do discurso do Velho do Restelo (1), mas também pela embrionária definição dos papéis e construção da burocracia estatal lusitana, pois se era ao Estado que incumbia desempenhar a tarefa de articular e induzir a expansão ultramarina como se viu, precisaria estruturar-se administrativamente para tanto.

O tormentoso desafio historicamente posto a Portugal era, portanto, consolidar-se enquanto nação e Estado, ao mesmo tempo que expandia-se sobre domínios incivilizados. Eram os mesmos Estado e legislação lusitanos ainda úmidos, qual argila recentemente moldada, que a metrópole pretenderia implantar na colônia. A cautela das quatro décadas iniciais foi também, esse é o argumento, fruto não apenas da indefinição das vias de exploração, mas um problema de mecanismos reais e formalizados para tomada de decisão. É apenas quando o empreendimento comercial que impregna o caráter quase que integral das grandes navegações no século XV passa a ser, também, uma ação de governo que se fará a transição dos discursos de feitorias e estancos para os planos de organização centralizada pela coroa.

Agora é urgente descerrar a idéia de governo tal como pode-se, anacronicamente, compreende-la nesse contexto. Está-se falando de uma Monarquia que, por mais forte que progressivamente venha a ser, ainda depende de inúmeras associações de forças capazes de, se a um passo realizar-lhe os projetos, doutro impor-lhe agendas e perfilhar-lhe as ações de maneira a fazer do Estado mais um discurso de legitimação de práticas privadas e antigas travestidas de novo, que propriamente uma nova realidade.

O princípio da colonização portuguesa orientada deu-se sob a égide das capitanias hereditárias, experiência bem sucedida na Madeira e Açores, baseada em vetusto instituto de direito visigótico (2) como o Foral. Tratava-se de um sistema de povoamento, exploração e defesa do território sustentado pela cessão da propriedade ao particular. O domínio da Coroa sobre a colônia estaria fundado somente, de princípio, nas relações de vassalagem estabelecidas entre os donatários e o Rei, o que seria uma mentalidade natural para um país de tradição legal incontrastavelmente medieval. O Abade RAYNAL (1998:43) descreve o sistema já em 1770:

O governo concedeu sucessivamente àqueles que lhe solicitavam, a liberdade de conquistar um espaço de quarenta ou cinqüenta léguas nas costas, com extensão ilimitada no interior das terras. Sua carta autorizava-os a tratar o povo escravizado da maneira que lhes conviesse. Podiam dispor do solo invadido e favor de portugueses que quisessem faze-lo produzir; o que a maioria deles fez, mas por três gerações, somente e, mediante alguns tributos. Esses grandes proprietários deveriam gozar todos os direitos reais; excetuando-se somente a pena de morte, a fabricação de moedas e o dízimo, prerrogativas que a Coroa reservava para si. Para perder feudos tão úteis e tão honoráveis, era preciso descuidar-se de seu cultivo, deixa-los sem defesa, não ter filhos homens ou ser culpado de algum crime capital.

É daí que nasce a discussão célebre e vez por outra rediviva da experiência feudal brasileira. A existência de extensos poderes administrativos e jurisdicionais aos senhores donatários, a função militar, as rendas, enfim, o conjunto dos poderes dos capitães ligados à terra é evocativo da experiência européia de feudalismo, ainda que Portugal não seja seu modelo por antonomásia.

Não é pertinente ao presente tópico a exposição dos principais embates do problema, mas é relevante afirmar que por mais que o sistema de capitanias possua elementos que o distanciam decisivamente da experiência feudal estrita, tais como a própria existência da metrópole e o pacto colonial, além da ausência de um estatuto jurídico de nobreza, Portugal transmitirá por via da legislação à colônia uma cunha medieval, assim como travará batalhas legislativas e políticas no Brasil para defenestrar tendências localistas típicas da “força centrífuga” do feudalismo.

As cartas de doação encarregavam o Rei de um protetorado sobre as possessões cedidas, até por ser o monarca português também o Grão-Mestre da famigerada Ordem de Cristo. Elas estabeleciam um contrato enfitêutico, regulando as obrigações dos donatários com a Coroa. Os forais eram as cartas de privilégios e regalias dos donatários. Esclarece MARTINS JR. o rol característico dos direitos dos donatários, em regra constantes dos forais (1979:104):

Estes receberam com as capitanias (que eram vinculadas as suas famílias e, salvo o caso de traição à coroa, deviam passar indivisivelmente ao herdeiro mesmo feminino) os títulos de capitão e governador e os direitos de: fundar vilas, concedendo-lhes foros especiais e nomeando-lhes governadores, ouvidores, meirinhos, etc; delegar a indivíduos de sua escolha a alcadaria das ditas vilas, tomando-lhes juramento de fidelidade; prover, mediante pensão de quinhentos réis por ano, os ofícios de tabeliães; julgar, sem apelação nem agravo, os feitos cíveis de valor não excedente a cem mil réis, e as causas crimes até às penas de morte natural para peões, escravos e gentios e de degredo e multa de cem cruzados para as pessoas de condição superior (…); apurar as listas dos homens bons incumbidos de eleger os juízes e mais oficiais dos conselhos das vilas; dar sesmarias aos cristãos que as pedissem com o encargo único do tributo do dízimo; cativar índios para serviço seu e preenchimento do seu pessoal de marinheiros, podendo mandar vende-los em Lisboa até um certo número por ano; finalmente, cobrar o dízimo dos quintos dos metais e pedras preciosas, a meia dízima ou vintena de todo o pescado e do produto do pau-brasil exportado para o reino, a redízima dos produtos da terra ou o dízimo de todos os dízimos, etc.

O efeito inercial que a incorporação da tradição localista terá sobre a cultura político-administrativa brasileira é poderoso. Destacam isso, dentre outros, FAORO e BUARQUE DE HOLANDA. Este chega a afirmar, a título de demonstração do argumento de seu “homem cordial” (3), que (1995:146)…

…só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses.

É nesse universo de tendências localistas, para as quais as capitanias representavam-se mutuamente, coutos e homizios (4), que a coroa procurou representar sua vocação política centralizadora, ou melhor seria dizer, coordenadora.

Não dispensa muitos esforços a compreensão de que o isolamento em que as capitanias tendiam a viver, seja por razões culturais de natureza medieval, seja pelas contenções geográficas, não contribuía ao melhoramento da exploração da colônia e seu povoamento.

O próprio desafio do projeto de exploração do Brasil impunha fosse a terra povoada, dada a vulnerabilidade do extenso litoral, bem como a exigência de que o engenho humano pudesse aproveitar a madeira e o solo abundantes.

Para tanto, a imperiosa necessidade da coroa assumir um papel de coordenação nas ações da colônia, pelo bem mesmo do melhor rendimento do comércio como, já citado em outro capítulo, pudesse valer-se da pujança das relações comerciais para fortalecer-se pela exação. È de notar-se que a colônia representou a oportunidade para que a coroa portuguesa definisse para si uma função de governo de liderança, ocupando espaços de normatização, de incentivo e de coordenação que os particulares ou não teriam condições, ou interesse de assumir. A comunicação entre as capitanias e execução de projetos comuns era uma dessas tarefas. A defesa articulada do litoral era outra, assim como o desbravamento dos limites para o continente. HESPANHA (1994:496) afirma que a expansão permitiu à coroa:

Dispor de novos ofícios e cargos, civis e militares; atribuir direitos a participar do comércio das índias. Dispor de novos rendimentos com base nos quais se concediam tenças e juros, meios de retribuição vicariantes das antigas concessões fundiárias; utilizar uma nova simbologia do poder, remetendo para o “domínio imperial” ou “mundial” (v.g. esfera armilar, título real, utilização de animais exóticos em dádivas ou embaixadas. Como dispositivo disciplinador – pela positiva, pelo prémio- da nobreza, a expansão vem desempenhar o mesmo papel que, até o séc. XIII, tinha sido desempenhado pela reconquista.

É claro que em quase todas essas ações o concurso da nobreza, dos comerciantes ou da Igreja serão indispensáveis. Mas isso não oblitera que a coroa passa de uma posição de mera expectadora a uma força de equilíbrio e decisão entre os atores políticos.

Dessa forma, em 1548 o Rei Dão João III dá regimento a Tomé de Sousa para que venha instalar na Bahia o Governo Geral e com ele vieram Antônio Cardoso de Barros, como Provedor da Real Fazenda e Pero Borges de Sousa, Ouvidor Geral. Ainda que os termos dos regimentos dêem a clara noção de que a metrópole não tinha real noção do que fazer com a colônia e quais os instrumentos que lhe permitiriam melhor coordenar as ações dos donatários, é notável a intenção de transversalizar o poder da coroa por sobre o dos capitães gerais e tornar a colonização dirigida pela coroa um modelo a ser seguido pelas demais colônias.

Afirma ROCHA POMBO (1953:157) sobre os objetivos do Governo Geral:

…uniformizar a administração de todo o país; corrigir o arbítrio dos capitães-donatários e de seus loco-tenentes. E os desmandos e abusos praticados contra o gentio; regular as relações entre as diversas capitanias, submetendo os donatários a uma autoridade superior tendo sede no próprio país; expelir os contrabandistas, tornando efetiva e rigorosa a guarda da costa; amparar os donatários, tanto contra insurreições de indígenas, como contra assaltos de piratas ou investida de intrusos; instituir justiças menos ilusórias que pusessem mais ordem na vida das colônias; ativar a conquista e o povoamento; reprimir a indisciplina reinante em todas as capitanias: em suma – organizar a política portuguesa na América.

A carta de nomeação de Tomé de Sousa que data de 7 de janeiro de 1549 está plasmada pela doutrina publicista coimbrã que atribui ao rei as prerrogativas da res publicae. FAORO (1996:145), com razão faz notar um aspecto relevante de tal documento consistente na idéia de que a carta distingue entre poderes patrimoniais e públicos estabelecidos aos donatários, sendo que os primeiros, por sua natureza, é que podiam ser revogados pelo rei. De qualquer forma, impende observar que uma função pública típica como a jurisdicional, por exemplo, não se modifica em quase nada com a instalação do Governo Geral permanecendo, assim, até pelo menos a instalação efêmera da Relação da Bahia (1609) a função de decidir conflitos e impor penas legitimada pelos respectivos forais e sendo exercida pelos capitães-donatários.

A Relação da Bahia (1609-1626 e depois de 1652-1751) e as outras duas Ouvidorias Gerais criadas no Rio de Janeiro (Alvará de 5 de junho de 1619) e a do Maranhão (Alvará de 7 de novembro de 1619) não serão capazes, nem formalmente, de alcançar o universo dos conflitos de ordem jurídica no período. A própria imprecisão na definição das funções, derivada seja da generalidade e inadequação dos regimentos, da ignorância dos operadores ou da profusão crescente da legislação local, era amiúde a pedra de toque para constantes confrontos entre os servidores régios.

Não se pode olvidar nesta altura que como bem adverte LOPES (2000) a natureza da legislação medieval (tal como o eram as ordenações no seu universo feudal) estava mais orientada para por o Rei como a autoridade habilitada para resolver conflitos de competência (Estado-jurisdição), aliás provocados por ele próprio em última instância, do que para tornar as soluções claras e facilmente aplicáveis. O rei por legislar e julgar assume um papel relevante ao lado de outras várias autoridades com poder impositivo, mas por credenciar-se em razão do discurso de soberania no poder “legítimo”, colocará a si próprio no centro da justa decisão de conflitos entre os demais atores sociais tradicionais. Esse será o diferencial de seu papel que abrirá os caminhos para uma efetiva centralização, paulatinamente.

Assim, por exemplo, era comum no próprio final do século XVII que a metrópole tivesse de intervir no diálogo entre os Governadores e a Relação da Bahia, como bem demonstra o caso escandaloso do “Braço de Prata” narrado por SCHWARTZ (1979:221) (5). Os conflitos com as Câmaras foi também comum pelo menos até 1696, quando os Desembargadores passaram a nomear os juízes antes eleitos por aquelas. Representativo disto é a própria extinção da Relação da Bahia por interesse direto e ingerências da Câmara daquela cidade junto à corte. Fica claro na visão de SCHWARTZ que a magistratura, ainda que profissional, não se distanciava do ambiente das relações pessoais fortemente envolvente da colônia. É de se crer que se tal realidade era presente na sede da Relação, do Governo Geral e em uma capitania habitada e explorada continuamente, mais dependentes dos laços familiares e locais estaria a Administração ao afastar-se para o interior. Os próprios órgãos da burocracia profissional eram resistentes a essa interiorização pelas condições funestas e insalubres dos transportes e acomodação. Pontifica a esse respeito SCHWARTZ (ob.cit.:204):

Os desembargadores enviados de Salvador para conduzir investigações no sertão relutavam em deixar os confortos da capital e, quando finalmente iam nestas missões, encontravam dificuldade em obter comida e pousada no interior. Essas condições contribuíram para que o interior continuasse sem lei e fez com que as palavras “sertão” e “esconderijo” praticamente fossem equivalentes.

Em acréscimo CÂMARA (1964:26) é preciso ao ressaltar tais problemas de integração do sertão, senão vejamos:

Salienta-se que os recursos para os juízes da coroa da Bahia e Rio de Janeiro, demonstraram uma triste e ruinosa experiência, porquanto possível não seria provê-los útil e oportunamente. Em verdade, os vexames sofridos pelos jurisdicionados moradores a centenas de léguas, com acesso através de caminhos e veredas quase intransitáveis, cortados de rios caudalosos, resultando em trabalhos superiores às forças e possibilidades humanas, além de despesas fora do alcance dos interessados, teriam, segundo as informações, conduzido a situações insuportáveis, ensejando a usurpação de bens temporais, inclusive por parte de alguns juízes eclesiásticos, esquecidos, assim, das obrigações econômicas, e preceitos de Direito Natural e divino. Tais obstáculos, muitas vezes intransponíveis, convertiam os conflitos emergentes numa perene injustiça sem qualquer possibilidade de reparação.

A solução ao problema, para o qual, decerto, não faltava informação à coroa, viria pela criação da Junta de Ouvidores criada pelo Alvará de 18 de janeiro de 1765. A intenção do diploma era estabelecer procedimento e instituições que pudessem aviar os incidentes recursais, desafogando a Relação e aproveitando as estruturas mais desconcentradas das ouvidorias nas capitanias. Esse é um exemplo que permite a demonstração dos argumentos deste capítulo. Deter-me-ei nele, por enquanto.

Em primeiro lugar, é unânime a opinião dos problemas estruturais que emperravam as Relações, a tal ponto que não raro era melhor esperar provimento da Casa de Suplicação que da Relação da Bahia, seja pela dificuldade de acesso, seja pela excessiva demora nos julgamentos desta corte. De Belém era mais expedita e segura a viagem para Lisboa que para São Salvador. SCHWARTZ na obra já aludida aduz que também as atribuições dos desembargadores irá crescer em imponderável progressão desde a reinstalação da corte baiana em 1652 em diante. Era useiro que eles recebessem tarefas extraordinárias e missões que os obrigassem ao deslocamento ou atribulassem, mais ainda, as funções jurisdicionais em uma malha de atribuições administrativas. No início do século XVIII era dever da Relação determinar o preço do açúcar! (6)

Em segundo lugar, o aludido Alvará de 18 de janeiro de 1765 determinava que os membros os quais deveriam compor tais juntas de ouvidores deveriam ser bacharéis, o que obstaculizava imensamente a sua execução, dado que no Brasil não havia nenhuma universidade, aos moldes da América espanhola, e o acesso a Coimbra era estreito para as proporções demandadas na colônia. A crer em CÂMARA (ob.cit.:25):

As inúmeras questões políticas, legislativas, administrativas a solucionar, talvez justifiquem a ausência de providências imprescindíveis. Não deixou, entretanto, o poder real de tentar soluções para os casos mais em evidência, mais prementes, deles conhecendo, ao menos segundo o permitia a contingência, numa época em que tudo era problemático, desde os transportes às longínguas paragens, até o provimento dos cargos, os quais, pelas tremendas dificuldades e falta de condições locais, não seduziam, como é óbvio, candidatos com qualidades para missões relevantes, mas sem compensações, sem atrativos de qualquer ordem. O provimento e sua aceitação equivaliam, muitas vezes, a uma espécie de degredo.

É de supor razoavelmente o fracasso das iniciativas dependentes da titulação letrada, mormente quando o objetivo era a integração do continente e dos pólos mais ermos do poder geral na própria costa brasileira. Mesmo tentativas como as de 1698 e 1700 (7), as quais recomendavam a presença de juízes ordinários de cinco em cinco léguas para dentro no sertão falhavam quanto ao recrutamento, pois ainda que não houvesse a exigência de que fossem os juízes ordinários letrados, era inconveniente que fosse analfabeto. A coroa chegou a autorizar, segundo SCHWARTZ (ob.cit.:205) que se os escrivães fossem alfabetizados, estariam dispensados da exigência os juízes, mas tanto uma quanto outra eram exigências que esbarravam na mesma escassez.

Em terceira e última dessa ordem de considerações, é uma hipótese clássica da sociologia judiciária aquela de que o processo de burocratização e integração do Estado moderno faça-se na exata proporção do povoamento e da urbanização. Os ambientes urbanos são catalizadores do letramento, da especialização funcional e são espaço distinto daqueles em que os potentados locais do feudalismo construíram-se. Em verdade, a fragilização dos ambientes tradicionais constituídos pelas comunidades pode ser erigidos como um dos fatores que permitiriam as condições necessárias para a penetração do direito oficial.

Esquematicamente, estão presentes até aqui na argumentação do capítulo elementos desfavoráveis a essa implantação, sejam eles: a) a dificuldade geográfica da integração do território; b) a base localista da colonização pelo menos nos dois primeiros séculos da colônia; c) a falta de especialização e o analfabetismo funcional; d) o interesse dos potentados locais no uso da jurisdição local, mais facilmente controlável, em oposição a um sistema desconhecido regido por regras inacessíveis ao maior número e bastante custoso.

HESPANHA (1994:444) vem resumir as características do mundo jurídico não-oficial:

a)Capacidade reduzida de recurso à coação, pelo que as decisões se apóiam fundamentalmente sobre o assentimentos das partes;

b)Institucionalização por meio de órgãos pouco especializados e não burocráticos (momeadamente, não profissionais e não letrados); mas, em contrapartida, decalcados nos equilíbrios políticos profundos da comunidade e, por isso, dotados de um grande prestígio social;

c)Flexibilidade processual, quer quanto ao recorte do caso sub judice, quer quanto à legitimidade para intervir na discussão;

d)Grande facilidade no acesso à justiça;

e)Oralidade;

f)Normas vagas, particularizáveis, que possibilitam seu afinamento no decurso da discussão e uma alargada margem de negociação;

g)Decisões do tipo compromissório ou de mediação, em que nenhuma das partes é completamente sacrificada.

Dessa maneira, o grande desafio da Administração colonial residia na formidanda tarefa de instalar o governo efetivo da coroa sobre a colônia. Uma mera decretação e a atribuição de regimentos a quem quer que seja não tem o condão de submeter ou contornar aquilo que poderíamos chamar de “condições reais de governo”, quais sejam, como já referido, a estrutura burocrática, a qual depende diretamente da especialização, as condições de povoamento e urbanização, aptas a distanciar as relações intersubjetivas e tornar tênues (ao menos tendencialmente) as relações familiares e de amizade, cancro tão ominoso na gênese do poder público brasileiro. Nesse diapasão, a sustentação desta estrutura faz-se ou deve-se fazer pelo edifício tributário, por si só, já fonte suficiente de embates e degeneração e cuja formação ensejaria uma análise bastante profícua sobre os caminhos do desenvolvimento do Estado no Brasil.

Nesse trabalho, adotaremos um outro objeto para a visualização dos conflitos centrais dos quais participam os principais atores sociais da colônia: os colonos, a Igreja e a Coroa. Trataremos do problema da mão-de-obra indígena através dos primeiros momentos da obra colonizadora até o Estado pombalino com os seus veios de modernização e burocratização.

A pluralidade da Administração local e as relações com a metrópole: o caso do Diretório dos índios

O caso indígena é bastante ilustrativo das relações entre os atores sociais na colônia em torno de uma demanda incontornável como esta de mão-de-obra para o próprio processo de exploração e povoamento da nova terra.

Observa-se neste problema específico uma notável variação entre fases de anomia e exploração espontânea e assistemática, tensões estabelecidas por posições antagônicas entre a Igreja, a coroa e os poderes locais, desobediência civil e intricadas jogadas políticas,durante todos os três séculos de experiência colonial no Brasil.

No princípio da colonização no século XVI, a redução do indígena era objeto de prescrição nos forais. Deveria mesmo o Capitão-donatário valer-se do gentio para a obra da colonização, seja a agricultura, o pasto, a construção civil, a defesa e demarcação dos limites de sua possessão.

Na dramaturgia ideológica que marca a expansão ultramarina fica estabelecida o subido mister do português levar ao novo mundo a catequese, sendo esta uma das estratégias da contra-reforma. O missionário, dessa forma, chegará ao Brasil juntamente com a coroa portuguesa na embarcação de Tomé de Sousa, não como um braço em auxílio do Estado, mas sim como uma autoridade própria, munida de objetivos específicos e instrumentos para atingi-los. E se em momentos da empresa colonial as forças políticas distintas cooperaram, essa não será uma realidade constante. É de se ressaltar que a coroa, a Igreja e os potentados locais representados pela nobreza estão vindo para o Brasil trazidos de um universo de questões não-resolvidas e devidamente acomodadas da transição da idade média para a idade moderna.

Se para a coroa, como já foi dito, a expansão ultramarina podia representar oportunidades para robustecer a liderança do Rei até mesmo pela coonestação das classes diretamente atingidas pela mudança do padrão terratenente de riqueza do final da idade média para o capital, para a nobreza a possessão de terras em América significava a ressurreição das chances de fincar no latifúndio os privilégios feudais já abalados na metrópole. Para WECKMANN (1993:93):

…a fin de propiciarse a los donatários, el rey Juan III les dispensó, en cada carta respectiva, de la observancia de la lei mental de 1434, gracias a lo cual las capitanías podían ser herdadas no sólo a través de la línea masculina (agnados) y la femenina (cognados), lo que fue usual en las islas sino, a defecto de ambas líneas, por la descendencia bastarda de los capitanes, varones o hembras (succederam os bastardos machos e femeas).

O afastamento da lei mental (8) é significativo da pretensão real de não disputar espaço com a nobreza, reservando para si funções políticas gerais ligadas, por exemplo, ao comércio e tributação que a nobreza não possuiria na mesma proporção.

A Igreja, por sua vez, vem encontrar a colônia como uma terra também de possibilidades. Na bula Dum Diversas de 18 de junho de 1452 o rei de Portugal como mestre da Ordem de Cristo poderia atacar, conquistar e submeter sarracenos, pagãos e outros infiéis, reduzi-los à escravidão perpétua e transferir seus bens. A cosmovisão teológica medieval não repudiava, antes bem convivia com a possibilidade legítima da escravidão, o que, a bem da verdade, é doutrina que mesmo antes de Sto. Agostinho encontra eco em Aristóteles como renitente defensor da escravidão grega. O célebre Pe. Manuel da Nóbrega ao chegar ao Brasil identifica na nudez do indígena a marca da descedência maldita de Cam e no Diálogo da conversão do gentio escreve:

Pois como tiveram estes pior criação que os outros, e como não lhes deu a natureza a mesma polícia que deu aos outros?(…)Isso podem-vos dizer claramente, falando a verdade, que lhes veio da maldição de seus avós, porque estes cremos serem descendentes de Cam, filho de Noé, que descobriu as vergonhas de seu pai bêbado, e, em maldição, e por isso, ficaram nus e tem outras mais misérias (apud AZZI, 2001:224).

A idéia da guerra justa de Sto. Agostinho, entretanto, foi a mais difundida não apenas na idade média, mas também na própria ideologia eclesiástica à época da expansão lusitana. Grosso modo, para o Bispo de Hipona na hipótese de culpa da nação agressora, tendo o príncipe defendente legítimo título, poderá declarar guerra e, em vencendo, reduzir os oponentes à escravidão seria mais conforme à natureza das coisas que extermina-lo, o que é mal maior.

Nos documentos da colônia, sejam da Igreja, sejam da coroa é permanente a preocupação de que sejam submetidos os selvagens perigosos, agressivos, rebeldes ao contato do missionário. O discurso que fundamenta a guerra de extermínio contra os índios Mura (9) é bastante ilustrativo do argumento.

Para MOREIRA NETO (1988:15) o efeito da escravidão e da caça ao indígena é que:

Até meados do século XVIII, a Amazônia brasileira apresentava uma face definidamente indígena. Um século depois, os grupos indígenas tribais sobreviventes refluíam, sob o impacto crescente da ocupação nacional, para áreas de refúgio nas matas e altos cursos dos rios, onde se conservavam arredios ou hostis.

Essa é uma conseqüência direta do fracasso da política pombalina de integração do gentio e do sucesso do localismo na condução do problema da mão-de-obra indígena.

Como dito acima, os forais desde 1534 autorizavam não apenas a escravidão do indígena, como também a comercialização de certo número anualmente em Lisboa. Em conseqüência de abusos o Papa Paulo III na bula Universibus Christi fidelibus afirma que os indígenas tinham todo direito à liberdade ainda que não convertidos, o que põe abaixo a posição anterior da Igreja, mais afeita aos gostos imperialistas dos reis-navegadores portugueses. D.Sebastião, por sua vez, em resposta à bula papal proíbe em 1570 os cativeiros do gentio, a não ser para os capturados em guerra justa. Já Filipe II vem abolir em 1595 a lei anterior proibindo o cativeiro em qualquer caso sem a autorização da coroa. O próprio Filipe II é quem em 30 de julho de 1609 vem reiterar a abolição dos cativeiros e confiar os índios à tutela do missionário inaciano e aí tem início uma tensão insustentável entre os colonos e os jesuístas tendo a coroa como um mediador distante e, no mais das vezes, volúvel.

Logo em seguida ao domínio missionário sobre o gentio, faz a coroa promulgar a lei de 10 de setembro de 1611 instituindo as administrações, aumentando a área de influência do poder civil sobre o braço escravo. No regime de administrações as aldeias estão sob a proteção dos capitães, sendo o missionário meramente o catequista. ROCHA POMBO assevera que estes eram até preteridos, na existência de ministros leigos (1953:21). Esse sistema foi revogado em 15 de março de 1624, devolvendo-se ao missionário o controle dos aldeamentos, mas tal lei não chegou sequer a ser aplicada face às resistências da Câmara de São Luís quando da chegada do Fr. Cristóvão ao Maranhão levando a lei para promulgação (registro) naquele senado e em 1625 restauram-se as administrações.

Em 1647 são novamente abolidas as administrações e instituído regime de servidão para o indígena com direito a salário. Na prática equivaleu ao retorno dos cativeiros…

Na tentativa de solucionar o cativeiro mal disfarçado, faz-se nova tentativa para reabilitar o missionário no controle dos aldeamentos, mas São Luis e Belém pelas suas Câmaras conseguem que em 1653 retorne-se ao regime das administrações, ampliando-se ademais os casos de redução do gentio. Um ano depois este sistema foi revogado.

Assiste razão ao argumento de que a coroa desta forma administrava um problema que envolvia dois atores políticos indispensáveis à obra da colonização: o colono e a Igreja. A falta de uma sistemática definida para o tratamento legal da questão indígena não atendia aos interesses diretos, dessa forma, nem dos colonos, nem dos missionários e muito menos do indígena, mas isentava a coroa de estabelecer confronto inconciliável com um e outro. Diz LISBOA citado por ROCHA POMBO (apud ob.cit.:22):

Em 1741, contristado sem dúvida pela vergonhosa instabilidade e perpétua contradição de tantas leis que favoneavam ora o princípio da liberdade, ora o da escravidão, e pungido pelos escândalos ainda maiores da sua execução, em que os bons princípios nelas inseridos eram constantemente fraudados, quando não violados abertamente, promulga o Papa Inocêncio XIV a bula Imensa Pastorum Principis, dirigida aos bispos do Brasil. Depois de grande clamor de misericórdia pelos selvagens, exortava o Pontífice todo o episcopado americano a proteger a raça desvalida, fazendo publicar que incorriam na pena de excomunhão todos os que escravizassem índios.

O conhecimento de tal norma eclesiástica no Maranhão deu-se em concomitância, a despeito de sua data, da Lei de 7 de junho de 1755, sob a égide do governo de D. José I e seu famoso Ministro Sebastião José de Carvalho Melo, Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, que veio instituir o Diretório dos índios. De fato, em termos documentais são marcantes dois textos da história amazônica que fornecem um panorama da opressão indígena no séc. XVII com a ocupação da região. Um deles é uma carta do Frei Antônio da Merceana datada de 27 de novembro de 1618 em que o religioso relata um ataque dos tupinambás ao forte do presépio, onde se refugiaram os soldados, devido aos maus tratos que andavam recebendo pelos brancos:

O levantamento começou no Caeté matando dois brancos que andavam fazendo resgates por mandado do dito Capitão Mor Francisco Caldeira e dali veio discorrendo a este Grão-Pará onde nos mataram muita gente debaixo de paz e foi que pelos sertões naquela ocasião por ordem do dito Capitão Mor andavam fazendo resgates de peças. Teve este gentio muita causa de se levantar pelas contínuas moléstias que lhes se faziam.

Outro documento é o Regimento dos Capitães-Ouvidores (1693), cargo específico da região, criado para distribuir justiça para o sertão, evitando os abusos contra o gentio. Alega o sobredito regimento que a distância entre o Grão-Pará e o Maranhão quanto aos seus sertões é fator decisivo para a falta de melhora na administração da justiça no interior e que, dada a escassez de índios nas aldeias, vários crimes haviam sido cometidos na sua condução e;

…o gentio acolhemente para melhor se reduzir à nossa Santa Fé, pela perturbação que lhe causa de serem obrigados ao serviço sem ordem e ainda encontrando-se às minhas; e para que totalmente cessem todas as queixas, e se guarde prontamente a Lei de Deus e minha:ordeno e mando se observe este Regimento, e faça o capitão-ouvidor com seu bom exemplo a ser imitado de todos os que forem a este rio, para que o gentio conheça o grande bem que se lhe segue a melhora de sua vida, e conveniência temporal na minha proteção, e espero do capitão-ouvidor obra de sorte que tenha muito que lhe agradecer.

Agora há algumas considerações para ordenar. A tensão fundamental nos dois primeiros séculos da colonização brasileira, mormente na Amazônia, deram-se em razão de um antagonismo em cujo crisol decantaram-se os interesses da Igreja e dos colonos, incompossíveis, contudo.

A liderança que os jesuítas assumiram na discussão da questão indígena no séc. XVII vai obliterar a participação de outras ordens religiosas e acirrar o conflito, haja vista o crescente poder que a ordem inaciana vai alargando junto à coroa. A capacidade de agenda dos inacianos e o temor que provocam é visível na ascendência que o Pe. Vieira terá sobre o Rei D. João IV e o Príncipe Teodósio, os quais, enquanto Rei e futuro herdeiro da monarquia restaurada, batem-se contra dificuldades financeiras ominosas. Nesse contexto a ajuda que a poderosa ordem inaciana pode prestar à coroa na obra da colonização é indispensável. Agora, para além disso, Vieira imprimirá ao discurso da Igreja na colônia uma natureza humanitária na proteção do indígena que caracterizará a “primeira fase tutelar” da questão do gentio, o que será bem diferente quando prevalecerem posteriormente as vocações dos Pe. Jorge Benci e João Antônio Andreoni, cuja política será a de expansão das aldeias missionárias pela Amazônia e estabelecimento de produção regular e crescente. MOREIRA NETO (1988:23) citando D’AZEVEDO esclarece que

Escravos eram os índios em poder destes (os colonos), como no daqueles (os jesuítas), e em ambas as partes o trabalho violento. Não era talvez menor a tirania do religioso na missão, que a do lavrador na fazenda…As missões enriqueciam, portanto; e a dos jesuítas sobrepujavam a todas, em número e valor das propriedades. Nesta época, possuíam eles, na capitania do Pará, nove fazendas rurais; no Maranhão, seis de criação de gado e sete outros estabelecimentos agrícolas: daí retiravam copioso produto de farinhas, algodão, açúcares, água-ardentes e cacau. Faziam a salga de peixes…realizavam capital…Utilizavam as riquezas da floresta, cortando madeiras e fabricando embarcações.

No afã de expandir a obra missionária pela multiplicação dos aldeamentos, o missionário colmatará a destribalização e desaculturamento já intensos na catequese, com a produção regular e orientada, com a acumulação de capital e com a indústria, completamente avessos à cultura indígena. É nesse universo que se estabelecerá o Diretório, buscando prosseguir nos aldeamentos enquanto base de indústria e destribalização, mas retirando o poder temporal das missões.

É claro que isso não se fará por completo, nem os missionários são dispensáveis deste projeto civilizatório, não apenas porque têm a confiança dos indígenas, mas porque dominam o Nehengatu, língua comum dos índios do norte. Não se há de olvidar que a estrutura das diversas ordens religiosas, tais como os carmelitas ao lado dos inacianos possibilita a expansão de uma obra colonizatória para a qual o Estado português vem apresentando limitações de ordem material. Mas urge que fique claro que o Diretório pretende a cisão do poder temporal e espiritual na condução dos aldeamentos.

Além da separação entre os poderes temporal e espiritual, no melhor molde do despotismo esclarecido de Pombal, o Diretório intencionava destribalizar o indígena, integrá-lo como assalariado no mercado, fazendo dos ameríndios vassalos do rei e como tais, promotores da integração da própria colônia.

Os hábitos rústicos e selvagens, seja no vestir (ou não vestir!), seja nos nomes e linguagem devem ser debelados. Ensina DOMINGUES (2000:72):

É no sentido de destruir essas características que os diferenciam dos luso-brasileiros que o Diretório se assumiu também como um “programa civilizacional”. Se as medidas mais imediatas consistiam em decretar que os ameríndios tomassem como nomes e sobrenomes os das famílias de Portugal (§11) ou se incentivassem os luso-brasileiros a morar nas mesmas povoações (§80) e se miscigenassem com os índios (§88), as transformações mais profundas implicavam a mudança da língua (§6), a reforma dos costumes (§14) e a integração dos índios no sistema económico colonial (§17).

Além destes exemplos retirados da Lei de 7 de junho de 1755, retiro da longa citação da autora, exemplificativamente, outros que são indutivos. Deveriam os índios:

…habitar casas e aldeamentos construídos de acordo com as normas urbanísticas européias (§12), a controlar o consumo de bebidas alcólicas (§13), a utilizar vestuário decente e compatível com a posição social do utilizador (§15), deviam trabalhar (§20) e, nomeadamente, deviam dedicar-se ao cultivo de suas terras e das dos moradores, por forma a satisfazerem o consumo interno, a subsistência de suas casas e famílias (§17)…

A atenção marcante do projeto diretorial centrava-se nas questões econômica e de ocupação ordenada do território. A cooptação do indígena pelo casamento, que o tornava vassalo do rei português, assim como pela ocupação de cargo público era um poderoso ideal da legislação pombalina. No códice 210 do Arquivo Público do Estado do Pará encontram-se diversos documentos dos anos de 1759 a 1772 que permitem conferir patentes concedidas a diversos índios que assumiram nomes portugueses e cujas tabelas seguem em anexo.

Doutra forma, se os conflitos existentes nos séculos XVI e XVII estavam fundamentados entre missionários, colonos e administradores, a partir do século XVIII mas precisamente a partir de 1758 (quando é instaurado o Diretório) as relações de conflitos aparecem com novos personagens, entre eles estão os cargos de chefia, índios e vigários querendo não só ser soberanos em jurisdição, como também se beneficiar das ramificações burocráticas existentes.

Em 1762 Plácido G.(?) então Diretor da Vila Nova Del Rey, fazia denúncias contra um vigário que despenhava contra ele insultos correspondentes à atritos entre os casamentos dos moradores das vilas e de comando de jurisdição da vila, como transcrevemos à seguir:

“(…) Vay embaraçando, sem discurço ou tino o servisso de S. Mag.de como já’ reprezentei pessoal a V. Ex.ª embaraçando os cazamentos e concubinando-se com as mesmas, a q.m embaraça prohibindo o uso da língua Portugueza fazendo inutil a escolha de meninas p.ª as Ter todos os dias, horas promp.tas as suas determinaçoes, metendo-se na jurisdição secular querendo ser Director, Juiz Ordinario e dos Orfhãos e athe na jurusdição de V. Ex.ª q. athe somente a dispor da gente ao mesmo tempo que tem negação Nactural para fazer acção alguma acertada, ainda na sua jurisdição heclesiastica q.to mais no governo politico (…)” (10).

Os conflitos passam a assumir uma nova dimensão sendo as esferas ora determinadas por disputa de recursos, ora por disputas de mão-de-obra e ora pelo controle da jurisdição envolvendo esferas “legais” de poder.

Todas essas formas de desvinculação com a ordem estatal estavam entre um paradoxo, se de um lado não se estava adequando ao poder estatal, de outro lado, a resistência estava fundamentada na burocracia desmedida do governo, através da delegação de poderes distintos que se embatiam em conflitos de ordem fossem eles de viés político, econômico ou religioso.

A despeito da envergadura das liberdades proclamadas no Diretório e da tentativa de incorporação do índio na sociedade luso-brasileira em uma outra condição que não a da antiga escravidão das primeiras leis, o indigenismo pombalino fracassou de forma retumbante. Na própria época de Pombal já remetia para Lisboa o Ouvidor-Geral do Pará e intendente geral dos índios, Antônio José Pestana da Silva, uma carta com críticas sensatas aos malefícios do Diretório. Dentre outras coisas apontava o funcionário régio que o Diretório é um labirinto ou mistura de determinações e que a melhor regra seria aquela de serem os europeus bons com os índios e todo o resto seria melhor (11).

Pela Carta Régia de 12 de maio de 1798 o Diretório foi extinto, mas manteve-se a igualdade formal dos índios aos luso-brasileiros. Preocupou-se a carta régia em regular as relações de trabalhos entre o gentio e o branco, mas a estrutura dos aldeamentos foi encerrada definitivamente na colônia. Naqueles em que houvera benfeitorias, foram vendidas a favor do Tesouro da Província.

A experiência da legislação indigenista na colônia e nela o caso do Diretório dos índios como sua culminância, sendo este decerto o mais ambicioso plano de Pombal para a Amazônia, demonstra os limites reais do poder régio na definição de planos e na regulação dos comportamentos na colônia, bem como o desacerto da linha historiográfica que sobrevaloriza a atividade legislativa reinol enquanto política de centralização.

A volatilidade da produção legislativa sobre a tormentosa questão da mão de obra indígena na colônia, problema essencial para o projeto de colonização, demonstra as contingências políticas em que trabalhava a coroa. No século XVII, mais intensamente após a Restauração, D. João IV comanda um reino oprimido pelas contingências financeiras e participará muito pouco diretamente na obra da colonização. É a época da ascensão das missões.

Doutro lado, o século XVII também testemunha o florescimento do poder das Câmaras, aí por todas, as de Belém e São Luis. A capacidade das mobilizações dos representantes locais é decisiva para a definição dos rumos da política colonial. A política indigenista é um dos mais relevantes, dada a sua posição central no desenvolvimento econômico brasileiro naquele momento. O Diretório por mais que fosse um projeto muitíssimo mais ousado que a mera alternância de leis de tutela missionária nos aldeamentos para sistema de administrações, como anteriormente, não deixou de contemplar a exigência da secularização na figura dos diretores. O que é relevante destacar é que o contexto de afirmação do absolutismo português com Pombal e o rompimento do Estado luso com a Igreja, tendo Pombal expulsado os jesuítas dos domínios portugueses, não é fenômeno que se transmita para a colônia nas mesmas formas. Se no século XVIII em Portugal já estavam dadas as condições para a centralização do poder, no Brasil as bases da expansão urbana, do fortalecimento do sistema tributário e da especialização apenas começam a progredir com a inversão da mão-de-obra do indígena pelo negro e pelos ciclos agrícolas vitoriosos da cana, do algodão, drogas do sertão e pelo início da exploração minerária. Um projeto civilizatório sem quem o conduzisse, sem o corpo burocrático, sem mediação. O que o Diretório acabou por fazer foi destribalizar o índio, terminando a tarefa da qual as missões já haviam se incumbido, e não o integrou em outra comunidade. Eis o tapuio, triste e deslocado, tal como a figura brasileira na visão de Paulo Prado.

A principal política de Pombal para a Amazônia foi frustrada. Prevaleceram todas as desídias e iniqüidades e a indiferença com o indígena que marcam os processos de colonização em toda a América, o monstro ominoso e invencível da brutalização.

Notas

1 No Canto IV d’Os Lusíadas, estrofes de 95 a 104, especificamente na estrofe 100 Camões refere-se aos conflitos com os ismaelitas, “com quem terás guerras sobejas”, e na estrofe 101 resume o medo com o desconhecido futuro perante o dano certo no presente: “Deixas criar às portas do inimigo/Por ires buscar tão longe/Por quem se despovoe o Reino antigo/Se enfraqueça e se vá deitando a longe/Buscas o incerto e incógnito perigo/Por que a Fama te exalte e te lisonje/Chamando-te senhor, com larga cópia/Da ìndia, Pérsia, Arábia e de Etiópia”.

2 Esta a origem que se lhe atribui a autorizada opinião de Teóphilo Braga (1868:12).

3 A cordialidade a que se refere BUARQUE DE HOLANDA, consoante sua própria observação, não é a gentileza ou a fidalguia, mas relações sejam públicas, sejam particularidades fundadas em considerações de subjetividades e pessoalidade, marcadas pela distinção de espaço ou matérias de ordem pública regidas por critérios meramente técnicos e objetivos.

4 Os coutos e homizios são sobrevivência medieval de uma tradição das civilizações pré-clássicas que remonta ao livro do Deuteronômio, consistente nos locais ou cidades de refúgio aos que cometeram crimes não-intencionais.

5 Incidente entre o novel Governador da Bahia em 1682, o soldado Antônio de Sousa Meneses e o clã Ravasco, ao qual se ligava por parentesco o Pe. Vieira, desencadeado pelo então Alcaide-mor Francisco Telles de Meneses que, sob a proteção do Governador, deflagrou perseguição aos desafetos da família, parte dos quais estava na própria Relação. Em 1683 o alcaide-mor foi morto em emboscada liderada por Antônio de Brito Castro, que refugiou-se no Colégio Jsuíta, tendo sido acusado além dele Bernardo Ravasco e o próprio Vieira. Em 1692 Ravasco foi perdoado após investigação que se arrastou, tendo ficado em perigo até 1684 quando o Governador foi substituído.

6 “A falta de funcionários suficientes perseguiu o Tribunal Superior da Bahia durante toda sua existência (…) A ausência de juízes em Salvador quando em investigações especiais, os deveres extras de natureza administrativa e o extenso rol de causas se combinaram para tornar mais vagaroso o processo judicial” (SCHWARTZ, ob.cit.:200).

7 Ord. Reg. 5, n. 38 e 6, n.29 (Arquivo do Estado da Bahia).

8 A lei mental, de acordo com CAETANO insere-se como estilo ou costume da corte reservado ao rei que intencionava “reaver para a coroa empobrecida o maior número de bens e preservar os seus direitos” (2000:513). Estabelecia regras de sucessão regidas pelos princípios da indivisibilidade, masculinidade e primogenitura.

9 Consultei Os autos da devassa contra os índios Mura do Rio Madeira e Nações do Rio Tocantins (1738-1739), publicados com transcrições paleográficas pela Universidade do Amazonas e Comissão de Estudos e Documentação da Amazônia – CEDEAM.

10 cod: 114; doc: 25

11 Ver MOREIRA NETO (1988:27).

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