Diante da redação do artigo 39 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, mais conhecida como Lei de Locações, segundo a qual, “salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel”, tornou-se comum, nos contratos de locação de imóveis, a inserção de cláusula estipulando que, na hipótese de prorrogação do contrato, mesmo que por prazo indeterminado, as obrigações assumidas pelos fiadores permaneceriam vigentes, até que a locação viesse a findar-se com a entrega das chaves respectivas.
Esse entendimento vinha sendo amplamente aceito, tanto pelos nossos doutrinadores, quanto pelos nossos tribunais, tanto assim que muitos fiadores culminavam por ficar atrelados às obrigações assumidas, por até vários anos após o vencimento original do prazo contratual, às vezes sem que até mesmo conseguissem lembrar a própria existência de tais contratos.
O entendimento, no entanto, veio a ter oportuna mudança, sobretudo com a edição da Súmula 214 do STJ, segundo a qual: “O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”.
Para que melhor se possa entender a questão, é mister lembrar que a fiança compreende uma obrigação acessória, pressupondo, necessariamente, existência de outra obrigação, de que é garantia.
Além disso, sabe-se que a fiança dá-se por escrito, motivo pelo qual jamais se presume e que, por se tratar de contrato benéfico, não admite interpretação extensiva, motivo pelo qual o fiador só responde por aquilo que estiver expressamente consigna o respectivo instrumento.
Justamente com base nos princípios acima discriminados é que nossos doutrinadores mais modernos, assim como os tribunais de nosso país, empreenderam sensível mudança de rota, ao entenderem que a prorrogação automática dos contratos de locação, que passam, assim, a viger por prazo indeterminado sem a anuência expressa do fiador, culmina por exonerá-lo das obrigações assumidas.
Milton da Silva Combre em “Teoria e prática da Locação de Imóveis” adota essa clara posição, ao assinalar que: “não admitindo a fiança interpretação extensiva (CC, artigo 1.483), o fiador só responde, precisamente, pelo que declarou no contrato. Portanto, sendo a fiança por prazo certo, ou valor determinado, a prorrogação da locação não a atinge, revalidando-a ou convalidando-a. Nessas condições, para que a locação não fique desprovida das suas garantias, a lei autoriza o locador a exigir do locatário novo fiador.” (Saraiva, 4ª ed, 1997, páginas 434/435).
Dentre as inúmeras decisões a respeito do tema, podemos assinalar aquela proferida pela 5ª Turma do E. STJ no Resp nº 711103-DF (2004/0178497-9), relator o ministro José Arnaldo da Fonseca, cuja ementa assinala que: “O contrato de fiança deve ser interpretado restritivamente, pelo que é inadmissível a responsabilidade do fiador por obrigações locativas resultantes de prorrogação do contrato de locação sem a anuência daquele, sendo irrelevante a existência de cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves. Precedentes”.
Outra importante decisão a respeito do tema compreende o acórdão proferido 1ª Turma Cível do TJ-DF, no Agravo de Instrumento nº 2006.00.2.002631-5, tendo como relator o desembargador Natanael Caetano, de sujo relatório vale ressaltar o seguinte trecho: “sem razão à agravante no que tange a sua insistência sobre haver vínculo obrigacional assumido pela agravada, com base na avença capitulada na cláusula décima do contrato de locação, que prevê ‘responsabilidade solidária dos fiadores pelas obrigações locatárias da avença, mesmo durante a prorrogação da locação, por prazo indeterminado ou não, com ou sem consentimento do locador, até a efetiva e comprovada devolução das chaves do imóvel locado’. Com relação a esse ponto específico, cumpre registrar que a fiança tem sido interpretada nos Tribunais de forma restritiva. Essa exegese sobre a matéria resultou em entendimento pacífico da jurisprudência deste Tribunal de Justiça e do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a cláusula contratual que fizer previsão de estender as obrigações do fiador até a entrega do imóvel não terá qualquer eficácia jurídica. Resta, pois, ineficaz a referida cláusula do contrato em tela, para os efeitos que a agravante pretendia fazer valer na ação executiva que maneja. Portanto, a solidariedade obrigacional da fiadora, ora agravada, há de se limitar ao período contratado, não podendo compor o pólo passivo da execução no que diz respeito a obrigações que surgiram após o período originalmente contratado, que efetivamente não anuiu”.
Tratando-se, portanto, de garantia que se consolida por escrito, motivo pelo qual não se presume, é de se ter em conta que na hipótese de ocorrer a prorrogação automática do contrato de locação, a fiança somente virá a subsistir se o fiador à mesma vier a anuir de forma expressa, concordando com a manutenção da garantia ofertada para esse período suplementar. Ou seja, não é porque o contrato contenha cláusula determinando a permanência da fiança até a entrega das chaves que se deva presumir que o fiador tenha concordado com a manutenção da garantia na hipótese de prorrogação informal do contrato original, por prazo indeterminado.
Vale observar, a respeito, que o artigo 40 da mesma Lei de Locações dispõe em seu inciso V, que “O locador poderá exigir novo fiador ou substituição da modalidade de garantia, nos seguintes casos: (…) V – prorrogação da locação por prazo indeterminado, sendo a fiança ajustada por prazo certo”.
Nesse sentido, a melhor interpretação sobre o artigo 39 da Lei de Locações é a de que o legislador, ao estipular que a fiança perdurará até a entrega das chaves, pretendeu prever a situação em que, vencido o contrato, o inquilino, a contragosto do locador, permanece no imóvel até que a sua retomada seja efetivamente conseguida.
Ante tais circunstâncias, para evitar riscos futuros, sempre que se der a prorrogação de contratos de locação, ainda que de forma automática e, por conseguinte, de maneira informal, os proprietários devem obter a concordância expressa do fiador, o que inclusive pode ser feito por meio de simples correspondência informando-o acerca dessa nova situação, obtendo-se dele um “de acordo” na cópia da carta.
Essa simples providência garantirá a manutenção da fiança até que a locação venha a se findar, com a efetiva entrega das chaves respectivas.
Outro ponto polêmico a respeito do assunto, refere-se ao meio processual adequado para a exclusão de eventual execução do fiador, então exonerado pela prorrogação do respectivo contrato de locação, por prazo indeterminado, sem a sua expressa anuência, por débitos decorrentes do não pagamento de alugueres relativos exatamente a esse período posterior ao prazo original do questionado contrato.
Entendem alguns que a questão deve ser tema de Embargos à Execução, já resguardado o juízo por força de penhora, enquanto outros sustentam que o assunto pode ser levantado por mera “exceção de pré-executividade”, ou seja, independentemente da efetivação da penhora.
Aqueles que defendem a discussão do assunto por meio de embargos à execução, respaldam-se no fato de que a “exceção de pré-executividade” compreende remédio jurídico a ser adotado somente em casos excepcionais ou, mais exatamente, quando o vício alegado se relacione com a própria admissibilidade da execução e possa ser conhecido de ofício, e a qualquer tempo pelo magistrado.
Nesse sentido, podemos citar o v. acórdão proferido pela 29ª Câmara da Seção de Direito Privado do TJ-SP, cujo relator, o desembargadores Pereira Calças, decidindo caso dessa mesma natureza, em certo trecho, assim assinala: “a matéria alegada na exceção de pré-executividade não configura nulidade de ordem pública, que possa e deva ser conhecida de ofício pelo magistrado, exigindo regular instrução e observância do contraditório, mercê do que, apenas na via dos embargos de devedor, após estar seguro o juízo, poderá ser decidida pelo magistrado. A questão referente à prorrogação do contrato de locação convencionado por prazo certo, com exigência de pacto acessório escrito para ser prorrogado, é disciplinada pelo artigo 56, parágrafo único da Lei nº 8.345/91, norma de ordem pública, de natureza cogente, observada a previsão do artigo 45 do referido diploma legal, que considera nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem elidir os objetivos da referida lei, notadamente as que proíbam a prorrogação do artigo 47 ou afastem o direito à renovação, nos casos do artigo 51. A inovação da Súmula 214 do Colendo Superior Tribunal de Justiça não se mostra adequada, pois não se está executando os fiadores com base em aditamento ao qual não anuíram, mas, sim, amparado no contrato de locação e fiança por eles assinados”.
Tal posicionamento, no entanto, não obstante todo respeito de que é merecedor o relator do citado acórdão, afasta-se, tanto da melhor doutrina, quanto das decisões mais recentes de nossas Cortes de Justiça, sobretudo o próprio STJ.
Aliás, o próprio TJSP já adotou posição diametralmente oposta, ao julgar o Agravo nº 277708-4/2, tendo por relator o desembargador Otávio Caron.
Outras decisões importantes a respeito da admissibilidade da discussão através da exceção de pré-executividade foram proferidas no âmbito de importantes Cortes de nosso país, servindo como exemplo o v. acórdão proferido pela 3ª Turma Cível do TJ-DF, no Agravo de Instrumento 2005.00.2.003895-1, relator o desembargador Vasquez Cruxên, cuja ementa assim considera: “admite-se a apreciação da questão sobre ilegitimidade de parte argüida em exceção de pré-executividade, desde que se verifique nos autos seja desnecessária a dilação probatória. Consoante entendimento pacífico da jurisprudência deste tribunal e do Eg. STJ, não se deve atribuir eficácia, por força de interpretação restritiva da fiança, ao disposto de cláusula do contrato de locação que preveja a extensão das obrigações de fiador até a entrega do imóvel. Em sendo assim, a obrigação do fiador limita-se apenas ao período contratado, não podendo o fiador ser responsável por obrigações futuras que não anuiu. In casu, impõe-se a manutenção da decisão recorrida, consistente na exclusão da fiadora do pólo passivo da ação executiva argüida em sede de exceção de pré-executividade, porquanto os débitos executados se originaram em período posterior ao do contrato de locação, que afiadora originalmente firmou, não podendo se vincular às obrigações ocorridas durante a prorrogação que não anuiu expressamente”.
Na mesma esteira, são importantes exemplos os acórdãos proferidos pela 5ª Turma do STJ, nos Recursos Especiais nºs 754.329-SP e 711.103-DF, ambos relatados pelo ministro José Arnaldo da Fonseca.
A professora Lenice Silveira Moreira, em excelente e completo trabalho publicado no Repertório IOB de Jurisprudência (encarte 4/99, caderno 3, pág. 102), leciona que “o princípio basilar da exceção de pré-executividade é o de que não poderá subsistir execução sem que se verifiquem todos os requisitos processuais, sob pena de se violar o preceito constitucional de que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal. De fato, a admissão da exceção de pré-executividade resulta na argüição de matérias processuais de ordem pública, bem como matérias pertinentes ao mérito passíveis de prova preconstituída, nos próprios autos do processo de execução, em simples petição, dispensando a sua sustentação em sede de embargos.(…) O desenvolvimento dos atos materiais de invasão do patrimônio do devedor só será regular se houver título executivo hábil, ou seja, título em conformidade com os requisitos de admissibilidade da instauração do processo de execução. Derradeiramente, a regularidade do título executivo é que habilita o credor para a satisfação de sua pretensão, viabilizando a supremacia do credor no processo executivo”.
Muitas outras decisões respaldam esse mesmo entendimento, valendo a pena citar, ainda, o acórdão proferido pela 2ª Turma Cível do TJ-DF no Ag. 2002.00.006566-7, relator o desembargador Silvânio Barbosa, com a seguinte ementa: “1. No que pertine à ilegitimidade de parte, trata-se de tema que pode ser conhecido, de ofício, pelo próprio magistrado. 2. Seria onerar demasiadamente os fiadores, quando o próprio legislador estabeleceu que o contrato de fiança se interpreta restritivamente, obrigá-los a segurar o juízo para peticionar a respeito de exclusão do pólo passivo de uma demanda executória, quando a documentação pertinente favorece decisão nos próprios autos da execução”.
Portanto, a despeito de ainda existir certa resistência a respeito do assunto, cresce, progressivamente, a corrente jurisprudencial que entende possível a discussão pela via da exceção de pré-executividade, da legitimidade de o fiador de contrato prorrogado, sem sua anuência, por prazo indeterminado, com base em mero permissivo contratual, relativamente a dívida oriunda de alugueres não pagos alusivos justamente a período posterior ao vencimento do prazo originalmente avençado.
Isso, desde que presentes nos autos, evidentemente, provas concretas e objetivas que assegurem, sem questionamento, a ocorrência da prorrogação, sem a participação expressa do fiador.
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Roberto Bartholomeu da Silva e Oliveira, 56 anos, advogado do escritório Silva, Oliveira e Neves Advogados Associados, em São Paulo, é graduado pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, em 1974. O autor tem proferido diversas palestras sobre a questão da assinatura básica.