A falência da democracia brasileira: não há mais identidade entre povo e governantes

Autor: Roberto Beijato Junior (*)

 

A democracia, como sabemos, possui seu mais valioso fundamento na outorga de poder ao próprio povo, que o exercerá diretamente ou, como é a regra geral no Brasil, por meio de representantes eleitos para tal fim. A própria Constituição Federal, no parágrafo único de seu primeiro artigo, estatui que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

No plano das ideias, o dispositivo constitucional não deixa dúvidas ao instituir um regime democrático no Estado brasileiro, outorgando ao próprio povo todo o poder estatal.

Pressupõe-se, de igual modo, como decorrência lógica de uma democracia, que o povo tenha a possibilidade de escolher sujeitos para exercerem em seu nome referido poder, representando efetivamente os anseios populares.

Não é de hoje, entretanto, que os representantes eleitos exercem o poder em benefício próprio e daqueles que financiaram suas candidaturas, renegando ao povo — o verdadeiro detentor do poder — os últimos graus de prioridade.

Os constantes escândalos de corrupção que assolam o Brasil e constituem, a bem da verdade, o câncer que insiste em manter os excessivos níveis de desigualdade social e cultural no Brasil tornam a população absolutamente descrente naqueles que exercem o poder em seu nome, bem como torna a população descrente da própria política em si.

Trata-se, a evidência, de uma consequência da situação política brasileira e que não requer muitas digressões para ser percebida. Ora, enquanto o Brasil é um dos países com a maior carga tributária do mundo, é, ao mesmo tempo, um dos países mais mal colocados nos índices educacionais.

Basta compararmos: em 2015, a tributação brasileira alcançou o expressivo índice de 33,47% do PIB nacional, segundo dados divulgados pela própria Receita Federal[1]. Países conhecidos pela elevada tributação — porém com a devida contrapartida em qualidade de vida —, como a Suíça, tiveram, no mesmo período, o total de 26,6% de seu PIP composto da carga tributária. Os Estados Unidos registrou 26%, enquanto o Canadá, 30,8%, ambos no mesmo período.

Por outro lado, num ranking de 76 países, o Brasil é apenas o 60º no quesito educacional[2]. A saúde pública, ademais, dispensa comentários face a notoriedade dos absurdos a que é submetida a população. A segurança pública, de igual modo, mostra a extrema violência que predomina nas grandes cidades brasileiras — reflexo da falta de investimento educacional —, sem mencionar a crise no sistema penitenciário brasileiro, que não é sequer controlado pelo Estado. As imagens de presos sendo decapitados por outros presos em guerras entre facções que ocorreram livre da intervenção estatal chocaram o mundo.

Evidentemente que há uma disparidade notável entre a carga tributária brasileira — uma das mais altas do mundo — e a qualidade do serviço público ofertado à população — uma das piores do mundo. Para onde será que vai todo esse dinheiro? Bem, os constantes escândalos de corrupção que testemunhamos diariamente respondem a essa pergunta. São bilhões em corrupção, contratos superfaturados, pagamentos mascarados como doações de campanha etc.

O povo, detentor do poder, diga-se de passagem, paga um custo elevadíssimo para manter os custos financeiros da corrupção que beneficia um pequeno grupo.

Há, nesse sentido, uma clara desvirtuação do sistema democrático brasileiro. Em termos platônicos — a partir da clássica divisão que caracteriza seu idealismo filosófico entre mundo inteligível e mundo sensível —, a democracia, no plano das ideias, constitui um conceito perfeito, sendo possível aferir a essência de tal conceito, ou seja, a coisa em si, somente transcendentalmente. Por outro lado, a representação material da democracia será inevitavelmente desvirtuada e maculada pelas vicissitudes humanas.

No Brasil, tal disparidade mostra-se com peculiar ênfase. Uma coisa é o mundo das normas constitucionais, onde o poder emana do povo, onde é assegurado a todos um longo leque de direitos fundamentais individuais e sociais — entre estes últimos os próprios direitos à saúde, moradia, alimentação etc., localizados no artigo 6º da Constituição Federal. Outra coisa, bastante diversa, é a realidade deplorável quando comparada ao estado de dever emanado da Constituição, a desvirtuação do mundo material atinge sobremaneira o modelo ideal que não é possível sequer observá-lo na prática, restando apenas simulacros de sua idealização. Tais simulacros, por sua vez, possuem um relevante papel em benefício do poder, mantendo a situação de conformação social face à naturalizada violência simbólica exercida constantemente.

Se preferirmos, em termos de política aristotélica, podemos concluir, confrontando as formas puras e pervertidas de governo, que a democracia brasileira se perverteu em demagogia.

Dado interessante e que demonstra a falência do sistema democrático brasileiro é a pesquisa recente, divulgada pela BBC, que demonstra a crescente popularidade do juiz Sergio Moro e a elevadíssima rejeição de membros da classe política, entre eles o atual presidente Michel Temer, cuja rejeição beira os 80%[3].

Do ponto de vista da democracia, a situação é curiosa. O povo, detentor do poder, escolhe diretamente representantes para exercer o poder em seu nome. Porém, o próprio povo não se sente representado por aqueles que escolhe para tanto.

Por outro lado, o povo se sente representado por um sujeito que nem sequer escolheu para exercer o poder, no caso, um juiz que prestara um concurso público de provas e títulos.

A situação demonstra a crise de legitimidade do sistema democrático brasileiro, não existindo mais identidade entre povo e governantes — elementos imprescindíveis ao Estado.

A necessidade de uma profunda reforma política no Brasil é premente e evidente. No entanto, é nítido, também, que qualquer reforma introduzida pelo governo posto e, dentro do sistema existente, não passará de mais um simulacro, por meio do qual, para o poder, por vezes é interessante “mudar as coisas para manter tudo justamente como está”[4].

Recorrendo agora à teoria dos sistemas, sabemos que qualquer sistema possui a tendência de autopreservação, isto é, possui mecanismos para preservar o seu núcleo, permitindo apenas alterações pontuais por meio das quais se adapta, alterando sua aparência, mas não a sua essência.

Isso significa que uma reforma política sob a égide do poder atual não conduzirá a qualquer alteração significativa do sistema, uma vez que seu núcleo restará preservado. Para que haja qualquer mudança efetiva é necessária a destruição do núcleo sistêmico atual, para que a partir daí surja um novo sistema.

Um novo sistema solucionaria as coisas para o Brasil? Particularmente, penso que não. O problema é mais profundo e remete à essência da natureza humana em sociedade. A corrupção do poder não é fenômeno inédito, bastando leituras advindas da antiguidade clássica para vermos o quão atual ainda permanecem.

Nesse sentido, sugiro a leitura da apologia de Sócrates de Platão, onde se retrata a corrupção da democracia ateniense, que culminara na condenação à morte de Sócrates, fazendo com que, a partir daí, Platão tenha se tornado um dos maiores críticos do modelo democrático ateniense. A apologia de Sócrates permanece extremamente atual.

Existem obras que retratam seu momento histórico e, passado tal momento, ficam no passado. Outras, contudo, por retratarem o âmago da essência humana e suas vaidades, permanecem atual ao longo dos milênios. Esse, sem dúvida, é o caso da apologia de Sócrates.

Por fim, nãos sabemos — e sequer objetivamos concluir — se um novo modelo tornaria o poder novamente legítimo no Brasil. Contudo, podemos concluir que o poder posto, além de demagógico, jamais se autodestruirá através dos recursos fornecidos pelo próprio sistema, a exemplo do direito de voto, de modo que alterará somente sua aparência, porém manterá sua essência, mantendo o cenário a que nós, brasileiros, já estamos acostumados a nos submeter.

Não nos iludamos, portanto, com promessas de reforma política por parte do governo posto, vez que o resultado será apenas mais um simulacro destinado a manter as coisas como estão por mais um bom tempo. Ao contrário, parece-me que tal ruptura deve ser externa ao sistema existente. De onde deve vir tal ruptura? Tal ruptura alteraria a ordem das coisas ou, como na revolução dos bichos de Orwell, ao final, não poderemos distinguir entre o homem e o porco? Impossível concluir, porém me satisfaço deixando a indagação.

 

 

 

Autor: Roberto Beijato Junior  é advogado, mestre e doutorando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenador e professor do curso de Direito da Faculdade Escola Paulista de Direito (EPD).


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