Autores: Gustavo Henrique Carvalho Schiefler e Bernardo Rohden Pires (*)
O Superior Tribunal de Justiça analisou no dia 2 de dezembro de 2015, pela primeira vez na história, pedido de homologação de sentença arbitral estrangeira anulada pelas cortes do país de origem.
O caso (Sentença Estrangeira Contestada – SEC 5.782/EX) foi deflagrado pela companhia EDFI S/A, que requereu perante o STJ a homologação de sentença arbitral proferida em desfavor de Endesa Latinoamérica S/A e YPF S/A. O procedimento arbitral foi conduzido sob os auspícios da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), em Buenos Aires, Argentina. A segunda requerida arguiu a inviabilidade da homologação em virtude da anulação da sentença arbitral pelas cortes argentinas, fato não impugnado pela requerente.
Em acórdão da lavra do ministro Jorge Mussi, a Corte Especial do STJ rejeitou por unanimidade o pedido. Interpretando a Convenção de Nova York (art. V, I, “e”), a Lei de Arbitragem (art. 38, inc. VI), a Convenção do Panamá (art. 5, I, “e”), o Protocolo de Las Leñas (art. 20, “e”), a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – arts. 15 e 17) e seu Regimento Interno (art. 216-D, inc. III), o STJ concluiu pelo “não cabimento de homologação de sentença estrangeira arbitral suspensa ou anulada por órgão judicial do país onde a sentença arbitral foi prolatada”.
Os textos dos dispositivos listados pelo STJ, entretanto, apresentam diferenças marcantes. Nesse contexto, o objetivo desta breve nota é analisar a fundamentação adotada pelo STJ na SEC 5.782/EX e seu impacto sobre a disciplina da homologação de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil.
A questão teórica central em casos envolvendo a homologação de sentenças arbitrais anuladas na origem é a seguinte: a decisão judicial que decreta a nulidade de uma sentença arbitral torna-a universalmente inválida, impedindo assim sua execução em qualquer outra jurisdição, ou simplesmente obsta a produção de efeitos naquela jurisdição em particular?
Uma das principais contribuições da Convenção de Nova York foi a eliminação da necessidade de ratificação da sentença arbitral pelas cortes do Estado de origem para a execução no estrangeiro. Em outras palavras, a Convenção de Nova York instituiu uma presunção de validade da sentença arbitral lavrada em qualquer dos Estados-partes e, assim, contribuiu decisivamente para a afirmação da arbitragem como um mecanismo viável para a solução de disputas comerciais transnacionais.
Essa presunção, entretanto, não é absoluta. O artigo V da Convenção de Nova York lista circunstâncias sob as quais qualquer dos Estados-partes poderá rejeitar a homologação de sentença estrangeira. A forma “poderá” (“may”, na versão original em língua inglesa) foi cuidadosamente escolhida pelos redatores da Convenção para que os Estados-partes tivessem sua autonomia preservada e não fossem obrigados a homologar todo e qualquer laudo arbitral estrangeiro.
É verdade que sentenças arbitrais anuladas na origem apenas excepcionalmente são homologadas e executadas em outra jurisdição. A habitual deferência ao julgamento que anula a sentença arbitral é fruto da cortesia entre os países e, principalmente, do reconhecimento de que as cortes da origem dispõem de melhores condições para aferir a validade da sentença arbitral à luz de suas próprias leis, que em regra balizam o procedimento arbitral. Entretanto, a experiência estrangeira revela que, à luz da Convenção de Nova York, essa deferência não é obrigatória.
Nos Estados Unidos da América, o caso Chromalloy (1996) é o ponto de partida para a análise da questão.[1] Ao analisar pedido de homologação de sentença arbitral estrangeira anulada pelas cortes do país de origem (Egito), a Corte do Distrito de Columbia identificou que as partes haviam renunciado contratualmente ao direito de impugnar na justiça egípcia a sentença arbitral. Por corolário, concluiu que a decretação judicial da nulidade desta operou-se em desrespeito ao acordo entre as partes. Em prestígio ao caráter vinculante do contrato e da arbitragem, a corte norte-americana ignorou a decisão anulatória e reconheceu válida a sentença arbitral anulada na origem.
Em Baker Marine v. Chevron (1999), a Corte de Apelações do Segundo Circuito rejeitou pedido de homologação de sentença arbitral proferida na Nigéria e anulada pelas cortes daquele país. Embora o resultado tenha sido o mesmo alcançado pelo STJ na SEC 5.782/EX, a fundamentação foi distinta: a corte norte-americana considerou que a requerente, que evocara o permissivo “poderá” do artigo V, 1, “e” da Convenção de Nova York, não apresentou “fundamento razoável” para que a decisão das cortes nigerianas fosse desconsiderada. Ou seja, mesmo tendo rejeitado o pedido, a corte norte-americana reconheceu que o art. V, I, “e” da Convenção de Nova York garantia-lhe margem de discricionariedade para homologar sentença arbitral anulada na origem.
Mais recentemente, no caso Pemex[2] (2013), a Corte do Southern District de Nova York acolheu pedido de homologação de sentença arbitral prolatada no México e anulada pelas cortes daquele país. A corte norte-americana considerou que a decisão judicial anulatória, proferida sem fundamento legal, violava noções básicas de justiça material e, portanto, não poderia servir como óbice ao cumprimento da sentença arbitral nos Estados Unidos.[3]
Na mesma direção, há registro de entendimentos favoráveis à possibilidade de homologação de laudos arbitrais anulados na origem em outros países – França, Áustria, Alemanha, Holanda e Bélgica.[4] A literatura especializada também reconhece a existência da possibilidade de homologação e execução de sentença arbitral anulada na origem.[5]
A experiência estrangeira lança luzes sobre a fundamentação construída pelo STJ. Os dispositivos normativos listados como uníssonos pelo STJ, a rigor, podem ser categorizados em duas correntes textuais distintas.
A primeira é a da Convenção de Nova York, cujo art. V, I, “e” dispõe: “O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão ser indeferidos[somente se] […] a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou suspensa por autoridade competente do país em que, ou conforme a lei do qual, a sentença tenha sido proferida”. Como revela a experiência estrangeira, a utilização da expressão “poderá” indica que o julgador dispõe de margem de discricionariedade para homologar sentença arbitral estrangeira anulada na origem. A fórmula do art. V, I, “e” da Convenção de Nova York é replicada pela Convenção do Panamá e pela Lei de Arbitragem.
A segunda é a da LINDB, cujo art. 15, “c” dispõe: “Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos: […] c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida”. A interpretação a contrario sensu do aludido dispositivo indica que o julgador está obrigado a rejeitar a homologação de sentença estrangeira que não esteja apta à execução no país em que fora lavrada. A fórmula do art. 15, “c”, da LINDB é replicada pelo Regimento do STJ e pelo Protocolo de Las Leñas, que será analisado adiante. A mesma fórmula encontra-se presente na Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, que não foi mencionada no julgamento.
O STJ considerou que há uma relação necessária entre a anulação da sentença arbitral na origem e sua não-homologação no Brasil. Entretanto, essa construção torna equivalentes as duas vertentes acima descritas e, por conseguinte, elimina a discussão sobre a margem de discricionariedade traduzida pela forma “poderá”. A propósito, o próprio Guia do ICCA sobre a Interpretação da Convenção de Nova York de 1958, citado pelo STJ, reconhece no item III.V um “poder discricionário limitado para conceder a homologação na presença de fundamentos para a rejeição”.
Acrescente-se que a Convenção de Nova York, a Convenção do Panamá e a Lei de Arbitragem são diplomas normativos mais recentes e mais específicos do que a LINDB no que diz respeito à homologação de sentenças arbitrais estrangeiras. Portanto, irônica e paradoxalmente, os critérios de solução de antinomias previstos na própria LINDB (art. 2º) podem amparar a tese de que a homologação de sentenças arbitrais estrangeiras há de ser regida pelas três primeiras, e não pela LINDB.
Entretanto, uma interpretação em sentido oposto revela-se igualmente viável. O STJ tem entendimento solidificado no sentido de que a expressão “sentença proferida no estrangeiro” prevista no art. 15 da LINDB contempla sentenças arbitrais lavradas fora do Brasil.[6]
Considerando que a Convenção de Nova York faculta aos Estados-partes a homologação de sentenças arbitrais estrangeiras anuladas na origem, não parece haver óbice para que qualquer dos Estados-partes renuncie a essa faculdade. No caso brasileiro, a renúncia dar-se-ia pelo art. 15, “c”, da LINDB, que condiciona a homologação da sentença estrangeira à presença dos requisitos necessários para a execução na origem – os quais, por evidente, não estão presentes em sentenças arbitrais cuja nulidade houver sido decretada pelas cortes da origem.
Há ainda um outro fator a ser considerado: o país de origem da sentença arbitral. Os países do Mercosul, a Bolívia e o Chile assinaram o Protocolo de Las Leñas, ratificado no Brasil pelo Decreto 6.891/2009 e que estabelece regime diferenciado para a homologação de sentenças judiciais e arbitrais lavradas nos países signatários. Ressalte-se, por oportuno, que a sentença arbitral em exame na SEC n. 5.782/EX foi lavrada e anulada na Argentina, razão pela qual o STJ aplicou à hipótese dos autos o disposto no art. 20, “e”, do Protocolo de Las Leñas: “As sentenças e os laudos arbitrais a que se referem o artigo anterior terão eficácia extraterritorial nos Estados Partes quando reunirem as seguintes condições: […] e) que a decisão tenha força de coisa julgada e/ou executória no Estado em que foi ditada”.
Verifica-se que a redação do Protocolo de Las Leñas é muito similar à da LINDB. A principal diferença entre ambas é a previsão expressa, no Protocolo de Las Leñas, de “laudos arbitrais”. Na discussão sobre as possíveis antinomias entre os dispositivos que tratam da homologação de sentenças arbitrais estrangeiras, é possível argumentar-se que o Protocolo de Las Leñas, mais recente, sobrepõe-se em relação à Convenção de Nova York, à Convenção do Panamá e à Lei de Arbitragem e, portanto, deve reger pedidos de homologação de sentenças arbitrais lavradas nos países do Mercosul, no Chile e na Bolívia.
Em resumo, a homologação de sentenças arbitrais estrangeiras anuladas na origem é matéria complexa e repleta de nuances, principalmente diante da miríade de dispositivos a tratar do tema no ordenamento jurídico brasileiro. Por tratar-se da primeira decisão sobre a matéria, o precedente na SEC 5.782/EX inequivocamente servirá de referência para próximos julgamentos, mas ainda há questões jurídicas a serem esclarecidas.
A principal delas é a possível antinomia entre, de um lado, a LINDB, o Regimento do STJ, o Protocolo de Las Leñas e a Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros; e, de outro, a Convenção de Nova York, a Convenção do Panamá e a Lei de Arbitragem.
Autores: Gustavo Henrique Carvalho Schiefler é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Bernardo Rohden Pires é mestrando (LL.M.) na George Washington University Law School. Assistente de pesquisa de Charles N. Brower. Graduado e mestre em direito internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina.