A impossibilidade de dispensa da certidão de feitos ajuizados nas escrituras públicas

O novel diploma civil prescreve em seu artigo 108, que “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação, ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta salários mínimos vigente no País”.

Por sua vez, cabe aos notários a indelével atribuição legal de intervir com exclusividade em tais negócios jurídicos, esclarecendo as partes a respeito dos efeitos que o ato a ser praticado irá produzir no futuro e redigindo os instrumentos adequados, tudo visando garantir a segurança e eficácia dos negócios jurídicos.

Sob este prisma, o presente artigo tem por finalidade apontar a impossibilidade de dispensa pelo notário, nas escrituras públicas que importem na transferência do domínio, da certidão de feitos ajuizados em nome do alienante, questão esta que tem chamado a atenção diante do entendimento em contrário de alguns dos integrantes desta honrosa classe.

Reza o artigo 1º da Lei nº. 8.935 de 18 de novembro de 1994, que “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.

Tal segurança expressa em lei se refere à jurídica, ou seja, um mínimo de previsibilidade legal necessária para que o cidadão possa com tranqüilidade estabelecer relações jurídicas válidas e eficazes.

Por conseguinte, cabe ao tabelião, profissional do direito que intervém com exclusividade na lavratura de escrituras públicas, reduzir a termo a vontade das partes, na conformidade da solenidade e formalidade exigidas por lei.

Os requisitos legais para que a lavratura de tal ato esteja abrigado pelo manto da segurança jurídica constam da Lei nº. 7.433 de 18 de dezembro de 1985, a qual foi regulamentada pelo Decreto nº. 93.240 de 9 de setembro de 1986, além do disposto no artigo 215, § 1º, inciso V do Código Civil.

Por sua vez, prescreve o parágrafo 2º, do artigo 1º, da Lei nº. 7.433/85:

Art. 1º – Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.

§ 2º – O Tabelião consignará no ato notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando dispensada sua transcrição. (Sublinhamos)

Observe-se, ainda, a redação do inciso V, do artigo 1º do Decreto nº. 93.240/86:

Art. 1º Para a lavratura de atos notariais, relativos a imóveis, serão apresentados os seguintes documentos e certidões:

(…).

V – os demais documentos e certidões, cuja apresentação seja exigida por lei. (Sublinhamos)

Quanto ao NCC, este estipulou em seu artigo 215, § 1º, inciso V requisito de validade para tal ato, fazendo referência expressa ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à sua legitimidade, assim expresso:

Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.

§ 1o Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública deve conter:

(…).

V – referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato;

(…).

Note-se, a Lei nº. 7.433/85 exigiu, expressamente, a apresentação da certidão de feitos ajuizados, o que também restou implicitamente nos demais diplomas legais, como será adiante demonstrado.

Tais certidões de feitos ajuizados, expedidas com base nos registros constantes da Distribuição Judicial, dos feitos estaduais, federais e trabalhistas, da localização do imóvel e do domicílio do alienante possibilitam, em geral, a prevenção da fraude à execução no caso de ações já ajuizadas, como também, da fraude contra credores. Tal certidão de feitos ajuizados adverte e impossibilita, ainda, a lavratura de ato nulo ou anulável, como a transmissão de bens por pessoa incapaz (interditado).

Percebe-se claramente que o Decreto nº. 93.240/86 não fez menção expressa alguma da necessidade de transcrição no ato notarial da certidão de feitos ajuizados.

Contudo, não se pode olvidar da necessidade implícita de sua apresentação e transcrição na respectiva escritura pública, quer pelo disposto no inciso V, do art. 1º do referido Decreto, quer pelo expresso no § 2º, do art. 1º da Lei nº. 7.433/85.

Justifica-se.

Quando o Decreto nº. 93.240/86, no inciso V, do seu art. 1º, expressamente menciona da necessidade de apresentação dos demais documentos e certidões exigidos por lei, está aludindo diretamente à certidão dos feitos ajuizados – art. 1º, § 2º, da Lei nº. 7.433/85.

Quanto a dispensa da certidão dos feitos ajuizados, outrossim, inexiste previsão legal para tanto, devendo o operador do direito observar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, ex vi do disposto no inciso II, do artigo 5° da Constituição da República.

Além do acima mencionado, o Decreto nº. 93.240/86 jamais poderia, pela sua suposta omissão literal, ter o condão de dispensar aquilo que a Lei nº. 7.433/85 expressamente não dispensou.

Importante, neste ponto, a lição de Kelsen:

“Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior” (Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo: 1998, pág. 232).

Sobre a teoria dos fundamentos de validez das normas, se apresenta o escólio de José Souto Maior Borges:

“(…). Dado o caráter dinâmico do direito, uma norma jurídica somente é válida na medida em que é produzida pelo modo determinado por uma outra norma que representa o seu fundamento imediato de validade” (Lei Complementar Tributária, São Paulo, RT, EDUC, 1975).

Portanto, tendo o Decreto nº. 93.240/86 seu fundamento de validade na Lei nº. 7.433/85, não poderia ir de encontro aos seus ditames.

Contudo, tornou-se praxe para alguns notários a dispensa da certidão dos feitos ajuizados, expedida pelos distribuidores locais, através do tradicional jargão “dispensando as partes, as demais certidões exigidas por lei, exonerando este tabelião de qualquer responsabilidade”.

Atente-se, porém, que quando se pretendeu criar uma situação de dispensa de apresentação de alguma certidão, fez-se expressamente, como no caso do § 2º, do art. 1º do Decreto nº. 93.240/86, situação esta em que o adquirente pode dispensar a apresentação das certidões de tributos que incidam sobre o imóvel, mas responderá, nos termos da lei, pelo pagamento dos débitos fiscais existente.

Percebe-se, pela simples leitura da Lei nº. 7.433/85 e do seu respectivo Decreto nº. 93.240/86, que inexiste qualquer previsão legal para a dispensa pretendida.

A exigência de apresentação da certidão de feitos ajuizados é regulada por norma cogente, cuja aplicação é compulsória e não pode ser mitigada pela vontade das partes, identicamente pela do notário, culminando a sua inobservância, a nosso sentir, na nulidade do ato praticado, independente da existência de prejuízo para as partes ou terceiros.

Conforme visto, é imperativo ao notário observar as disposições legais, das quais não pode se afastar, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, conforme aponta Celso Antônio Bandeira de Mello:

“É o princípio basilar do regime jurídico-administrativo (…). É o fruto da submissão do Estado à lei. É em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.” (Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. pág. 58 e 59)

Para Rogério Medeiros Garcia de Lima:

“No que diz respeito a notários e registradores, o art. 3° da Lei 8.935/94 os qualifica como profissionais do direito. Logo, têm o dever de conhecer os princípios e normas atinentes aos seus ofícios. As suas competências são taxativamente definidas em lei (art. 6°/13). Outrossim, o art. 31, I, considera infração sujeita a sanção disciplinar, a inobservância das prescrições legais e normativas.” (Princípios da Administração Pública: reflexos nos serviços notariais e de registro. Revista Autêntica, 2ª edição, Dezembro/2003. Belo Horizonte: Editora Lastro, p. 23)

À guisa do que foi apresentado, conclui-se que inexiste previsão legal expressa para a dispensa da certidão dos feitos ajuizados, e sendo cogente a norma que elenca os documentos a serem apresentados para a lavratura das escrituras públicas que importem na transferência do domínio, é vedado ao notário autorizar a dispensa de qualquer um destes, dentre os quais a certidão de feitos ajuizados, ainda que assim “solicitado” pelas partes, pois a lei não lhes oportuniza esta faculdade, além do que, sendo a atividade notarial vinculada à lei, é nulo o ato solene praticado à margem destas exigências.

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Luciano Santhiago Ziebarth
advogado na cidade de Blumenau (SC), bacharel em Direito pela Fundação Universidade de Blumenau (FURB), formado pela Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, pós-graduado em Direito Comercial, Direito Penal e Processual Penal pelo INPG/FURB, pós-graduando em Direito Notarial e Registral pelo Instituto Brasileiro de Estudos (IBEST)

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Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ZIEBARTH, Luciano Santhiago. A impossibilidade de dispensa da certidão de feitos ajuizados nas escrituras públicas . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1589, 7 nov. 2007. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10623. Acesso em: 07 nov. 2007.

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