A evolução do conceito de escravidão à luz da Corte IDH e do Supremo

Autor: Fernando César Costa Xavier (*)

 

No último dia 15 de dezembro, o Brasil foi notificado da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que o condenou no caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”[1]. Nesse caso, que envolveu 81 trabalhadores resgatados da Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia (PA), em março de 2000, considerou a Corte IDH que o Estado brasileiro seria responsável, dentre outros, pela violação ao direito humano de não ser submetido à escravidão, conforme previsão do artigo 6.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

A decisão foi saudada como um marco no sistema interamericano de direitos humanos, ao ponto de a própria Corte IDH registrar em comunicado que se tratava do “primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte Interamericana, de modo que esta teve a oportunidade de desenvolver e atualizar o conteúdo destes conceitos, de acordo com a Convenção Americana e o Direito Internacional”[2].

Entretanto, com relação especificamente ao conceito de escravidão, talvez seja necessário dizer que a corte não avançou tanto quanto poderia ou dela se esperava, pelo menos quando se compara o teor da sentença com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

Sobre a escravidão, pode-se dizer, dentre outras classificações possíveis, que ela comporta três formas, relacionadas a épocas distintas: a) a escravidão clássica ou chattel; b) a escravidão pré-moderna; e c) a escravidão moderna ou contemporânea.

A escravidão clássica ou chattel, ou ainda escravidão de “bem móvel”, remete à escravidão legalizada, em que alguém detinha direitos de propriedade sobre outra pessoa. A escravidão pré-moderna passou a ser definida pela restrição ou controle, de forma ilícita e sistemática, sobre a autonomia individual e a liberdade de movimento de alguém, ofendendo o bem mais precioso da modernidade liberal: a liberdade individual. A escravidão moderna ou contemporânea, por fim, pode ser definida como restrição ou constrangimento, de forma ilícita e sistemática, sobre a condição econômica de alguém, comprometendo-lhe a existência social digna, ainda que sem envolver, necessariamente, restrição física ou violência.

Na sentença do caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, a corte deixa claro que o Direito internacional evoluiu bastante desde o fim dos regimes escravocratas: “A partir do resumo de instrumentos internacionais vinculantes e das decisões de tribunais internacionais listadas anteriormente, observa-se que a proibição absoluta e universal da escravidão está consolidada no Direito Internacional [..] não é essencial a existência de um documento formal ou de uma norma jurídica para a caracterização desse fenômeno, como no caso da escravidão chattel ou tradicional” (parágrafos 268 e 270 da sentença).

Contudo, ao buscar a definição mais apropriada para a escravidão como violação de direito humano, a corte parece levar muito a sério a ideia de direitos civis e políticos como “direitos de liberdade” e economiza na interpretação evolutiva da norma do artigo 6.1 da CADH.

Acompanhando orientações firmadas em casos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, do Tribunal Especial para Serra Leoa e da Corte de Justiça da Comunidade Econômica da África Ocidental, a Corte IDH refere que, para se considerar uma situação como escravidão nos dias de hoje, deve-se tomar em consideração os chamados “atributos do direito de propriedade” (parágrafo 272). E, dentre os elementos que configurariam esses atributos, são destacados, inter allia, a restrição ou controle da autonomia individual” e a “perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa”.

Essa preocupação com a dimensão da liberdade ambulatorial remonta aos primórdios dos sistemas liberais modernos, em que interessava à conjuntura econômica desregular a livre iniciativa e a liberdade de ação (inclusive da força de trabalho), livrando-as de qualquer controle estatal ou de corporações privadas que representassem forças opressivas contrárias às leis de mercado.

É certo que a decisão da Corte IDH se trata de uma evolução em relação à compreensão mais clássica de escravidão: “Ao analisar o caso, a Corte observou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre a pessoa”[3]. Em todo caso, não se poderia afirmar que a proibição da escravidão ou de formas a ela análogas, quando calcada na proteção da liberdade individual dos sujeitos, remete à mais desenvolvida noção de escravidão, conforme certas interpretações.

No Relatório sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, incluindo suas causas e consequências, formulado pela relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CD/ONU) Gulnara Shahinian, por ocasião de sua visita oficial ao Brasil, em maio de 2010, é tratada como uma forma contemporânea de escravidão no país o trabalho escravo no setor rural. Falando das causas dessa forma de escravidão, diz a relatora especial: “Sem terras, desempregados e, portanto, incapazes de sustentar a si mesmos e suas famílias, os trabalhadores se submetem à exploração, aceitando os riscos de caírem em situações desumanas de vida e de trabalho, e buscam oportunidades de emprego na região norte e nordeste do Brasil. Tais condições criam alta vulnerabilidade para esses trabalhadores, levando-os a aceitar condições de trabalho degradantes” (parágrafo IV, A, 1, 26 do relatório). Esse relatório, a propósito, é referenciado em algumas notas de rodapé na sentença da Corte IDH.

Nas oportunidades em que enfrentou a questão, julgando inquéritos de indiciados com foro privilegiado, o Supremo Tribunal Federal desenvolveu um entendimento sobre a proibição da redução à condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) que, segundo parece, aproxima-se daquela classificação mais contemporânea de escravidão.

No Inquérito 3.412[4], o Pleno do STF decidiu, por maioria, conforme consta da ementa do acórdão, que, “para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção […] A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos”. Explicou o STF, nesse caso, que tratar alguém como coisa também implica privá-lo de sua liberdade, e não apenas de sua dignidade. A violação intensa e persistente ao direito ao trabalho digno, atingindo “níveis gritantes”, poderia ser considerada, conforme a maioria dos ministros, como trabalho escravo.

No Inquérito 3.564[5], a 2ª Turma da corte, reportando-se ao Inq 3.412, registrou na ementa do acórdão que “a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano”.

Nesses dois julgados, como em outros, restou vencido o ministro Gilmar Mendes, o qual reiterou sua preocupação com a necessidade de distinção entre um eventual descumprimento da legislação trabalhista e o trabalho escravo.

No Inquérito 2.131[6], após pedir vistas, o ministro Gilmar Mendes referiu em seu voto isolado que, embora reconhecesse que a escravidão contemporânea tenha “múltiplas facetas”, sendo diferente dos regimes escravagistas do século XIX, a limitação da liberdade de ir e vir e a submissão da vontade de uns a outros continuavam sendo os elementos centrais para definição de escravidão. Ao se reportar a um relatório contido nos autos, que estaria deixando de descrever as infrações cometidas pelo réu para fazer “digressão ideológica” sobre a reprovabilidade da exploração econômica dos trabalhadores rurais, o ministro demonstra preocupação com a possível caracterização de uma nova modalidade de escravidão moderna (um “neoescravagismo”) a partir de critérios político-ideológicos.

Em seu voto-vista, o ministro Gilmar Mendes também faz referência ao relatório Gulnara Shahianian, da ONU, sobretudo para destacar uma recomendação feita nele ao governo brasileiro: “O Governo deve decretar uma definição mais clara do crime de trabalho escravo, o que ajudaria mais a Policia Federal a investigar e abrir processos criminais contra perpetradores do trabalho escravo”. Tendo que apresentar uma definição própria, optou o ministro pela caracterização da escravidão como uma violação da liberdade, em que “o empregador visa, precipuamente, subjugar o empregado, impedindo que esse procure melhores condições de vida e qualquer tipo de ajuda ou socorro público ou privado”. Nas suas conclusões do voto-vista, ele consigna: “O bem jurídico tutelado pela norma não é a relação de trabalho, mas a liberdade individual” (destaque no original). Enfim, uma caracterização próxima da definição pré-moderna da escravidão, como aqui entendida.

Embora o caso julgado pelo STF no Inq 2.131 também seja relativo a uma fazenda no interior do Pará (no município de Piçarra), indicando talvez um problema estrutural na região Norte do Brasil, ambos tratavam de situações distintas. O caso julgado pela jurisdição interamericana tratava de trabalhadores limitados de facto em sua liberdade de locomoção, vigiados por capatazes armados, proibidos de se evadir e constantemente ameaçados. De outro lado, no caso analisado pela jurisdição constitucional, não havia real coação à liberdade de ir e vir dos trabalhadores, embora estivessem “escravizados” pela situação de penúria e extrema necessidade; essa a razão, inclusive, para o ministro Gilmar Mendes defender que se tratava de hipótese de irregularidade trabalhista, e não de crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo.

É possível que essa diferença entre os casos não tenha dado a melhor oportunidade para que a Corte IDH, neste primeiro caso, desenvolvesse e atualizasse a sua definição jurídica de escravidão na direção de uma compreensão mais contemporânea do fenômeno. Outra explicação é a de que o sistema interamericano tenderia, necessariamente, para interpretações mais liberais (centradas na ideia de liberdade individual), o que faria com que a própria vedação da escravidão não fosse examinada como uma questão econômica, social ou cultural, haja vista a incompetência material da Corte IDH para o julgamento de direitos dessa natureza.

De todo modo, ao menos no tema em questão, a jurisprudência do STF demonstra um desenvolvimento mais progressista e atual do que o precedente interamericano. Não se pode afirmar, no entanto, se isso é bom ou ruim, pois talvez esse desenvolvimento tenha sido alcançado à custa de um quadro persistente de trabalho escravo em certas partes do Brasil, que nem mesmo o processamento perante a Corte Suprema conseguiu debelar. Na sentença da Corte IDH, foram determinadas garantias de não repetição de novas violações desse tipo. Deseja-se que a decisão interamericana logre mais sucesso na mudança da realidade.

 

 

 

 

 

Autor: Fernando César Costa Xavier  é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB) e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR).


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