(*) Grecianny Carvalho Cordeiro
Vem se propalando nos meios jurídicos o entendimento de que o magistrado, logo ao receber a denúncia ofertada pelo Ministério Público, ou seja, antes mesmo do julgamento do mérito, pode vir a dar uma qualificação jurídica diversa daquela apresentada pelo “parquet”, alterando a sua tipificação, de modo a “corrigir os abusos e excessos” porventura contidos na peça delatória.
Entenda-se aqui por denúncia abusiva aquela apresentada distoante dos fatos colhidos por ocasião do inquérito policial ou da peça informativa que lhe serviu de base, acarretando numa tipificação que vai além de sua base objetiva.
Os adeptos dessa “nova moda” justificam a utilização de tal instrumento de controle do Poder Judiciário sobre o Ministério Público, principalmente devido ao fato de que, com o advento das leis 8072/90 e 9099/95, uma imputação excessiva por parte do agente ministerial poderá vir a prejudicar o acusado, causando-lhe graves prejuízos em seu “status libertatis”, como por exemplo, privando-o de se ver beneficiado pelo instituto da fiança e liberdade provisória, como no caso dos crimes hediondos, e impossibilidade de fazer jus à aplicação da transação penal ou suspensão condicional do processo, nas hipóteses previstas pela Lei dos Juizados Especiais Criminais.
O Código de Processo Penal vigente, como é sabido, nos arts. 383 e 384, confere ao juiz, por ocasião da prolação da sentença final, a possibilidade deste vir a dar uma nova definição jurídica do fato, diferente daquela constante na denúncia. Ademais, o art. 43 do mesmo diploma processual, dispõe que o juiz poderá rejeitar a denúncia quando não preencher os requisitos ali exigidos. Indubitavelmente, estas são formas de controle legais contra possíveis abusos existentes na denúncia.
A 4ª Turma do TRF da 1ª Região, através do Recurso Criminal nº 01.00.049819-3/DF, julgado em 02.12.97, DJU 12.03.98, p. 124, tendo como relator o juiz Eustáquio Silveira, entendeu por unanimidade que “1-Dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou denúncia, o juiz só poderá fazê-lo na fase do art. 383 do CPP, ou seja, quando da sentença, até porque a errônea qualificação legal do crime poderá ser corrigida, a qualquer tempo, pelo Ministério Público, até a prolação da sentença final.”
Ressalte-se ainda que, em caso de possível abuso utilizado pelo Ministério Público em seu poder de denunciar, tal abuso poderá ser corrigido mediante a via do habeas corpus, trancando-se a ação penal.
Entretanto, modificar a tipificação feita na denúncia, quando de seu recebimento pelo juiz, sob a desculpa de corrigir os excessos, é algo no mínimo absurdo. É partir do pressuposto de que o magistrado é o único capaz de classificar um crime de forma correta, enquanto que, feita pelo Ministério Público é suspeito. É conferir ao Ministério Público apenas a tarefa de narrar os fatos ensejadores da ação delituosa, deixando o desfecho final para o juiz, que “descreverá com irreprimível precisão” o dispositivo penal infringido pelo denunciado. É dizer: “Dr. Promotor pode contar a história, mas o final deixe comigo”.
É certo que o oferecimento de denúncias abusivas, cuja imputação criminosa vai além do que se encontra no bojo das peças que lhes servem de base é algo inadmissível, uma vez que causa sérios gravames ao réu, todavia, o que não se pode admitir é um controle judicial além do legalmente previsto, por parte do magistrado em relação ao Ministério Público, conferindo àquele a faculdade de retificar a peça delatória para dar uma nova tipificação penal ao fato criminoso, admitir isso significa abrir caminho para que o Poder Judiciário exerça ingerências sobre o Ministério Público, usurpando-lhe funções a si constitucionalmente atribuídas, principalmente a de “dominus litis” da ação penal pública.
Procura-se, na verdade, sob o pretexto de corrigir possíveis abusos por parte do Ministério Público, dar instrumentos para que o Poder Judiciário iniba, restrinja, castre, interfira nas funções de uma instituição à qual compete, por força constitucional, defender a ordem jurídica, o regime democrático de direito, os direitos individuais e sociais indisponíveis.
Uma preocupação nos assoma: Será que o “status dignitatis” e o “status libertatis” da pessoa somente podem ser assegurados através de uma forma de controle judicial que fragiliza uma instituição dignificada, ao longo dos anos, pela sua luta constante contra todo o tipo de arbítrio e ilegalidade?
Será que esse novo delírio jurídico nada mais é do que uma manifestação de temor a um Ministério Público independente, que se fortalece a cada dia, a cada luta contra as injustiças e as arbitraridades?
Destarte, entendemos que o magistrado não pode, de modo algum, a não ser na fase do art. 383 do CPP aplicar a “emendatio libelli” para dar definição jurídica diversa daquela constante na denúncia. Por outro lado, havendo um possível abuso quando da qualificação legal do fato incriminado por parte do Ministério Público, poderá o acusado utilizar-se do “habeas corpus” para ver trancada a ação penal, tendo em vista a inépcia da denúncia.
Afora esses casos , tal “correção de excessos ou abusos contidos na denúncia” por parte do juiz, mostra-se-nos flagrantemente inconstitucional, uma vez que o Ministério Público é o titular da ação penal pública, cabendo-lhe, portanto, a tarefa de, por ocasião do oferecimento da denúncia, classificar o crime em que incorreu o acusado (art. 41 do CPP), bem como a faculdade de vir a modificar tal qualificação jurídica até a prolação da sentença.
(*) A autora é Promotora de Justiça da Comarca de Jaguaretama e Mestranda em Direito Público pela UFC. grecy@for.sol.com.br