Luzivan Falcão Cabral Magalhães
Existe uma lei da física, aplicada em toda e qualquer situação, que pondera que a toda ação, corresponde uma reação. A toda ação corresponde, também, uma reação no ambiente em que foi efetuada. Aplicando esse conhecimento em processo penal, verifica-se que a toda ação do criminoso corresponde a uma reação do Estado. Todo crime deixa vestígios, que deverão ser precisamente analisados, para que o Estado, que é o único titular do jus puniendi, possa devidamente punir o criminoso. Esses vestígios são as provas.
Prova é a demonstração de um determinado fato, ou como afirma Plácido e Silva:
Do latim proba, de probare (demonstrar, reconhecer, formar juízo de), entender-se, assim, no sentido jurídico, a demonstração, que se faz, pelos meios legais, da existência ou veracidade de um ato material ou de um ato jurídico, em virtude da qual se conclui por sua existência ou se firma a certeza a respeito da existência do fato ou do ato demonstrado.
Prova ilegal é aquela conseguida através de violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. Quando a proibição for devida por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida), ao contrário sensu, sendo a proibição de natureza material, a prova é ilicitamente admitida. Prova ilícita é, portanto, aquela colhida com infringência às normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, comumente para a proteção das liberdades públicas e, de maneira especial, dos direitos de personalidade e mais especificamente do direito à intimidade.
Como em Processo Penal vigora o princípio da verdade real, qualquer limitação à prova pode desvirtuar o interesse do Estado na justa atuação da lei. No entanto, a maioria dos Códigos de Processo Penal existente pelo mundo estabelece restrições quanto à prova, não sendo absoluto o princípio da liberdade probatória.
A grande limitação que se faz à prova é em relação a qualquer meio que atente contra a moralidade ou viole o respeito a dignidades humana, defendidas tanto constitucionalmente, como através de direito material, sendo essas provas consideradas ilícitas.
O artigo 5º da Constituição Federal prescreve sobre os direitos e garantias fundamentais, e em seu inciso LVI reza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Apesar de estar claramente expresso na Carta Magna, o referido dispositivo, há uma grande polêmica a respeito da interpretação do mesmo. Duas correntes o interpretam de diferente maneira. De um lado, doutrinadores não admitem a utilização da prova de origem ilegal, em sinal de respeito à literalidade da regra constitucional. Do outro lado, encontra-se quem afirme, em homenagem a interpretação teleológica e sistemática, que o dispositivo deve ser interpretado de forma mais branda, suave, harmonizando-se com outros princípios.
Seguindo a primeira interpretação, que é a mais aceita doutrinariamente, não são admitidas as provas conseguidas através de torturas, por contrariar o artigo 5º, III. Como também, as provas obtidas por meio de captação clandestina de conversações telefônicas (artigo 5º, XII); de microfones escondidos com o fito de captar conversas íntimas; o diário que revela a vida privada de alguém, com indisfarçável teor de segredos. Tais provas violam a intimidade da pessoa, assegurada veemente pela Constituição, no artigo 5º, incisos do X ao XII (todos da Carta Magna), que dá proteção à privacidade. Quanto o primeiro meio de prova supracitada, a tortura, sua inadmissibilidade é indiscutível. Ocorre, no entanto, contenda quanto aos outros meios de prova, quando revelam cabalmente a existência de um crime e o sujeito ativo do mesmo. Absurdo não atentar para tais provas, de plano, por contrariar um princípio constitucional. Ao fazer isso, muitas vezes, está-se relegando outro princípio, de mesma natureza, que se fosse observado, analisar-se-ia a prova rejeitada, considerada como ilícita. Caso a prova foi obtida para resguardar outro bem protegido pela Constituição, de maior valor do que aquele a ser resguardado, não há que se falar em ilicitude e, portanto, inexistirá a restrição da inadmissibilidade da prova.
Será que toda prova obtida por meios ilícitos deve ser realmente inadmitida no processo penal, mesmo contrariando a buscar da verdade real dos fatos, ou se poderia utilizar o princípio da proporcionalidade e admiti-las?
Diante dessa perspectiva, muitos doutrinadores e julgadores se aderem ao conceito alemão a respeito do princípio da proporcionalidade ou sopesamento, em que busca analisar qual é o interesse que deve ser efetivamente protegido pelo Estado.
O princípio da proporcionalidade e a colisão de direitos fundamentais
Do ponto de vista jurídico, não há hierarquia entre os princípios constitucionais, ou seja, todas as normas constitucionais têm igual dignidade e importância, no plano teórico. De forma que, no plano fático, a incidência delas sobre uma dada situação pode gerar uma colisão real entre os direitos fundamentais.
Existirá uma colisão autêntica de direitos fundamentais no momento em que o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.
A situação concreta de existência de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia. Havendo nesse caso três critérios para a solução de conflitos: o critério cronológico (regra posterior derroga a anterior naquilo que for incompatível), o critério hierárquico (lei superior revoga a inferior se com ela for incompatível) e, por último, o critério da especialidade (lei especial revoga a geral). No caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios, de forma que sempre uma prevalecerá sobre a outra. Quando se trata de colisão de princípios constitucionais não se trata de antinomia, pois não se pode simplesmente afastar algum deles. Logo, os critérios acima descritos não são aplicados para a solução desse conflito.
A doutrina estrangeira desenvolveu duas teorias para a solução dos conflitos de princípios constitucionais. A primeira é a concordância prática (Hesse) e está sendo comumente utilizada pelos Tribunais; a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin). Para as duas soluções supra, o princípio da proporcionalidade é a mola mestra que as ampara e possibilita uma justa decisão no caso concreto, sendo apontado por Marmelstein Lima como “meta-princípio” ou “princípio dos princípios”, por visar sempre preservar os princípios constitucionais em jogo.
O critério da concordância prática
O princípio da concordância prática ou da harmonização baseia-se na unidade constitucional. Este princípio visa estabelecer um equilíbrio entre os direitos e bens jurídicos protegidos, harmonizá-los no caso concreto através de um juízo de ponderação, no intuito de preservar ao máximo os direitos em conflitos.
De acordo com esse princípio, deve-se buscar a otimização entre os direitos e valores em jogo, para que se possa estabelecer uma concordância prática (praktische konkordans), que deve resultar em uma ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão. Destarte, o critério não será a prevalência absoluta de um valor sobre o outro, mas a tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, mesmo que no caso em exame se torne atenuada uma delas.
Marmelstein Lima exemplificou a concordância prática com um caso alemão em que foi possível a conciliação do princípio da liberdade de expressão e o da privacidade, da seguinte forma:
Na Alemanha, em um caso famoso, um sujeito foi preso, por estar sendo acusado de inúmeros crimes de grande repercussão social. Logicamente, a imprensa local pretendia divulgar amplamente a matéria, tendo, uma emissora editado um documentário, o qual seria transmitido em horário nobre. Diante desses fatos, o sujeito que havia sido preso aforou uma ação pretendendo impedir os intentos da imprensa sob a alegação de que a divulgação da matéria feriria o seu direito à intimidade e à privacidade, sendo certo que, após a divulgação, seria impossível ao sujeito tornar a ter uma vida normal.
Estaríamos, assim, diante de uma colisão de dois princípios constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade.
O fato foi posto a julgamento, e a Justiça Alemã, utilizando o princípio da concordância prática, assim decidiu: a imprensa poderá, em nome da liberdade de expressão, exibir a matéria. No entanto, visando preservar o direito à intimidade do indivíduo, não poderá citar seu nome completo (mas somente as iniciais), nem mostrar seu rosto (deverá utilizar mecanismos eletrônicos para desfigurá-lo).
Existem duas modalidades de aplicação da concordância prática: colisão com redução bilateral e colisão com redução unilateral. Será feita uma breve análise de cada modalidade, separadamente.
a) Colisão com redução bilateral
Na colisão com redução bilateral existe a possibilidade de exercício conjunto dos direitos fundamentais, através de um processo limitativo de ambos. Esse método, quando possível de ser aplicado, prefere aos demais, pois trata uniformemente os direitos em colisão.
Gomes Rolim exemplificou da seguinte forma a colisão com redução bilateral:
O proprietário tem o direito de reformar sua casa, como corolário do direito de propriedade e do direito à moradia, previsto nos arts 5º, XXII, e 6º, caput, da Constituição Federal.
Pode acontecer, contudo, que o vizinho daquele ingresse em juízo pleiteando o embargo da obra, sob a alegação de que os ruídos dela decorrentes prejudicam seu sossego durante o dia e seu sono à noite, violando os direito previstos no art. 5º, X e XI da Constituição.
Neste caso, o juiz poderá conciliar os direitos em conflito, fixando um horário para a realização da obra durante o dia e vedando-a à noite. Ambas as partes sofrerão uma limitação em seus direitos em benefício da preservação dos mesmos.
b) Colisão com redução unilateral
Na colisão com redução unilateral ocorre a possibilidade do exercício conjugado dos direitos fundamentais, através da relativização de apenas um deles, sem a qual haveria a completa aniquilação do outro direito. É o que ocorre na tutela antecipada e com os demais provimentos jurisdicionais urgentes, que se contrapõem à efetividade da tutela jurisdicional, na qual a lesão ou ameaça de direito não pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, da Carta Magna), e deve ser seguido o direito ao contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LV, da Lei Maior). Com a tutela antecipada, a efetividade da tutela jurisdicional não sofre qualquer arranhão, o mesmo não acontece com os princípios do contraditório e da ampla defesa.
A dimensão de peso e importância
Na impossibilidade da utilização do critério da concordância prática, deve-se utilizar o da dimensão de peso e importância (dimension of weights), fornecida por Ronald Dworkin. Segundo esse critério, quando se entrecruzam vários princípios, deve-se levar em conta o peso relativo de cada um deles.
Somente diante de um caso concreto se poderá resolver o problema da aparente colisão de princípios, mediante uma ponderação (objetiva e subjetiva) de valores. Ao contrário do que ocorre com a antinomia de regras, não ocorre, a priori, critérios formais (meta-normas) nem forma preestabelecida para solução de problemas de conflitos. O intérprete, na análise do caso concreto, verificará, segundo critérios objetivos e subjetivos, qual o valor que o ordenamento, em seu conjunto, deseja preservar naquela dada situação. É o caso da colisão excludente.
Ocorre a colisão excludente, quando a realização concomitante dos direitos em colisão torna-se impossível, pois o exercício de um deles exclui o outro. Nesse caso, será analisado qual o direito fundamental que está sofrendo uma ameaça de lesão mais grave.
Um bom exemplo de colisão excludente foi dado por Gomes Rolim:
Se uma empresa jornalística, com o intento de publicar matéria referente à câncer de pele, resolve estampá-la com foto rara de um portador desta enfermidade, contra a vontade deste, que retrata com detalhes as lesões provocadas como nenhuma outra, infere-se, com facilidade, que o direito à imagem corre perigo de lesão muito mais grave do que o direito à liberdade de imprensa e o direito à informação, pois a fotografia pode ser substituída por um desenho – não daquela pessoa, obviamente – ou pela foto autorizada de outro portador da mesma moléstia, ainda que não tão marcante. Neste caso, ao juiz cabe afastar os direitos à liberdade de imprensa e à informação, resguardando o direito à imagem.
O STF em decisão publicada no informativo nº 257, referente ao caso da cantora mexicana Glória Tréves, aplicou a colisão excludente, julgando procedente reclamação para deferir a realização do exame de DNA, com a utilização do material biológico da placenta retirada da extraditanda. Como se verá adiante, o comentário do relator sobre o fundamento da decisão:
Fazendo a ponderação dos valores constitucionais contrapostos (princípio da proporcionalidade), considera a possibilidade de uma lesão grave ao direito à honra e à imagem dos servidores e da Policia Federal, atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgado pelos meios de comunicação, do que ao direito à intimidade e à vida privada da estraditanda, visto que o exame de DNA pode ser realizado sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho (RCL 2.040-DF, Rel. Min. Néri da Silveira, 21.02.2002).
Percebe-se da análise sobre os critérios adotados para a solução do conflito entre princípios que deve priorizar o critério da concordância prática, principalmente aplicando a redução bilateral, pois se não existe grau de hierarquia entre os princípios, deve-se dar tratamento igual para todos. Se não for possível a redução bilateral, deve-se tentar a unilateral, buscando sempre uma harmonização entre os princípios. Na impossibilidade de aplicação simultânea dos princípios em conflito é que se recorre a dimensão do peso e importância, aplicando a colisão excludente. Em relação a admissão ou não da prova ilícita no processo, se esse for um dos direito em questão, ficaria impossível aceitá-la, sem ferir direito alheio, de modo que a dimensão do peso e importância é o critério aplicado para a solução de conflitos que envolva tais provas, utilizando-se da colisão excludente.
BIBLIOGRAFIA
SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 10. ed, Rio de Janeiro: Forense, 1987.
CASTRO, Eveline Lima de. Interceptação telefônica face às provas ilícitas. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 13. ed. rev. e atual. até dezembro de 2001. São Paulo: Atlas, 2002.
ROLIM, Luciano Sampaio Gomes. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Jus Navigandi, n. 56. [Internet]. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2002.
LIMA, George Marmelstein. A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/aj/dconst0047.htm#_ftnref1. Acesso em: 01 mai. 2003.
Luzivan Falcão Cabral Magalhães é Bacharel em Direito
Elaborado em: 15 de junho de 2003