Autor: Ravi Peixoto (*)
1. Os meios consensuais de resolução de conflitos e o poder público
Inicialmente, é preciso que seja desfeito o mito de que a indisponibilidade do interesse público teria aptidão para impedir acordos pelos entes públicos.A verdade é que nem todo direito indisponível implica a impossibilidade de haver transação que o envolva[1].
Veja-se, como exemplo, que o artigo 334, parágrafo 4º, do CPC/2015, ao tratar das hipóteses em que não será feita a audiência de mediação ou conciliação, refere-se, no inciso II, aos casos em que não se admite autocomposição. Não há menção à indisponibilidade dos direitos porque ela não pode ser confundida com a vedação à transação.
No âmbito administrativo, por exemplo, tem-se vários casos de transações autorizadas por lei. Tem-se os acordos em contratos administrativos (artigo 65 e 79, da Lei 8.666/1993), os acordos nos procedimentos sancionatórios do Cade (artigo 86, da Lei 12.529/2011), dentre outros. Outras hipóteses de direitos indisponíveis também admitem transação, a exemplo do acordo quanto ao valor e à forma de pagamento em ação de alimentos e o cabimento do compromisso de ajustamento de conduta em processos coletivos, hipótese em que o direito é indisponível (artigo 5º, parágrafo 6º, da Lei 7.347/1985).
Inclusive, a doutrina chega a propor a seguinte classificação: “a) indisponibilidade absoluta (irrenunciável, insuscetível de transação e de persecução processual obrigatória); b) indisponibilidade relativa (irrenunciável, suscetível de transação, mas de persecução processual obrigatória); c) disponibilidade limitada (irrenunciável, suscetível de transação e de persecução processual facultativa)”[2].
Enfim, o que parece ser o grande desafio não é a verificação da aptidão ou não dos entes públicos de fazer acordos, mas sim quais seriam as suas condições. É inegável que a margem de liberdade para a realização de acordos pelo poder público é menor do que a existente para o setor privado. Acontece que, quando a situação envolve o poder público, tem-se a prévia exigência de autorização normativa para que membro da advocacia pública possa transigir em juízo. Algumas leis possuem autorizações genéricas, tais como o parágrafo único do artigo 10 da Lei 10.259/2001 e o artigo 8º da Lei 12.153/2009.
A questão é que mesmo essas autorizações são genéricas e dependem de ato normativo por cada ente federativo, em face da autonomia federativa detida por cada um deles[3]. A AGU, por exemplo, editou a Portaria AGU 109/07, permitindo a transação por procurador nos casos em que houvesse erro administrativo reconhecido pela autoridade competente ou, quando verificável pela simples análise das provas e dos documentos que instruem a ação, pelo advogado ou procurador que atua no feito, mediante motivação adequada e nos casos em que inexista controvérsia quanto ao fato e ao direito aplicado (artigo 3º, I e II)[4]. Os artigos 1º e 2º, da Lei 9.469/1997, com a redação dada pela Lei 13.140/2015, autorizam que o AGU, o procurador-geral da União, o procurador-geral federal, o procurador-geral do Banco Central do Brasil e os dirigentes máximos das empresas públicas, em conjunto com o dirigente estatutário da área afeta ao assunto possam autorizar acordos ou transações para prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais.
A necessidade de autorização normativa para a autocomposição pelos entes públicos decorre do princípio da legalidade (artigo 37, CF), que, em relação ao poder público, tem como uma de suas decorrências a exigência de que este só pode atuar na medida do que é autorizado por algum texto normativo. Essa autorização pode decorrer tanto diretamente da lei como ser feita por meio de ato normativo do chefe do Poder Executivo regulamentando o exercício da autocomposição pelo poder público.
Além do mais, a edição de um ato normativo — público e com critérios para a autocomposição — também é imprescindível para que se obedeça aos princípios da publicidade e, especialmente, da impessoalidade (artigo 37, CF). É preciso que existam elementos de controle para a análise dos acordos feitos pelos entes públicos[5].
Para além da autorização normativa, há quem mencione os seguintes elementos: a) agente competente; b) finalidade legítima; c) motivos razoáveis; e d) formas transparentes e controláveis — accountability[6]. De fato, esses parecem ser motivos aptos a auxiliar no controle a posteriori das transações feitas por entes públicos, para além da simples autorização legal.
2. A audiência de conciliação ou de mediação e os entes públicos
O artigo 334 do CPC/2015 estabelece uma audiência quase obrigatória de conciliação ou de mediação no início do procedimento, logo após a petição inicial. Essa audiência, salvo alguns casos excepcionais, só não ocorrerá seambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual (artigo 334, parágrafo 4º, I, CPC). Inclusive, o não comparecimento injustificado (e, ao que parece, o mero desinteresse em comparecer à audiência não é justificativa razoável) é considerado ato atentatório à dignidade da Justiça e será sancionado com multa de até 2% da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do estado (artigo 334, parágrafo 8º, CPC/2015).
Com base nessas disposições normativas, boa parte dos processos iniciados sob a vigência do CPC/2015 terá a referida audiência, o que envolveria, em tese, também o poder público, eis que, por natureza, o seu caso não incide na hipótese do artigo 334, parágrafo 4º, II, em que a audiência não ocorre pela inadmissão de autocomposição do direito. Afirmou-se, no tópico anterior, que a indisponibilidade do direito não significa impossibilidade de autocomposição.
Isso tudo significa que, em tese, o poder público deveria ter os processos em que esteja envolvido inseridos na regra geral, qual seja, a realização da audiência, com exceção das hipóteses em que haja desinteresse de ambas as partes. No entanto, como também foi afirmado no tópico anterior, para que o procurador que atue no caso concreto possa vir a fazer a autocomposição, é imprescindível autorização normativa para tanto, o que, infelizmente, não é comum no Direito brasileiro. Em outras palavras, na grande maioria dos casos, o direito do ente público é, em tese, apto a ser alvo de autocomposição, mas inexiste autorização legal, o que implica, na realidade dos fatos, a sua inadmissão.
Portanto, o posicionamento mais adequado é o de que, em inexistindo autorização no referido ente para a autocomposição, a audiência de conciliação ou de mediação não seja marcada. Não pelo desinteresse das partes, mas pela inadmissão da autocomposição (artigo 334, parágrafo 4º, II, CPC/2015), do contrário, seriam marcadas um sem número de audiência que não teriam qualquer utilidade, eis que o procurador não teria autorização para fazer qualquer proposta de acordo. Seria uma interpretação que estaria de acordo com a duração razoável do processo (artigo 6º, CPC/2015).
No entanto, permanece o problema de como identificar os casos em que há ou não essa autorização, que pode ter sido feita por meio de ato não facilmente disponível ao público, em especial, ao Poder Judiciário, que poderia, de antemão, já ter conhecimento e dispensar previamente a audiência. Não parece adequado simplesmente pressupor a impossibilidade de autocomposição e o magistrado não marcar, como regra, tais audiências que envolvam o ente público por ir em contrário à lógica do CPC/2015 (artigo 3º, parágrafos 2º e 3º) que é a de incentivar a mediação e a conciliação.Apenas parece possível a simples não marcação da audiência quando houver algum ato normativo que expressamente vede a autocomposição.
Duas hipóteses para solucionar esse problema podem ser vislumbradas.
O advogado público, com base no dever de boa-fé (artigo 5º, CPC/2015), deve informar ao juízo a ausência de qualquer espécie de autorização normativa para a autocomposição já na petição inicial, quando autor, ou até 10 dias antes da audiência, quando réu[7]. De toda forma, essa ainda não é uma boa solução, especialmente porque ainda dependeria de uma decisão do magistrado reconhecendo a impossibilidade de autocomposição. Especialmente quando o ente público seja réu, isso poderia acabar acarretando em uma audiência inútil, não sendo difícil de imaginar que não haja tempo hábil para uma decisão sobre esse tema entre a petição e a ocorrência da audiência. Aqui, ao contrário dos casos em que a audiência não é feita pela manifestação de vontade de ambas as partes, caso em que o seu cancelamento é automático e o prazo da contestação já começa do protocolo do pedido de cancelamento do réu, há expressa necessidade de decisão. Não parece possível aplicar o artigo 335, II, do CPC/2015 para os casos em que a audiência não é feita por requerimento do réu alegando que o direito não pode ser alvo de autocomposição. O juiz deve avaliar se é possível ou não a autocomposição do direito para que a audiência seja desmarcada e o prazo da contestação possa iniciar. Portanto, apenas após a decisão do juiz é que a audiência pode ser considerada cancelada, e o prazo da contestação seria iniciado.
A melhor solução, no entanto, é a realização, entre os entes públicos e o Poder Judiciário, de protocolos institucionais. Por meio deles, de forma prévia a instauração dos conflitos, o próprio ente público já poderia informar ao Poder Judiciário em quais casos é ou não possível a autocomposição. Dessa forma, já na instauração do processo, não haveria necessidade de qualquer discussão sobre o cabimento ou não da audiência, ao menos do ponto de vista do artigo 334, parágrafo 4º, II, pois já se teria conhecimento dos casos em que o direito do ente público poderia ser alvo de autocomposição.
Mesmo que não haja nenhum protocolo institucional, parece possível utilizar-se do conceito de fato notório judicial, que seria o fato que, embora desconhecido na vida social, é conhecido pelos magistrados, em geral, em razão do seu ofício, a exemplo de processos anteriores[8] para que o juiz, mesmo quando o ente público seja réu, já faça o despacho da petição inicial com a indicação da citação para contestar e não para comparecer à audiência.
Afinal, se o ente público, por exemplo, em diversos processos que tratem de responsabilidade civil, alega que não possui autorização normativa para autocompor, torna-se um fato notório para o juiz que, nessas espécies de casos concretos, isso não é possível e que aquele direito não pode ser alvo de autocomposição pelos entes públicos. Portanto, baseando-se na própria informação dos entes públicos em outros processos, poderia o juiz, no despacho inicial, fundamentando nessa constatação, sequer intimar o ente público para participar da audiência e já citá-lo para contestar. Afinal, já seria uma espécie de fato notório judicial, que, naqueles casos, o ente público não tem qualquer autorização para conciliar ou mediar.
No entanto, cabe ao advogado público informar ao juízo caso sobrevenha alguma autorização para autocompor, como forma de obedecer ao artigo 3º, parágrafo 3º, do CPC/2015, que comanda, também aos advogados, o estímulo aos meios de autocomposição. Esse dever foi também destacado pelo Enunciado 573, do FPPC, segundo o qual “as Fazendas Públicas devem dar publicidade às hipóteses em que seus órgãos de Advocacia Pública estão autorizados a aceitar autocomposição”.
Um último comentário sobre o tema refere-se aos casos de litisconsórcio. De acordo com o artigo 334, parágrafo 6º, do CPC/2015, nos casos de litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. Esse texto normativo deve também ser aplicado às hipóteses em que a audiência não pode ser feita pela impossibilidade de autocomposição, e não apenas nos casos em que há desinteresse das partes, com algumas particularidades. É possível imaginar um litisconsórcio passivo simples entre o ente público e um particular acerca de responsabilidade civil e apenas para o poder público seria uma hipótese de impossibilidade de autocomposição. Nessas situações, pressupondo que não haja a manifestação de vontade de todas as partes em não autocompor, a audiência deve ser feita, mesmo que o ente público não possa conciliar ou mediar. No entanto, parece possível defender que o poder público não está obrigado a comparecer a essa audiência, uma vez que não pode autocompor, mesmo que as demais partes manifestem interesse na sua realização. E mais, essa seria uma justificativa adequada, que impediria a aplicação da multa do artigo 334, parágrafo 8º, do CPC/2015.
Por outro lado, nos casos de litisconsórcio unitário, em que, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes (artigo 116, CPC/2015), o entendimento deve ser diferente. Caso um deles não possa conciliar ou mediar, como ocorre com o ente público na maioria dos casos, a audiência será necessariamente infrutífera. Portanto, nos casos de litisconsórcio unitário, basta que uma das partes não possa autocompor para que a audiência seja necessariamente cancelada.
Autor: Ravi Peixoto é advogado e procurador do município de João Pessoa, além de mestre em Direito pela UFPE, membro da Annep, do Ceapro, da ABDPro e do IBDP.