José Carlos Gobbis Pagliuca
Muito se ouve entre os “fronts” acadêmicos e forenses sobre a inaplicabilidade da imputação objetiva no Direito Penal brasileiro. Diz-se, duma maneira ou outra, que tal teoria é inservível no Brasil, que aqui é impraticável, insubsistente ou até mesmo assaz liberalizante, chegando a dificultar em muito, a punibilidade. Sem embargo dessas opiniões, não são, “permissa venia”, robustadas de veracidade. Partem de pessoas que, ou estudaram e não compreenderam o assunto, ou dele não aquiesceram e criticam por discórdia, ou sequer tiveram contato, mesmo que superficial sobre o tema e que falam apenas para lançar cizânia no seio jurídico-penal. a imputação objetiva não traz consigo grande possibilidade de aceitação parcial. É um instituto um tanto que radical. Ou dele se gosta ou se odeia. Porém, antes dessa tomada de posição, imprescinde-se, pois, de, pelo menos, algumas leituras a respeito. Duma forma ou doutra, para isso, não basta apenas e tão somente estar voltado para a leitura. É preciso, antes de tudo, uma preparação do espírito. Isso se explica porque a imputação objetiva altera alguns dogmas jurídicos que, para nós, amoldados no Positivismo jurídico, temos, pela própria formação, reticência, quer na aceitação, quer na própria compreensão temática. O pragmatismo dominante em nosso sistema penal, trazendo conceitos apriorísticos já arraigados e fechados numa determinada proposição legal (a norma jurídica) impede, de certa forma, a liberdade de alcançarmos outra interpretação senão aquele determinada no comando normativo em testilha quando do evento naturalístico real. Daí porque, para a compreensão e quiçá adoção da imputação objetiva, deve-se iniciar o estudante como que seu conhecimento jurídico não fosse dogmático ou pragmático, mas sim, norteador apenas, de sua interpretação fática quando da análise duma tal conduta típica. Isso é claro. Não se mudam conceitos ou formações com passes de mágica, como ainda não se alteram sistemas de interpretação apenas porque algo novo flui no ar. Tudo deve ser compartilhado, detalhado, comparado e viabilizado, duma forma ou doutra, consoante o mimetismo que cada instituto antigo possua em face da nova descoberta. Assim se dá nas ciências exatas e assim se deve ocorrer também nas de espírito, como o Direito. Não podemos, da noite para o dia, p. ex., chegarmos para um cristão conhecedor das escrituras e dizer a ele simplesmente que a Santíssima Trindade, que é um dogma religioso, não bem assim como ele acredita, que a tríplice personalidade divina está mal formulada e necessita de novas experiências para a aplicabilidade dogmática da mesma fé. Tal pessoa não nos ouvirá, ou, se o fizer, haverá de lançar a nós a situação de heréticos, não porque simplesmente contrariamos um dogma, mas porque ainda, aquele asceta não aceita a discussão proposta. Caso tal pessoa tenha se preparado e colocado disposto à análise científica, filosófica ou por qualquer outro ramo do conhecimento à discussão daquilo, seguramente, outras adjetivações lançará, porém a de heresia dificilmente restará. De igual modo podemos agir com uma pessoa islâmica. Diga a esta que não há mais necessidade de que ela volva-se para Meca quando de suas orações, mas não diga o porquê disso. A inaceitabilidade será patente. Porém, se antes do discurso modificatório houver uma preparação adequada para a discussão da ratio, outros pontos de vista poderão ser atingidos. Assim se sucede no Direito Penal com a nossa imputação objetiva. Devemos, para seu estudo, partimos com a alma limpa, deixando nosso conhecimento pretérito na retaguarda, para, ao primeiro sinal de incompatibilidade, podermos impugnar a tese proposta e justificarmos nosso inconformismo. Mas o que se propõe aqui, não é explicar ou melhor, tentar mostrar o que seja a imputação objetiva, trabalho que tentamos, já há algum tempo realizar. A proposta é exibir que a imputação objetiva existe, é real e pode ser aplicada, até com certa facilidade no Brasil.
Por isso, baixo seguem alguns exemplos, bem resumidamente, de casos reais onde, duma forma ou outra, houve a presença da imputação objetiva na resolução jurídica.
O caso do Serviço Funerário
Dois funcionários do Serviço Funerário Municipal são encarregados de realizar a remoção de cadáveres do velório para o local do sepultamento. Numa dessas ocasiões, deparam-se com um defunto, já no esquife, pronto para ser removido, mas expelindo secreção natural (comum em todos os cadáveres) em razão da morte, pelos ouvidos e narinas, embora com tamponamento anterior com algodão realizado pela enfermagem. Mas tal serviço não operou o efeito devido e assim, não podem efetuar o transporte, porque é vedado, pela municipalidade, o carregamento nessas situações. O que fazem os funcionários? Propõem aos parentes do falecido que, por determinada quantia, realizem, eles, funcionários, novo tamponamento. Este serviço não faz parte da função dos oferecedores. Apenas se valem da condição da função para poderem oferecer seus préstimos, dada a ineficiência de outros setores particulares ou públicos. Mas os parentes (aqui vítimas) não aceitam o pagamento e reclamam à polícia. Há acusação de corrupção passiva ou até mesmo concussão (artigos 317 e 316 do Código Penal). Não há culpabilidade dos funcionários pela imputação objetiva.
O que quer a lei é resguardar a integridade moral do governo, por intermédio da boa conduta de seus agentes.
Sob o prisma unicamente estatal, o fato é reprovável, tanto que na parte sindicante, os averiguados foram exonerados.
Porém, sob o aspecto jurídico-penal, não há reprobabilidade, já que se tratava de fato inerente aos serviços médicos, não de transporte.
Enfim, os agentes não criaram e nem aumentaram risco algum ao bem jurídico com suas condutas.
O caso da cura espiritual
Determinada pessoa F sofria de uma moléstia gravíssima e, desalentada com o tratamento terapêutico convencional e pretendendo também se salvar a qualquer modo, procurou por G, conhecido por curas espirituais sem ministrar farmacopéicos. G, conhecendo a doença de F, já que por esta exposta a situação, diz para F suspender sua medicação alopática e tomar apenas água. F aquiesce, mas , dias após, vem a falecer. G responde por homicídio pela imputação objetiva, não sendo, num primeiro momento, necessário se indagar sobre sua culpabilidade estrita. Houve, o que na imputação objetiva se chama incremento do risco. Sinteticamente, G conhecendo o risco de morte a que se sujeitava F, fê-la sustar seu tratamento, tornando aquela, totalmente dependente da conduta de G, que, sabedor da potencialidade daquele risco, aumentou-o ao receitar tão só água.
O caso da morte na cadeia pública
D, carcereiro, conduz V, preso, e, ao colocá-lo num xadrez onde já existem outros encarcerados, fala em alta voz, referindo-se a V: “você é cagueta, hein !” Mais tarde, V é morto pelo outros presos, motivos pela acusação da delação. O carcereiro responde pela morte também, segundo a imputação objetiva. A criação do risco de morte, ao pronunciar aquela frase na presença de outros presos foi fundamental, ou seja, de total nexo causal entre a conduta e a morte.
A novação da dívida em cheque sem fundos
X recebe um cheque sem fundos de Y. No decorrer da apuração policial, há novação da dívida, porque Y assina uma nota promissória em substituição ao cheque. Porém, também não resgata o segundo título. Não há estelionato por parte de Y. A novação da dívida fez com que o dano originariamente criado (ao patrimônio) a X, foi por este superado ao concordar com que a dívida fosse renovada, sem recebê-la. O dano original ficou restabelecido ao se transformar uma situação inicialmente penal em civil. Pela imputação objetiva, o segundo título não pode ser considerado como criador de risco ao patrimônio, já que a vítima tinha pleno conhecimento desse perigo, pois decorrente duma inicial inadimplência. Não há causalidade, pois a superveniência de causa já era, de certa forma, esperada.
Caso da “fechada” no trânsito
W, uma motorista, conduz seu carro por determinada rua da Capital, pela faixa exclusiva de ônibus que esta à direita da via. Ao lado esquerdo (claro) de W, segue outra motorista Z (não é preconceito contra as mulheres, é caso real). Z, pretendendo entrar à direita, ultrapassa e repentinamente “fecha” W. Essa manobra brusca faz com que os carros colidam e W, que transitava à direita vai à calçada e lesiona pedestres. Qual motorista cometeu o delito culposo? Pela teoria da equivalência, ambas, pois não se compensam as culpas e se W não estivesse na faixa de ônibus, o resultado não teria ocorrido como ocorreu. Porém, não assim pela imputação objetiva. Vejam que esta vai diretamente à causalidade real, factual mesmo do resultado. Assim, mesmo que na faixa exclusiva estivesse um coletivo, uma viatura do Corpo de Bombeiros ou uma assistência e Z realizasse sua manobra imprudente, os resultados lesões ocorreriam da mesma forma, em razão do que se denomina cursos causais hipotéticos. Qualquer veículo que fosse “fechado” e ganhasse o passeio público teria a mesma potencialidade lesiva, sendo que este veículo transitava sem infringir qualquer norma. Doutra banda, pelo exemplo em reverso, se W, sabedora da vontade de Z em entrar à direita e permanecesse na faixa restrita, impedindo ou medindo motores com Z e esta manobrasse e o carro de W atropelasse alguém, aí sim W também responderia pelo evento, pois aumentou o risco, por pura imprudência.
Todos esses exemplos foram extraídos de casos ocorrentes na comarca de São Paulo, sendo alterados apenas os designativos pessoais.
Com isso, singelamente, procurei apresentar a viabilidade, legalidade e aplicabilidade da imputação objetiva, já e agora. Não usemos mais, as sábias palavras de Einstein, há mais de cinco décadas: “época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito de um átomo”.
São Paulo, 26 de outubro de 2000.
José Carlos Gobbis Pagliuca é Promotor de Justiça da Capital, mestrando em Processo Penal , PUC/São Paulo e doutorando, Uned/Madrid.