João Damasceno Borges de Miranda*
O Imposto sobre Circulação de Mercadorias recebeu uma nova roupagem com a promulgação da Carta Política de 1988, tendo sido acrescido dois fatos sócio-econômicos ao seu conceito, quais sejam: o Serviço de Transporte e o Serviço de Comunicação. Assim, passou a receber mais um substantivo em sua composição: Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.
O novo contexto promulgado pela Constituição nos fez tomar ciência de uma diferente realidade jurídica, pois eis que a definição ampla de incidência tributária sobre circulação de bens passa agora a ser previsto com o diferencial de dois tipos de serviços alocados aos Estados, posto que retirados dos Municípios.
O conceito de incidência tributária sobre a circulação de bens estava definido na seguinte ordem: Produção e industrialização, ao ente Federal União. Circulação da produção, aos Estados. E, prestação de serviços, aos Municípios. Parecia-nos tudo bem orquestrado e relativamente sem atritos com as questões de conflitos de competência.
Ocorre que a Constituição, com o seu poder constituinte originário, inovou a ordem. Esta inovação ainda não foi muito bem digerida pela ordem normativa, muito menos pelos súditos, e bem assim pelos que estudam e laboram o tema.
Este singelo artigo, motivado pelas dúvidas suscitadas pela proposição do tema e com vistas a uma pesquisa para conformar a incidência do imposto sob a ótica da nova construção do arquétipo tributário dado pelo legislador constitucional, busca expor sucintamente a boa nova em que os mundos acadêmico, jurídico e estatal tanto se digladiam.
Não adentraremos noutros temas polêmicos, v.g., Substituição Tributária, contudo, faremos uma exposição franca do desenho tributário do ICMS em sua atual conformação constitucional e legal.
Breve conceituação do ICMS e sua definição constitucional.
A regra-matriz de incidência do imposto sobre circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte intermunicipal/interestadual e de comunicação, tem como base de incidência a circulação de bens e serviços, levando em consideração a transferência da titularidade de coisa móvel destinada ao comércio, com habitualidade, bem como a prestação do serviço de qualquer tipo de transporte e qualquer tipo de comunicação.
A ordem impositiva para efeito deste imposto, peculiar em nosso sistema vigente, fez atribuição para a incidência ser genérica sobre as operações relativas à circulação de mercadorias, dando qualificação especial aos atos realizados pelos comerciantes, industriais, produtores e prestadores; de modo que preserva a natureza mercantil deste tributo, agregando-se aos negócios mercantis sucessivos. Aduz-se ainda, na atualidade, o perfil de mero importador de mercadorias ou de bens para consumo ou para o ativo.
A Constituição da República Brasileira fixou competências impositivas de tributos aos entes que compõem a União. Neste ato de enunciar, enumerou quais tributos são destinados em exclusividade aos referidos entes: União, Estados e Municípios. Ao Distrito Federal coube tanto os tributos estaduais quanto os municipais. O caput do ART. 155 enumera, com destinação de competência, quais os tributos pertencentes aos Estados e ao Distrito Federal, enfeixando-os em seus incisos.
O imposto foi adotado com o critério de atribuição de competência tributária consistente em indicar a materialidade de certos fatos que podem ser descritos pela legislação estadual e distrital como aptos a determinar a obrigação de pagar ao Estado/Distrito.
O ICMS é o imposto que encontra na Constituição o maior número de disposições regulando aspectos de sua instituição, totalizando-se 44 (quarenta e quatro) após a edição da Emenda Constitucional nº 33 de 11.12.01. Esta quantidade de normas concentra o estudo do imposto no plano constitucional, a partir do qual as conclusões que forem extraídas irão repercutir seriamente em toda legislação complementar e ordinária.
Vários temas não deveriam figurar na Constituição, contudo, ao serem postados com áurea de mandamento constitucional, assumiram relevância idêntica aos demais, devendo ser examinados em conjunto, buscando-se uma coerência de diretriz.
Há que se salientar que a legislação complementar e ordinária somente será constitucionalmente válida se estiver conforme a tal preceito, vedado que é descrever fatos que não se insiram nesse âmbito material. Por outro lado, somente estarão abrangidos pela tributação os fatos que, além de enquadrados no núcleo material constitucionalmente previsto, estejam contemplados em dispositivo legal expresso.
Composição de suas regras-matrizes de incidência.
Com base na ordem constitucional, primordialmente, que exaure os ditames do aludido imposto, e nos demais parâmetros estabelecidos por leis ordinárias estaduais, que se constituem como regulamentos, e expedientes administrativos, pode-se então construir, in generum, a regra-matriz de incidência do imposto sobre circulação de bens e serviços, tendo como titulares do mesmo os Estados Federados e o Distrito Federal. A norma jurídica tributária do imposto supra assim se desenha:
Previsão Legal: ART. 155, II, §§ 2º e 3º da CF/88; Decreto-Lei nº 406/68 e Lei Complementar nº 87/96. Sem olvidarmos do período de transição entre a Constituição de 1988 e a inserção da atual LC 87/96 no ordenamento, em que vigorou o Convênio dos Estados para o ICMS, nº 66/88, e suas modificações sucessivas.
HIPÓTESE (DESCRITOR):
1) Critério Material: ser produtor, industrial ou comerciante, cuja habitualidade faça circular/traditar negócios e riquezas de mercancia; prestador de serviços de transporte extra municipal e de comunicação; simples importador por qualquer operação/prestação iniciada no exterior ainda que destinada ao ativo fixo ou bem de consumo. Ou, dizendo de outra forma, a incidência do ICMS alcança: (i) operações relativas à circulação de mercadorias; (ii) prestação de serviços de comunicação; (iii) prestação de serviços de transportes interestadual e intermunicipal; (iv) operação de importação de mercadoria do exterior; (v) serviços de transporte e comunicação cuja prestação se iniciou no exterior.
2) Critério Espacial: esse imposto assume feição nacional, por isso o mesmo tem sua incidência em todo território da União para os que transacionam mercadorias ou efetivam prestação de serviços, cabendo a individualização das operações/prestações conforme a competência territorial de cada Estado Federado, bem como ao regime de operações de intercâmbio entre os estados para o efeito da não-cumulatividade.
3) Critério Temporal: o momento em que se realiza, totalmente, o fato social de mercancia ou prestação de serviços desenhados na hipótese normativa de incidência tributária, fazendo surdir o liame abstrato entre as pessoas obrigadas em direitos e deveres correlatos.
CONSEQÜÊNCIA (PRESCRITOR):
1) Critério Pessoal:
Sujeito Ativo: Estados Federados e o Distrito Federal;
Sujeito Passivo: quaisquer pessoas, físicas ou jurídicas, que pratiquem atos de circulação de mercadorias com habitualidade e destinação de mercancia; que prestem serviços de transporte ou de comunicação; simples importador de bens ou serviços.
2) Critério Quantitativo:
Base de Cálculo: o valor da operação de circulação de mercadorias, o valor da prestação de serviços, o valor do bem ou serviço importado com os acréscimos legais, observado o princípio da não-cumulatividade e o regime desta operação entre os estados.
Alíquota: variável, de acordo com a base de cálculo, com a operação ou prestação. O regime de alíquotas entre os estados é fixado pelo Senado, não sendo permitido percentuais abaixo do mínimo, tampouco acima do máximo.
Serviços de comunicação subsumidos ao Imposto.
Após a breve definição constitucional do imposto e do desenho de sua regra-matriz de incidência, passaremos a um ponto ainda polêmico para os estudiosos do tema, qual seja: a incidência do ICMS sobre os serviços de comunicação.
O inciso II do ART. 155 da CF/88 dispõe que o imposto sobre circulação de bens mercantis – lato sensu – seria destinado aos Estados e Distrito, e ainda, avocou para os mesmos, outro tipo de imposto sobre circulação de bens (riquezas ou fatos econômicos), agora de serviços, cuja competência geral foi destinada aos municípios, conforme estabelece a cabeça do ART. 156.
Ao dispor competencialmente sobre duas hipóteses de impostos que gravam a circulação de riquezas na modalidade de serviços prestados, a Carta Maior açambarcou literalmente, chamando a si exclusivamente esta inovadora competência deferida aos Estados, privando os outros (Municípios) da respectiva vantagem impositiva, monopolizando as hipóteses de incidência do imposto sobre serviços quanto a prestação de qualquer tipo de transporte extra municipal e qualquer tipo de comunicação.
E tratando a materialidade do imposto, eis que a CF/88 informou a incidência sobre operações relativas a circulação de mercadorias e alguns serviços, operações e prestações estas que não possuem um critério de materialidade comum e unificador; posto que a reunião de tais incidências não decorre do fato de pertencerem ao mesmo gênero ou possuírem a mesma natureza, mas é fruto exclusivo da vontade política do legislador constitucional. E esta circunstância traz conseqüências no plano de aplicação do tributo, pois as três figuras (circulação, transporte e comunicação) são conceitualmente distintas e as conclusões que forem extraídas em relação a uma poderão ser totalmente inaplicáveis às outras.
Com efeito, parece-me que o legislador tentou, com outra linguagem, dar uma roupagem de Imposto sobre Valor Agregado – IVA ao que conhecemos como ICMS. Talvez; apenas uma cogitação.
Renato Ferrari(1), em crítica ao nosso atual Sistema Tributário, registra que o Brasil precisa urgentemente adotar o IVA com a seguinte formulação: “adoção do Imposto sobre Valor Agregado – IVA, incidente sobre mercadorias e serviços, mediante alíquota única nas operações internas e interestaduais, conforme a essencialidade, subdividida a alíquota entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios em percentuais adequados, feito o recolhimento diretamente a esses entes, cabendo exclusivamente à União a sua instituição e legislação, pouco importando manter-se a nomenclatura ‘circulação de mercadoria e serviços’. ”
Em avanço, devemos nos lembrar que a Constituição teve o cuidado em informar taxativamente que a prestação de serviços de transporte gravada pelo imposto em tela seria intermunicipal e interestadual, mas não fez a mesma distinção quanto ao serviço de comunicação.
Ademais, cabe frisar, comunicação não significa tão somente telecomunicações, como pretendem alguns. Ou, o conceito de telecomunicações não é suficiente para abranger o que é comunicação, muito pelo contrário. Telecomunicação é uma espécie do gênero comunicação.
Desta forma, ao trazer para a competência estadual este tipo de serviço, trouxe também todas as hipóteses de digressão do que vem a ser comunicação, ou seja, todas as formas e hipóteses existentes no campo da comunicação.
A Constituição também destinou competência normativa à Lei Complementar para tratar do tema em comento, pois assim se infere do inciso XII e alíneas, do § 2º do ART. 155.
Por seu turno, a Lei Complementar que veio dar respaldo ao quanto autorizado pela Constituição, informa que os serviços onerosos de comunicação são passíveis da incidência do ICMS, sendo estes realizados “por qualquer meio e de qualquer natureza.” (ART. 2º, III LC 87/96).
Os postulados legais anteriores à Constituição ainda mantêm vigência, óbvio e especialmente nos pontos que não colidem com a Carta Política, de modo que a própria Carta Magna determina a lavra de nova lei complementar para estipulação dos impostos sobre serviços de competência exclusiva destinada aos Municípios, fazendo a ressalva que estes não compreenderiam os serviços deferidos em competência aos Estados (Inciso III do ART. 156), quais sejam: transportes extras municipais e comunicação.
Só este aspecto é que faz gerar dúvidas ou conflito de competência, inda mais que até a presente data não foi editada lei complementar que trata dos impostos municipais no campo dos serviços prestados, valendo, pois, ainda nos dias de hoje, o Decreto-Lei 406/68 e a LC 56/87. Este fato é inadmissível perante o nosso Legislativo, visto que tem acarretado inúmeros prejuízos aos Municípios e aos Estados e desestímulo de investimentos. E o pior, desnecessárias discussões por conflito de competência.
Somente com a edição de lei complementar dispondo sobre os serviços de competência dos municípios, para efeito de incidência tributária, é que se dissipará a dúvida atual quanto a esta área cinzenta de tributação do imposto que grava a circulação de bens e, atualmente, com dois gêneros de prestação de serviços. Ora, assim como o ICMS mereceu uma nova L.C., superando o D-L. 406/68; de igual sorte o ISSQN carece de uma nova L.C. Não pelo simples fato do comando contido no art. 156, III da CF/88, mas pelos tempos modernos atuais que a exigem com a criação de novas hipóteses e formas de prestação de serviços, dado o dinamismo do mercado das exigências e necessidades humanas. Evidentemente, os municípios não poderão ficar a espera de uma nova L.C. para obter rendas ou sofrerem amputação, mas devem pressionar o Congresso para a elaboração de uma nova L.C., especialmente em virtude dos impostos que lhes foram tirados: serviços de transporte extramunicipal e comunicação.
Reiterando, o raciocínio é que qualquer hipótese que se configure como prestação onerosa de serviços de comunicação estará dentro da abrangência da incidência do ICMS, delegados aos Estados, em franca conformidade com a Constituição e com a Lei Complementar 87/96.
E por comunicação entende-se qualquer forma onerosa de se fazê-la: telecomunicações, internet, difusão, radiodifusão, televisão, propaganda, “walk-talk”, “megafone”, “alto-falantes de ruas”, “carros de som”, etc., etc., etc., ou, como estipula a lei – “a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, por qualquer meio e de qualquer natureza”.
Lembrar que em recente decisão – RESP 323358/PR, 1ª Turma, Min. José Delgado – o STJ julgou considerando que a internet remunerada seria passível de incidência do ICMS.
É por óbvio que, ao se fixar a nova competência dos impostos municipais sobre serviços, excluída a comunicação, deverá ser observado ou ressalvado os casos onde haverá a preponderância funcional do prestador de serviços ou comerciante, ademais a lei exige sempre a prestação de serviço de comunicação na forma onerosa. Assim, nas comunicações internas não haveria hipótese de incidência por não ser onerosa. (v.g., serviços de táxis que possuem comunicação para os associados para o atendimento de clientes, intranet, etc.). A comunicação é inerente ao serviço prestado, e assim por diante.
Conclusão
Destarte, conforme o exposto, frisando mais uma vez que a Constituição não fez distinção entre serviços de comunicação intramunicipal, como o fez com o serviço de transporte, de modo que onde o legislador constitucional não distinguiu não cabe ao legislador ordinário ou ao intérprete fazê-lo. Portanto, mesmo nos serviços de comunicações intramunicípio haverá a incidência do imposto.
Não se discute o fato de comunicação ser ou não serviço no sentido econômico de sua prestação, ou se de alguma forma é produto. A diferença é que a Constituição, mesmo ciente que este tipo de atividade econômica é serviço, destinou a competência impositiva aos Estados, retirando-a dos Municípios, portanto, sujeito ao ICMS.
* O artigo também foi publicado em: Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 46, pp. 153/158, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; e Repertório de Jurisprudência IOB, nº 23, Caderno 1, São Paulo: IOB, pp. 885<3, 1ª Dez/2002; e Síntese Jornal, nº 69, pp. 11/14, Rio Grande do Sul: Síntese, Nov/2002. Nota de rodapé 1 - Carta Magna do Contribuinte, in Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 32, pág. 54, São Paulo: RT, 2000. João Damasceno Borges de Miranda é advogado em Salvador, especialista em Direito Tributário pelo IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e sócio do escritório CNA Advocacia - Carlos Nicácio & Associados Advocacia S/C.