A Execução Penal e seus dois maridos

Ou de uma inquietação em face da proposta de Reforma Penal e sua aplicação no tempo e espaço

Luiz Antônio Bogo Chies

Introdução:

Ainda que não sejamos totalmente originais em recorrer, numa analogia simbólica, à sugestiva obra de Jorge Amado para enfrentar uma temática jurídica, pareceu-nos de todo pertinente a metáfora que dela se pode extrair para que lancemos algumas reflexões acerca de uma inquietação que nos vem ocupando desde que a proposta de Reforma Penal – em especial através das alterações do sistema de execução de penas a partir de um novo Código Penal e de uma redimensionada Lei de Execução – assumiu uma perspectiva mais concreta de resolução de um debate, em nossa visão conduzido de forma pouco crítica, com o seu encaminhamento à tramitação formal legislativa.

Nossa inquietação, entre outros aspectos a serem criticados na “Reforma” em proposta, recai neste texto de forma especial no que tange às perspectivas práticas e teóricas de aplicação, no tempo e no espaço, de um novo sistema de execução penal, que resta por ser aspecto de cerne nas modificações legais em exame pelas esferas legislativas.

Assim, para que possamos clareá-la, nos breves limites deste, dividimos nossas reflexões primeiro numa perspectiva de problematização do aspecto prático da questão, no qual lançamos nossa inquietação objetiva, para depois enfrentar uma perspectiva mais teórica em termos da historicidade do sistema penal e do compromisso social que sob tal referencial deve assumir o legislador (aqui compreendido em seu sentido mais amplo possível).

1 – Uma inquietação na prática:

Mesmo numa visão panorâmica, quase superficial, da proposta de Reforma Penal encaminhada ao Congresso Nacional poder-se-á, com extrema facilidade, reconhecer que seu bojo traz substanciais alterações no sistema de execução penal em vigência.

De similar forma não terá dificuldade o observador da proposta legal, em especial aquele com vínculos práticos e teóricos com o fenômeno jurídico, em reconhecer nesta uma direcionalidade a um mais rigoroso sistema de execução da pena privativa de liberdade (que não obstante as já consagradas ampliações de medidas substitutivas, via penalidades restritivas de direito, permanece sendo modalidade punitiva basilar do sistema).

Tal reconhecimento, de um maior rigor no sistema, julgamos ser viável ainda que significativos avanços também possam, e devam, ser reconhecidos (como o caso do elemento “educação” como modalidade viabilizadora da remição), como também julgamos ser viável sem que isso implique uma defesa acrítica do vigente sistema de execução penal, cujo repensar urge em todos os sentidos, mas não, em nossa opinião, no sentido formalmente encaminhado pela proposta de “Reforma”.

Ora, é elemento mais sensível, ainda que exemplificativo, do maior rigor do sistema em proposta, o aumento dos lapsos temporais de pena a serem cumpridos para que se alcançe o benefício, ou direito, de pleito à progressão de regime, instituto que peça basilar do chamado sistema progressivo de execução da pena privativa de liberdade.

Não precisaríamos de nenhuma análise sobre outros aspectos da “Reforma” proposta para nos inquietarmos! Bastaria somente este, ainda que tenhamos inúmeros outros pontos a exigir maior reflexão crítica.

Donde emerge, pois, nossa inquietação prática?

Em podendo ser considerado, e por nós em sendo, mais rigoroso quanto à perspectiva do status libertatis do indivíduo o sistema de execução penal em proposta, como ficará sua aplicação no tempo? vez que será conteúdo de normas penais sujeitas aos modernos princípios do Direito Penal, enquanto sistema, e portanto em especial ao princípio da irretroatividade da lei penal menos benéfica, que em nosso Estado de Direito, mesmo fragilizado, possui inclusive o status constitucional de direito e garantia fundamental através do inciso XL do artigo 5º da Carta de 1988.

Indubitável, pois, que na perspectiva de aprovação da “Reforma” pelas esferas formais legislativas, e de sua vigência enquanto norma jurídica, por muitos anos, décadas talvez, conviverá a prática da execução penal com os “dois maridos” dessa. O suplantado sistema, naquilo que mais benéfico para todos aqueles que tenham cometido os fatos geradores de suas condenações em data anterior a nova lei; e o novo sistema, em sua totalidade, para os demais.

2 – Um viés teórico a recair sobre a questão prática:

Nossa inquietação, em seu aspecto prático, sugere somente a perspectiva de mais um paradoxo legal a ser enfrentado pelos operadores do direito (Juizes, Promotores, Advogados, etc…) no cotidiano da vida forense e judiciária. Se o legislador, como o faz com espantosa freqüência, cristaliza em norma jurídicas positivadas tais paradoxos, tais contradições, cabe-nos, como sempre coube, enfrentá-los.

Entretanto não podemos ficar restritos a uma preocupação que se reduza aos efeitos prático esdrúxulos do quadro concreto de aplicação da inovação legislativa. Há um tempo e um espaço social que referenciam a produção de leis. A característica de historicidade da produção social normativa, em especial num sistema de positivação estatal do direito, deve nos fazer refletir sobre as pressões sociais que recaem sobre o jurista e o legislador, mas não tanto para “perdoá-los” e sim para deles exigir o compromisso que seu status impõe.

Nesse sentido sabe-se que a atividade legislativa, sobretudo na esfera penal, encontra-se pressionada tanto pelos interesses do Poder Público, no mínimo omisso, quando não por natureza incapaz de reduzir os antagonismos sociais a níveis ao menos não tão intensos de conflitividade, e pelos interesses das demais parcelas da sociedade, insegura frente a tais conflitos, gerados também a partir das próprias omissões dessa e ainda pelos inerentes processos da dinâmica característica do modelo societário que a mesma resta por colaborar em sustentar, encontrando-se, pois, mais do que amedrontada, e sim emocionalmente instável quanto à direcionalidade de seus desejos e ânsias na resolução das questões referentes ao enfrentamento do fenômeno delitivo.

Mas mesmo frente a tais pressões não pode o jurista e o legislador olvidarem ser o fenômeno jurídico, enquanto seu resultado normativo, um produto com história. Tal reconhecimento renova o compromisso que é requerido a qualquer agente social, e sobretudo àquele que legisla, de avançar no rumo da racionalidade, e não o retroceder para fórmulas menos razoáveis de enfrentamento das questões sociais.

É um compromisso sobretudo ético, e que no que tange à especificidade da questão social punitiva, dos sistemas penais, da própria penalogia, não pode olvidar todo o arcabouço de reflexão e crítica, teórica e prática, já produzido no sentido do reconhecimento da deslegitimação da pena privativa de liberdade.

Reforçar um sistema moribundo, como é o prisional, através de práticas e critérios por vezes mais rigorosos de sua fórmula executória, parece-nos uma contraditória tarefa que poderá novamente mascarar a falta de legitimidade da punição moderna.

Corremos o risco de ao não olhar a história dar sobrevida a um quase cadáver, transformando-o num zumbi que somente terá a utilidade de apaziguar, momentaneamente, uma talvez acrítica ânsia social de segurança, tornando inexigível do Poder Público as medidas mais eficazes de enfrentamento da questão social “criminalidade”.

Conclusão:

A perspectiva de positivação jurídica e estatal da proposta de “Reforma Penal” nos lança o paradoxo prático de que a Execução Penal, por muito tempo, ainda conviverá com seus “dois maridos” em sua aplicabilidade no mundo real.

Mas mais do que isso, ainda buscando explorar o potencial da metáfora, a simples proposta da nova legislação está a nos demonstrar o risco do legislador, co-autorizado pela própria sociedade, ao reconhecer a falência moribunda do marido anterior, buscando sepultá-lo em nossa experiência, opte por um noivo, um novo marido, aos olhos de uma realidade social por tendência acriticamente conflitiva, mais adequado, mais enquadrado aos padrões dominantes, e, por óbvio, mais conservador em relação ao primeiro.

No máximo do paradoxo em profecia, ao menos teremos ainda, ironicamente, o fantasma do primeiro marido da execução penal a atormenta-la em sua memória e realização, enquanto tão complexa instituição jurídica penal… multifacetada relação, promíscua talvez, tanto na ficção como na realidade social que se pode aproximar.

Eis a inquietação! mas que não se torne perplexidade…

Professor Adjunto da Universidade Católica de Pelotas – RS; Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires – Argentina); Advogado

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