A Execução de Alimentos e a Penhora de Bem Clausulado, numa visão Constitucional

José Carlos Teixeira Giorgis *

SUMÁRIO:
1. Notas iniciais. 2. O título executivo na obrigação alimentar. 3. A coerção patrimonial. 4. A clausulação testamentária e a penhora. 5. A clausulação sob a ótica constitucional. 6. Conclusão.
1. NOTAS INICIAIS.

A existência de um título é o pressuposto do processo de execução, pois garante ao credor o direito de buscar a prestação (nulla executio sine titulo).

O papel primordial do título executivo está, justamente, em outorgar ao credor uma situação de evidente vantagem quanto à segurança do direito que nele se inscreve, estando nele destruídas as contestações do devedor, ressalvadas estritas impugnações por fatos extintivos, modificativos ou impeditivos, em geral, emergentes em época ulterior à constituição dele.

Nesta pronta e desembaraçada prestação jurisdicional, contida nos atos ordenatórios do processo de execução, é que radica a superioridade do título que a lei oferece a este tipo de tutela, daí o ordenamento jurídico havê-la aparelhado de maneira a estrangular ao máximo uma possível inconformidade do devedor, cuja sujeição é clara no processo, e oferecer presteza na consecução do resultado prático objetivado [1] .

O título executivo, sem o que não se admite a execução, é conseqüência do reconhecimento de que a esfera jurídica do indivíduo não deve ser invadida senão quando existir uma situação de tão elevado grau de probabilidade de existência de um preceito jurídico material descumprido, ou de tamanha preponderância de outro interesse sobre o seu, que o risco de um sacrifício injusto seja, para a sociedade, largamente compensado pelos benefícios trazidos na maioria dos casos [2].

A pessoa humana, para sobreviver, necessita de saúde, educação, habitação, vestuário, lazer, fatores que integram o dever alimentar.

O fundamento da obrigação de assistência, que é personalíssimo, se sustenta no princípio da solidariedade familiar, derivando, em regra, do parentesco que vincula o alimentante a seu aparentado (art. 396, C.C.) [3], do casamento (art.19, Lei nº 6.515/77) ou da união estável (art.7º, Lei nº 9.278/96), sendo possível a prisão civil do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável dos alimentos (art. 5º, LXVII, CF).

Todavia, além da lei, a obrigação alimentar pode resultar de testamento, mediante legado, de sentença judicial condenatória do pagamento de indenização para ressarcir da nos provenientes de ato ilícito e de contrato [4].

Embora manifesto que a obrigação alimentar tem natureza creditícia, implicando num intercâmbio patrimonial, pois o alimentário se beneficia com o desfalque do acervo de bens do devedor, não ofende a razoabilidade arrimar seu escopo na tutela da vida [5].

O direito à vida, cláusula pétrea que tem assento majestático na Constituição (art.5º, CF), é a maior expressão do homem, gravitando em seu redor uma constelação de garantias inerentes à personalidade, impondo-se à coletividade, o que significa ineficácia de qualquer declaração de vontade do titular que importe em sua restrição, descabendo ceifar-se a vida de outrem, mesmo com consentimento, nem a própria [6].

É um direito que emana da concepção, reconhecido também ao nascituro (art.4º,C.C.), acompanhando o ciclo humano até a morte, sem distinguir pessoas, condições ou estados, desimportando a maneira de fertilização ou as anomalias do ser.

2. O TÍTULO EXECUTIVO NA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR.

Embora o catálogo processual disponha de vários meios para a execução do crédito alimentar, a leitura prudente dos dispositivos consagrados à ação executiva aponta na direção do título judicial quando menciona sintomaticamente a execução de sentença (artigos 732, 733, 584,I,CPC), embora a referência à decisão, ato diverso, situado em degrau inferior à execução de sentença (art.162, par. 2º, CPC).

Ora, o crédito alimentar em si nada apresenta de peculiar em relação aos demais, e embora se mostre compatível com o título extrajudicial, as asserções doutrinárias e jurisprudenciais confinam ao ato judicial a execução dos alimentos ; além disso, as considerações de índole sistemática e conveniência da defesa do executado reclamam a apresentação do título judicial, que pode resultar da sentença propriamente dita, seja oriunda do processo de conhecimento, de rito comum ou de procedimento sumário (art.162, par. 1º), como da decisão interlocutória que fixa os alimentos provisórios (art.4º, Lei nº 5.478/68), da que estipula os provisionais (art.852, CPC), da que antecipa a tutela do pedido formulado em ação condenatória de alimentos e da homologação da separação consensual, em que conste cláusula sobre alimentos (art.1.122, par.1º, CPC)[7].

Para compelir o cumprimento da obrigação alimentar cogitam-se o desconto (art.734, CPC), a expropriação (art.646, CPC), e a coação pessoal (art.733, CPC), numa pródiga disciplina legal, onde o legislador expressou, na abundância da terapia executiva, o interesse público prevalente da rápida realização forçada do crédito alimentar [8].

3. A COERÇÃO PATRIMONIAL.

O cumprimento da sentença que condena ao pagamento de prestação alimentícia observa o rito da execução por quantia certa contra devedor solvente , e objetiva expropriar bens do devedor , a fim de satisfazer o direito do credor (art.646, CPC).

Assim, o alimentante será citado para, em 24 horas, pagar ou nomear bens á penhora (art.652, CPC), e caso não o faça o oficial de justiça providenciará a penhora de tantos bens quantos bastem para o pagamento da dívida principal, juros, custas e honorários (art. 659, CPC).

Cuidando-se de imóveis, a penhora se realiza mediante auto ou termo e inscrição no respectivo registro (art. 659, par.4º, CPC), ato de natureza administrativo, cuja ausência não interfere com a validade e eficácia dele, podendo a execução prosseguir normalmente em direção à excussão do bem [9].

A penhora é ato executivo pelo qual o Estado penetra no patrimônio do executado, limitando-lhe o uso e o gozo sobre a coisa, principalmente o poder de dispor da mesma, o que faz para substituí-lo ou para garantia do credor, sem que assuma o poder de dispor, por força do próprio ato de apreensão.

Assim, a apreensão destina-se não só a assegurar a execução, mas realizá-la integralmente, individualizando e localizando bens, limitando o gozo por parte do executado, ficando o cabedal , mesmo quando em depósito, sujeito ao controle jurisdicional, mas indisponível ainda para um ou outro[10].

A legislação instrumental estatui que podem ser penhorados dinheiro, pedras e metais precisos, títulos de dívida pública da União ou dos Estados, títulos de crédito que tenham rotação em bolsa, móveis, veículos, semoventes, imóveis, navios e aeronaves, direitos e ações (art. 655, CPC), tendo o executado direito líquido e certo em que seja respeitada a preferência específica dos bens que devam ser penhorados ou arrestados [11].

Contudo, são impenhoráveis os bens inalienáveis e os declarados por ato voluntário, não sujeitos à execução, as provisões de alimento e combustível, para manutenção do devedor e família durante um mês, o anel nupcial e os retratos de família, os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo, os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia, os equipamentos dos militares, os livros, as máquinas, os utensílios e os instrumentos, necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão, as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos, ou de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro, quando destinados ao sustento do devedor e sua família, os materiais necessários par obras em andamento, salvo se estas forem penhoradas, o seguro de vida e o imóvel rural, até um módulo, desde que seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário (art. 649, CPC), além do bem de família (Lei nº 8009/90).

Como se viu, os bens inalienáveis são impenhoráveis, pois se o executado não tem o poder de dispor da coisa, uma vez que esta é intransferível, claro está que não há penhora sobre ela, nos casos em que a lei permite ou determina a inalienabilidade.

Assim, não só os bens que, por lei expressa, sejam considerados tais, como também aqueles que por contrato, convenção, ou declaração unilateral de vontade sejam declarados inalienáveis [12].

Tais são os bens públicos (art.98/100, CC/2002) ,o bem de família (art.1.715/ CC/2002), as clausulas de inalienabilidade e impenhorabilidade impostas por testamento (art. 1.848, CC/2002).

4. A CLAUSULAÇÃO TESTAMENTÁRIA E A PENHORA.

Como se viu, os bens declarados inalienáveis por testamento são impenhoráveis, restrição que vai até a morte do herdeiro, mas mesmo depois dela são incoercíveis por suas dívidas, sendo nula a constrição patrimonial [13], cuidando-se de impenhorabilidade material absoluta, que, direta ou indiretamente, é ex lege [14].

Um dos efeitos da inalienabilidade, e de maior relevância é a impenhorabilidade, posto que, não sendo voluntária, mas coativa, a alienação determinada pela execução dos credores, campearia a fraude se o bem fosse penhorável; acolhe-se, então a chamada teoria da indisponibilidade da coisa, já que a cláusula grava o bem de genuíno ônus real, aderindo à coisa, permitindo que se considere nula sua transferência a qualquer título, por desvio de destinação, tratando-se, destarte, de um aniquilamento do direito de dispor [15].

Esta cláusula é válida quando for temporária, por exemplo, durante a vida do doador ou enquanto subsistir o usufruto reservado e que onere todos os bens; também ainda se tiver por fim acautelar o por o donatário a coberto de sua própria prodigalidade ou feitio gastador, mas, como não se trata de impor uma incapacidade a esse , nem pressão a sua liberdade, a infringência da vontade do doador, com a alienação dos bens recebidos, nenhuma sanção legal pode ser de fato aplicada [16].

Desta forma, em regra, a impenhorabilidade é uma cláusula protetiva, cuja finalidade é prover a mantença da família e seu sustento , estendendo seus efeitos além da morte do herdeiro ou legatário, de modo que não podem os credores daqueles penhorar os bens gravados ou vinculados [17].

Contudo, qualquer bem impenhorável, mas disponível pelo devedor, à exceção dos inalienáveis, poderá ser afetado à execução por sua livre e soberana nomeação (art.655, CPC), como ocorre com certo instrumento de trabalho, como um trator, de regra impenhorável (art.649,VI, CPC), quando seu proprietário o empenhe na cédula rural [18].

Todavia, há argumentos contrários à estimação da inalienabilidade e, como conseqüência, também à da impenhorabilidade (Súmula 49, STF) .

Um deles é a inutilidade da proibição, pois os interesses protegidos são mínimos, e podem ser atendidos através de outros processos.

Como a circulação de bens é manancial perpétuo de arrecadação pelo Estado, a retirada dos bens gravados priva o governo de impostos derivados das transmissões imobiliárias, constituindo-se em elemento de insegurança das relações jurídicas, afetando os interesses da sociedade pela obstrução no movimento das riquezas.

Além de que a cláusula da inalienabilidade é uma fonte de fraudes , pois o devedor tem a intenção de dissimular a verdadeira condição de seu patrimônio , já que a existência de bens impenhoráveis representa prejuízo para os credores, em geral imbuídos de boa fé

Por outro lado, como a legítima é um direito de expectativa , que serve durante a vida do de cujus para garantir aos legitimários os que lhes pertencem depois da morte, verificando-se esta, transforma-se imediatamente no mesmo pleno direito que tinha o defunto, plenitude que não permite ônus algum [19].

A proibição de alienar os bens da legítima é insustentável, pois pertence ela aos herdeiros necessários, devendo passar a eles nas condições em que se encontram no poder do autor da herança, pois constituem reserva inalterável, devendo transferir tal e qual se encontrem.

Em conseqüência, não se admite a clausulação da legítima pois quando ocorre o óbito do autor da herança , a plenitude dos direitos não pode sofrer restrições atentatórias da regular expectativa convertida em direito adquirido.

A preocupação do testador de preservar da adversidade herdeiro necessário pode ser atendida por outros meios jurídicos, que não a sacrificam; de resto, a proteção visada pelo ascendente cauteloso se transforma, não raro, num estorvo, antes prejudicando que beneficiando, já que permitida a livre disposição testamentária dos bens inalienáveis, nada obstando que seu titular o grave com o mesmo ônus, e assim sucessivamente, permanecendo retirados da circulação por várias gerações, motivo por que se deve abolir a prerrogativa de clausular bens com a inalienabilidade, ao menos da legítima [20].

Alinham-se, ainda, outros sumários desfavoráveis às cláusulas.

Deste modo, se próprias em período de exarcebado individualismo , não mais cabem em detrimento dos interesses da sociedade; ainda, apenas

É inarredável que apenas alimentam a vaidade do autor da liberalidade, que se crê mais capaz de que o beneficiário, desejando antever um futuro distante e continuar a regular os bens naquele porvir, daí rechaçá-las quando impostas por mero espírito de emulação prejudicial ao herdeiro.

Como foram próprias de período de exarcebado individualismo, hoje não se devem cogitar pois caminham em detrimento dos interesses da sociedade [21].

Hoje, diversamente do que ocorria na legislação anterior (art. 1.723, CC/ 1916), o testador necessita expor as razões por que onerou os bens, a motivação geral de favorecer, beneficiar, proteger os herdeiros, se acha sempre implícita, daí por que a faculdade do artigo 1.848 não pode ser considerada como absoluta, mas dependente das cogitações maiores que lhes deram causa, ou seja a imposição contém ínsita a finalidade de garantir o dependente.

Mas, caso a situação de fato, com o evoluir do tempo, altere as coisas de tal forma que venha acontecer um prejuízo dos destinatários da cláusula, haverá o término de sua eficácia temporal; idêntica conclusão se obterá mesmo que o testador tenha adjetivado de vitalícia a oneração de bens, eis que será mister verificar a realidade fática do momento da liberalidade e àquela jacente quando do exame judicial da questão, não podendo o Judiciário endossar a iniqüidade e a injustiça a pretexto de se aferrar a soluções formalistas e conservadoras, mantendo equações intelectuais válidas para 1.916, mas buscando fórmula jurídica que melhor aproxime o justo formal do justo real [22]

Com tais arrimos, os tribunais vinham mitigando o rigorismo da clausulação, e aplaudido seu alívio, em casos excepcionais.

Assim, quando modificada de modo frontal a situação de fato, que era a idade , aposentadoria e viuvez de pessoa que recebera acervo por testamento, nada impede que se autorize a liberação dos bens, pois não deve o juiz obrigar que permaneçam hígidos preceitos anti-sociais e antieconômicos [23]; como ainda em caso em doação com gravames feita para órfãos da revolução vetusta, em que as nobres finalidades de sua imposição, pelos ônus acarretados aos beneficiários, acabaram se voltando contra quem deveriam proteger [24].

Algumas vezes, o gravame recai sobre imóvel, que pede reformas pelo mau estado, onde mora família numerosa, agravada com desemprego do varão, suportando execução por dívidas, com prole acometida de diversas moléstias.

Aí a liberação se torna imperativa, como também se compadece com a aplicação da eqüidade ao texto legal, eis que não há uma decisão ofensiva da letra da lei, que é mantida abrandada pela justiça exigida pelo caso concreto [25].

Afinal, dizem os escólios, ser possível, em casos especiais e quando comprovadamente nociva ao herdeiro, a liberação de cláusula imposta pelo testador [26]

5. A CLAUSULAÇÃO SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL.

As cláusulas testamentárias de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, além de extremamente prejudiciais aos indivíduos e à sociedade, não foram recepcionadas pelo sistema constitucional vigente [27].

É que ofende o direito de propriedade e sua função social, com a ampla garantia do direito de herança (art.5º, XXII,XXIII e XXX, CF).

A doutrina tradicional considerava a propriedade particular regulada exclusivamente pelo Código Civil , com a exceções da legislação excepcional, costumando-se dizer que o direito civil tinha no Código sua verdadeira Constituição e que a Carta Federal, em contrapartida, restava em texto de princípios e programas, funcionando como mero limite para o legislador ordinário e traçando metas a serem desenvolvidos pela lei civil, quadro que se coadunava com o sistema individualista do século XIX, caracterizado justamente, pela não ingerência do Estado na contratação privada e nas relações interindividuais.

Contudo, ao final dos anos setenta, tamanha resultou a legislação especial, que se atentou para o fato do Código Civil não mais centralizar o sistema normativo privado, passando-se a um polissistema , caracterizado por leis setoriais, fruto do democrático mecanismo das pressões e discussões legislativas a guiar em cada setor da economia a própria disciplina [28].

Isso significou uma inversão hermenêutica sem precedentes, pois as regras interpretativas utilizadas pelo operador do direito deveriam respeitar a lógica setorial e não mais a lógica do Código Civil, com os princípios constitucionais assinalando um programa , enquanto os princípios das leis especiais adimpliriam a função interpretativa do sistema, como analogia legis e analogia juris.

Assim, a disciplina do Código Civil , com suas regras hermenêuticas, teria aplicação residual, formando um sistema fragmentado, ora inteiramente apartado, ora complementar em relação aos microssistemas.

Entretanto, na verdade é a Constituição que serve de ponto de atração para todo o sistema normativo e o Código Civil , centro do ordenamento privado, mercê da socialização do Direito Civil que o tornou voltado para valores sociais e não patrimoniais, não dá lugar a uma fragmentação normativa, não se concebendo um sistema que responda a lógicas setoriais[29].

A perda do espaço do Código Civil coincide com a chamada publicização ou despatrimonialização do direito privado, invadido pela ótica publicista do Estado Social de Direito, estando-se a assistir uma espécie de constitucionalização do direito privado, voltado mais para as preocupações sociais e para os valores estabelecidos ao ápice do sistema normativo.

O Código Civil e a legislação setorial, em tema de propriedade, permanecem em vigor naquilo que não contrariarem a Constituição, onde a lógica proprietária, os princípios basilares e sua função social devem ser amalgamados pelas normas constitucionais, as quais servem para ditar nova disciplina para a propriedade privada, com a aplicação inexorável e imediata do direito privado [30].

Há institutos onde é prevalente o interesse dos indivíduos, estando presentes, contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que predomina, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses individuais e existenciais dos cidadãos.

No Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido, pois os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de erradicação da pobreza, colocaram a pessoa humana , isto é, os valores existenciais, no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, valor que confirma todos os ramos do Direito [31].

Como dito, ampliando-se a importância dos princípios constitucionais na interpretação e aplicação do direito, pode-se afirmar que a leitura da legislação infraconstitucional deve ser feita sob a ótica dos valores constitucionais.

Assim , mesmo na presença de aparentemente perfeita subsunção à norma de um caso concreto, é necessário buscar a justificativa constitucional daquele resultado hermenêutico, sendo necessário aos operadores do direito conhecerem a lógica do sistema, oferecida pelos valores constitucionais, eis que a norma ordinária deverá sempre ser aplicada juntamente com a regra constitucional, que é a razão de validade para sua aplicação naquela situação.

Nesta visão, a norma constitucional assume, no direito civil, a função de modificar os institutos, à luz de seus valores e princípios, quando valida a norma ordinária aplicável ao caso concreto, cabendo ao magistrado verificar a supremacia do documento constitucional, tendo como insubsistentes as regras ordinárias que conflitem com o texto maior, através do controle difuso de constitucionalidade [32].

Nesta linha, a função social da propriedade também é critério de interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos, devendo o intérprete propor uma exegese conforme os princípios constitucionais, marcante para o hermeneuta a consciência de que o crescimento econômico e o bem-estar, quando não preservam a qualidade de vida, ou seja, a liberdade e a dignidade humana não são progresso e desenvolvimento social e constitucionalmente valoráveis, mas se traduzem em mal-estar para todos [33].

A livre disposição dos bens à vontade de seu dono, que é base do direito de propriedade, tem no direito de alienar um de seus atributos e sua supressão o desvirtua por completo, tanto que o direito civil moderno, em conformidade com o direito romano, dá a importância máxima ao jus abutendi [34].

A proibição atenta, ainda, contra o princípio da dignidade da pessoa humana, valor fundante do Estado brasileiro (art. 1ª, III, CF), é afirmação da integridade física e espiritual do homem com dimensão irrenunciável de sua individualidade autonomamente responsável, garantia da identidade através do livre desenvolvimento da personalidade, libertação da angústia da existência da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se inclui a possibilidade de trabalho e condições existenciais mínimas [35].

Como se sabe, o princípio da dignidade da pessoa humana não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas também d ordem econômica, cultural, política, tendo densificação constitucional.

É um valor supremo que não aceita discriminação, subjazendo à concepção de pessoa como um ser ético-espiritual que aspira determinar-se e desenvolver-se em liberdade, que reclama condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica[36], limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um.

Como limite da atividade dos poderes públicos, é algo que pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdido e alienado; e como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade reclama que este guie suas ações no sentido de preservá-la, objetivando sua promoção, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, que é dependente da ordem comunitária, manifestando-se tanto como autonomia da pessoa humana, como necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação [37].

Desta forma, a consagração do princípio da dignidade humana implica em adotar uma visão jurídica antropocêntrica, o que abrange todos os seres, e que se dirige não apenas em relação a todos, mas a cada um, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, a princípio, de modo diverso ante duas pessoas.

A inalienabilidade e a impenhorabilidade atingem também os princípios da igualdade e da liberdade, esta última limitada pelas necessidades superiores da ordem social e pelas leis naturais que governam as instituições jurídicas e sociais.

A liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal, um poder de autodeterminação, sendo as regras constitucionais que a normatizam de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata, ou seja o exercício da liberdade não depende de normas reguladoras

A igualdade perante a lei corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com que elas estabelecem [38].

Acrescente-se que a clausulação ofende o dever do Estado em assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer (art.227, CF).

Já se disse alhures que o direito à vida é uma emanação dos direitos de personalidade, não se pode descartar a necessidade de uma estrutura jurídica no interesse social , objetivando a preservação da vida humana, daí se identificando também o interesse do Estado.

Assim, a obrigação alimentícia não se funda exclusivamente sobre um interesse egoístico-patrimonial do alimentando, mas um interesse público de natureza superior ; daí se reconhecer nas normas disciplinadoras do dever legal não apenas os interesses privados do credor, mas um interesse geral, sem prejuízo do conteúdo moral , expresso em normas que pretendem a conservação e a sobrevivência, ainda que impostas por humanidade, piedade ou solidariedade, pois resultam do vínculo de família, que o legislador considera essencial preservar [39].

6. CONCLUSÃO.

Como se vê, as cláusulas testamentárias da inalienabilidade e da impenhorabilidade, obstáculos para a penhora na execução de alimentos, são consideradas assimétricas em relação aos princípios constitucionais do direito à vida (art. 5º, CF), da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF), da liberdade e da igualdade (art.5º, CF) , do sustento da criança e do adolescente (art. 227, CF) e da propriedade (art.5ª, XXII, CF).

Em sede de crédito alimentar, contudo, a própria lei estabelece hipóteses discriminatórias entre bens impenhoráveis.

Assim, a impenhorabilidade do bem de família , embora oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, é superada quando se trate de execução de crédito alimentar (art. 3º, III, Lei nº 8.009/90).

É que, à guisa de defender-se a célula familiar, não pode ser negada a proteção existencial do próprio integrante dela, devendo, primeiro sobreviver o membro da família e, depois, esta, como fortalecimento da sociedade e do Estado [40].

Há uma razão hermenêutica para se entender que a penhorabilidade do bem de família, na falta de maior especificação, refere-se a qualquer dívida de caráter alimentar, mesmo que não sejam genuinamente alimentos, como a decorrente de ato ilícito ou de indenização [41], embora entendimento de que a expressão pensão alimentícia deve ser interpretada de modo estrito, apenas abrangendo a que tem esteio no vínculo do parentesco [42].

Assim, a impenhorabilidade estatuída na Lei 8.009/90 não afeta a obrigação alimentar[43].

De mesma forma, embora o estatuto processual considere impenhoráveis os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, a constrição também se aceita para pagamento de prestação alimentícia (art. 649, IV, CPC).

A penhorabilidade dos salários e dos vencimentos na execução do crédito alimentar é relativa e limitada, não atingindo a parte indispensável à subsistência do próprio executado e alimentante, que o juiz deverá arbitrar, e que em geral é fixada em trinta por cento dos rendimentos [44], aqui abrangidos os salários a qualquer título, presente, passado ou futuro, pagos ou não, na constância do emprego ou por despedida[45], embora não se permita a penhora de saldo em conta corrente bancária, se proveniente de salário [46].

Desta forma, como a própria lei institui espécies de coerção patrimonial em bens definidos como impenhoráveis, não ofende a razoabilidade argumentar-se que a clausulação pode ser transposta pelas formas sugeridas.

A regra da proibição, sublinhada como de duvidosa constitucionalidade, cede perante direitos assegurados pela Carta Magna, como o de uma vida digna, qualificada, com alimentação, saúde, bem-estar e lazer, que superam o relativo direito de propriedade.

Desta forma, não é desarrazoada a penhora de bem que seja onerado com as cláusulas de incomunicabilidade e impenhorabilidade, em testamento [47]

É que as regras de proibição contidas no estatuto civil merecem o devido temperamento, eis que a intenção de preservar o patrimônio, para a fruição dos descendentes, se subjuga à situação vigorante, diversa de quando foram estabelecidas as cláusulas, e o abrandamento da austeridade canônica mira-se na real convivência ou vantagem para os interessados.

Além disso, a leitura da legislação infraconstitucional deve ser feita sob a ótica dos valores fundamentais contidos na Carta Federal, para que ocorra a prevalência dos princípios nela contidos sobre normas elaboradas em outro século.[48]

Em síntese, é preciso dar à lei uma interpretação que se afine com as exigências do bem comum e atenta à sua função social , sempre meditando que a norma representa a expressão de um episódio histórico, devendo o magistrado torná-la flexível ao instante de sua aplicação .

O Direito é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade, e sua função é eminentemente social, construtora, sendo contraproducente o excesso de juridicidade , afasta-se do objetivo superior das leis, desvia os pretórios dos fins elevados para o que foram criados, devendo fazer-se justiça do modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida e jamais pereça.

Cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor , e não em prejuízo , de quem ela evidentemente visa proteger[49]

Relembre-se que o juiz é um hermeneuta que compatibiliza a rigidez da regra com a situação concreta posta, adequando a legislação civil a uma exegese sensível ao momento presente, mas aguçada pelos princípios constitucionais.

A lei material vigente, como já referido, como acontecia com a anterior bíblia material, admite a clausulação dos bens da legítima, mas com uma justa causa declarada no testamento (art. 1.848, CC/2002).

Prevê-se, ainda, a alienação dos bens gravados, por motivo relevante e mediante autorização judicial, desde que o produto do negócio seja convertido em outros bens, que ficam sub-rogados nos ônus dos primeiros (§ 2º, art. 1.848, CC/2002).

Alerte-se que, para os testamentos feitos na vigência do anterior Código Civil, o testador deverá aditar sua disposição de última vontade para declarar a justa causa de cláusula imposta à legítima e isto até 10 de janeiro de 2003, sob pena de ineficácia (art. 2.042, CC/2002).

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[1] Moura, Mário Aguiar.Processo de execução,v.I.Porto Alegre:Emma,1975,p.94.

[2] Dinamarco, Cândido Rangel.Execução civil: São Paulo,RT,1973,p.261.

[3] Diniz, Maria Helena. Curso de Direito civil brasileiro,v.5º. São Paulo: Editora Saraiva, p.317.

[4] Gomes, Orlando. Direito de família, 7ªa edição. Rio de Janeiro:Editora Forense, 1992, p. 404.

[5] Cahali, Yussef Said, referindo posição de Heredia de Onis. Dos alimentos, 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p.29.

[6] Bittar, Carlos Alberto.Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1999, p.67.

[7] Assis, Araken, Da execução de alimentos e prisão do devedor, 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,1998, 105, passim.

[8] Assis, ob.cit. p. 113.

[9] STJ, 2ª Secção, CComp. 2870-0-SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJU 4.10.93.

[10] Pacheco, José da Silva. Tratado das execuções. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª ed., 1976, p.459.

[11] RT 683/106).

[12] Pacheco, ob.cit. p. 464.

[13] Pacheco, ob.cit. p. 464.

[14] Assis, Araken. Manual do processo de execução, 6ªa edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 367.

[15] Gomes, Orlando. Sucessões, 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1970, p. 197/8.

[16] Gonçalves, Luiz da Cunha. Princípios de Direito Civil, 2º volume. São Paulo:Max Limonad, 1951, p.951/952.

[17] Maluf, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo:Editora Saraiva, 1986, p.174.

[18] Assis, ob.cit. p. 361; também STJ, 3ª turma, Resp. 38.8007-RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 6(59)/354.

[19] Maluf, ob.cit. p. 28/31.

[20] Gomes, ob.cit. p. 195.

[21] Rodrigues, Sílvio. Direito das Sucessões, 18ª edição. São Paulo:Editora Saraiva, 1993, VII/ 142 e 205.

[22] Cunha, Ivo Gabriel da. “ A dispensa do ônus da inalienabilidade e a decisão judicial “, Revista Ajuris, nº 10/26.

[23] TJRS, 4ª Câmara Cível, APC 26.191, rel. Des. Antonio V. Amaral Braga, RJTJRS 64/195.

[24] TJRS, 5ª Câmara Cível, APC 585046790, rel. Des. Sérgio Pilla da Silva, RJTJRS, 116/385.

[25] TJRS, 3ª Câmara Cível, APC 586055204, voto do Des. Galeno Lacerda, RJTJRS 133/199.

[26] TJRS, 1ª Câmara Cível, APC 31.914, rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, RJTJRS 82/256.

[27] TJRS, 4º Grupo de Câmaras Cíveis, EI 596245324, rel. Des. Sérgio Gischow Pereira, RJTJRS 183/ 177.

[28] Tepedino, Gustavo. “ A nova propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição) “.Revista Forense, 306/73.

[29] Tepedino, cit. p. 77.

[30] Tepedino, cit. p. 77/ 78.

[31] Tepedino, Maria Celina B.M. “A caminho de um direito civil constitucional “.Revista de Direito Civil, 65/21.

[32] Tepedino, M.C.B.M., cit. p. 29/ 30.

[33] Perlingieri, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro:Editora Renovar, 1999, p.227/ 228.

[34] Maluf, ob.cit. p. 34.

[35] Canotilho, J.J.Gomes. Direito Constitucional, 6ª edição. Coimbra:Almedina, 1993, p. 363.

[36] Silva, José Afonso. “A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia “.revista de Direito Administrativo, 212/91.

[37] Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 46.

[38] Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo, 15ª edição.Sâo Paulo:Malheiros Editores, 1998, p.218, 236 e 271.

[39] Cahali, ob. cit. p. 30.

[40] Azevedo, Álvaro Villaça. Bem de família, 3ªa edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p.169.

[41] Czajkowski, Rainer. A impenhorabilidade do bem de família, 2ª edição. Curitiba:Juruá Editora, 1995, 9.104/105.

[42] TAPR, APC 57.249-0, rel. Juiz Trota Telles, j. 17.08.93.

[43] TJRS, 7ª Câmara Cível, APC 598398337, rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 10.02.99.

[44] Assis, ob. cit. p. 373.

[45] RT 618/198.

[46] JTASP, 148/160.

[47] TJRS, 7ª Câmara Cível, AGI 70002268480, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 04.04.2001.

[48] TJRS, 7ª Câmara Cível; APC 70002609295; rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis; j. 06.06.2001.

[49] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 9ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979, p. 169 e 156.

*Desembargador, TJ/RS.

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