A federalização de graves violações contra os Direitos Humanos

Autor: Rodrigo Felberg (*)

 

Passados dez anos dos lamentáveis episódios conhecidos como “Crimes de Maio” (maio de 2006), o procurador-geral da República suscitou ao Superior Tribunal de Justiça, no início deste mês, incidente de deslocamento de competência (IDC), para que a polícia e a Justiça Federal atuem na persecução de quatro homicídios, em São Paulo, todos já arquivados pela Justiça Estadual. Os criminosos teriam disparados, indiscriminadamente, contra um grupo de jovens onde estavam as vítimas e, segundo o pleito, teria havido, posteriormente, alteração da cena do crime, sugerindo a forma de atuação similar a uma série de outros crimes perpetrados por grupos de extermínio composto por policiais militares.

A Procuradoria-Geral suspeita que policiais pudessem estar envolvidos nesta mortal investida, que seria uma espécie de revide, uma vez que vários agentes públicos, em datas anteriores, também sofreram atentados, iniciando-se, então, um ciclo recíproco de violências cujo resultado, estima-se, tenha sido a morte de 50 servidores, dentre policiais e agentes penitenciários e, aproximadamente, 450 civis.

Não satisfeito com a dinâmica apuratória e consequentes arquivamentos dos inquéritos, qualificado pelo procurador-geral como “interrupção prematura das investigações”, este ajuizou ao Superior Tribunal de Justiça o referido IDC, justificando-o na leniência dos órgãos persecutórios: “mostra-se evidente que o arquivamento em si da investigação configura violação do dever estatal de adequada e eficiente investigação, visto que a apuração pode ser acoimada [acusada] de insuficiente, por sua fragilidade, por não ter considerado o contexto em que produzidos os fatos, por não ter ouvido os policiais militares em atuação na região, por não ter se preocupado com a oitiva de testemunhas em linha de investigação razoável”.

O IDC é um mecanismo de índole processual penal, introduzido na Constituição Federal pela Emenda 45, de 2004, em nome da prevalência dos direitos humanos e da própria dignidade da pessoa humana, para que sejam efetivamente cumpridas as obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos, visando-se a idônea persecução à punição dos transgressores (CF, artigo 109, § 5º). Seu objetivo é viabilizar o deslocamento de competência da seara estadual à federal, quando os órgãos persecutórios se mostrarem inoperantes no seu poder-dever de apuração idônea, integra e eficaz e respectivo processamento (sendo o caso) de graves violações dos direitos humanos previstos em tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário.

Foi utilizado pela primeira vez no caso do homicídio da missionária Dorothy Stang, no Pará, em 2005. Ainda que o STJ o tenha indeferido, explicitou os seus requisitos basilares: a) grave violação de direitos humanos; b) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) incapacidade — oriunda de inércia, omissão, ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais e/ou materiais etc. — de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal (IDC 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005).

No tocante ao IDC recém suscitado, a PGR argumenta que os arquivamentos configurariam violação do dever estatal de adequada e eficiente investigação, visto que as apurações teriam sido frágeis e insuficientes, por ausência de oitivas imprescindíveis, não realização de perícias, dentre outras omissões injustificadas, tudo sob o manto de um procedimento meramente protocolar que não teria levado em conta as peculiaridades do caso.

A motivação para o ajuizamento do incidente não se pautou, portanto, no mero arquivamento das investigações, algo absolutamente — e infelizmente — comum nas apurações deste tipo, mas sim na suposta deficiência na condução das diligências investigatórias, o que teria comprometido as conclusões finais.

Chama a atenção, no presente caso, que o pedido ministerial não foi obstado pela existência do arquivamento das apurações em âmbito estadual, não obstante, à luz da interpretação literal do artigo 18 do Código de Processo Penal, somente se admita o desarquivamento diante de novas provas. Todavia, não nos esqueçamos que IDC foi introduzido na ordem constitucional brasileira à prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF) e efetivação da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), conforme, aliás, comprometeu-se o Brasil em âmbito internacional.

E o modo de se cumprir com o anseio do legislador constitucional é garantir que todos os meios presentes no arcabouço jurídico brasileiro tenham sido adequadamente utilizados pelos órgãos persecutórios, em consonância com a excepcional natureza do caso, sempre de modo idôneo, íntegro e confiável para que as investigações tenham potencial de sucesso, visando a identificação e punição àqueles que violaram gravemente os direitos humanos. As investigações não precisam culminar no oferecimento de denúncia, muito menos em condenação. Investigação de sucesso é aquela que, pela eficiência dos métodos adotados, confere segurança e credibilidade às conclusões resultantes. É exatamente este o exame que deverá se debruçar o STJ ao analisar o presente pedido.

Em consonância com os objetivos do IDC, tendo em vista a excepcionalidade do caso, filtro este a ser exercido com máximo rigor pela PGR, ficando demonstrado que o arquivamento do inquérito em âmbito estadual operou-se mediante evidente inoperância dos órgãos persecutórios, entendemos viável o reinício das investigações na seara federal, tendo em vista o ostensivo interesse público representado pela proteção constitucional a respeito.

No REsp 1.351.177/PR, o ministro Rogerio Schietti Cruz, argumenta a respeito do artigo 18 do CPP: “Decerto que o dispositivo legal em comento desempenha um valor de proteção do indivíduo contra múltiplas persecuções penais, assegurando ao investigado certa estabilidade e garantia de não se ver importunado indevidamente, ao sabor dos interesses do órgão de acusação Sem embargo, o que a Súmula 524 do STF quer evitar são movimentos arbitrários, inconsequentes, quiça vingativos de reabertura do caso por impulso da polícia ou do Ministério Público, e não estimular sejam sepultados os flagrantes equívocos ou omissões no arquivamento do inquérito policial que, se não corrigidos, gerariam inadmissível impunidade”.

A questão é polêmica. Mas havendo a constatação de ostensiva leniência dos órgãos públicos, tratando-se de graves violações de direitos humanos, considerando a possibilidade de responsabilização internacional do Brasil decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais, não nos parece haver qualquer arbitrariedade na perpetuação de investigações a respeito na seara federal. O arquivamento do inquérito deve ser analisado dentro do próprio contexto da leniência e, cremos, não pode ter o condão de impedir a proteção constitucional que o Brasil se dispôs a implementar, desde que se leve em conta, sempre, a excepcionalidade do procedimento.

Os Estados contam com excelentes magistrados, promotores e policiais e o IDC jamais poderá ser a prima ratio na solução dos casos que envolvam graves violações a direitos humanos. Temos de reconhecer, contudo, que há situações peculiares em que a punição pode, realmente, ficar comprometida pela atuação deficiente dos órgãos apuratórios. Daí porque, além da promoção do subsidiário deslocamento de competência, é preciso que sejam analisados os verdadeiros fatores que tem comprometido a escorreita atuação dos órgãos persecutórios estatais. É neste ponto que a sociedade deve dirigir seus esforços, justificando-se, nos casos de grave violação aos direitos humanos hábeis à responsabilização internacional do país, a instituição de um sistema específico de controle e monitoramento.

 

 

 

Autor: Rodrigo Felberg  é advogado criminalista, sócio do Hartmann e Felberg Advogados e professor de Direito Penal, Direito Penal Econômico e Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É mestre e doutor em Direito Político e Econômico pela mesma instituição e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.


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