A inconstitucionalidade da figura do Delegado Especial

(*) Grecianny Carvalho Cordeiro

A Constituição Federal de 1988, no parágrafo 4º do art. 144 dispõe que as polícias civis serão “dirigidas por delegados de polícia de carreira”, as quais estão incumbidas de exercer “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” Portanto, a investidura no cargo de delegado de polícia prescinde da “aprovação prévia em concurso de provas ou de provas e títulos”, nos termos do art. 37, II da Carta Magna.

Todavia, a despeito desse mandamento constitucional, tem-se verificado que a realidade prática mostra-se-nos completamente diferente, senão vejamos:

A carência de delegados de carreira concursados tem levado o Estado-administração a lançar mão de “meios alternativos” para suprir tal falta, criando, assim, através de ato do Secretário de Segurança Pública, tal como no Estado do Ceará, a figura denominada de Delegado Especial, formada, via de regra, por policiais civis bacharéis em Direito, policiais militares ativos e inativos.

A esses delegados, ditos especiais, tem sido dada a incumbência de representar a polícia judiciária nas inúmeras delegacias de polícia espalhadas pelo interior do Estado, exercendo todas as atribuições constitucionais inerentes aos delegados civis de carreira.

A outra conclusão não podemos chegar senão a que a criação de Delegados Especiais é flagrantemente inconstitucional, posto não serem os mesmos concursados e, no mais das vezes, sequer policiais civis, ferindo, destarte, de forma frontal, os dispositivos constitucionais acima referidos.

O próprio Supremo Tribunal Federal, numa ação direta de inconstitucionalidade, acórdão 070787, Boletim 87, Ano 15-1995, chegou a se pronunciar da seguinte forma: “Os ocupantes de cargos outros na Polícia Civil não podem ser “transferidos” para o cargo de delegado de Polícia, sem que essa nova investidura seja necessariamente precedida de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. A jurisprudência do STF não tem transigido com a necessidade de observância, pelo Poder Público, do postulado constitucional do concurso público, eis que a investidura em cargo ou em emprego público – ressalvadas as nomeações para cargos em comissão – não prescinde da prévia aprovação do candidato naquele certame.” (STF — em Ses. Plen., publ. em 18-8-95 — ADI 1254-1-RJ — Min. Celso de Mello — Governador do Estado x Assembléia Legislativa — Raul Cid Loureiro)

Todavia, diante da realidade interiorana, notadamente naqueles municípios onde a criminalidade, via de regra, é elevada, onde o efetivo policial militar é irrisório, onde a delegacia/cadeia pública possui estruturas precárias, onde inexiste sequer viatura policial, como fica a figura do Delegado Especial que pratica os atos próprios de Delegados Civis de carreira, qual seja, instaurando e presidindo a feitura de inquéritos policiais, procedendo as diligências necessárias à apuração e elucidação das infrações penais, representando pela decretação da prisão preventiva e temporária, realizando o auto de prisão em flagrante, etc ?

No que pertine à confecção do inquérito policial por Delegado Especial, há que se dizer que o mesmo, enquanto inquérito policial é nulo, posto que elaborado por pessoa estranha àquela constitucionalmente competente (art.144 § 4º), no entanto, isso não o torna totalmente imprestável, afinal, se ocorrido um crime, este foi elucidado em sua autoria e materialidade, embora através de Delegado Especial, pode ser o mesmo considerado como mera peça informativa, da qual pode se servir o Ministério Público para propor a ação penal cabível.

Desse modo, embora respeitando os posicionamentos em contrário, considero absurda a opinião, defendida por alguns, de que qualquer peça confeccionada por Delegado Especial deveria ser completamente rejeitada ou desmerecida pelo Ministério Público, não devendo este aceitá-la, sob hipótese alguma, quer como inquérito policial, quer como mera peça informativa.

Ora, como é fartamente sabido, o inquérito policial não é considerado como imprescindível para o oferecimento da denúncia por parte do Promotor de Justiça, tanto assim que este poderá dispensá-lo, conforme prevê o art. 39, § 5º e art. 46, § 1º do CPP.

Consideramos ainda imprudente, “data vênia”, o entendimento de que, diante do cometimento de um crime, não havendo delegado civil de carreira na Comarca, deveria ser a infração penal apurada somente pelo respectivo Delegado Civil Regional, então competente para instaurar e presidir o competente inquérito.

Os Promotores de Justiça do interior do Estado, – que vivenciam a realidade de seus comarcandos, marcada pela miséria e pela descrença na Justiça, principalmente no nosso sertão nordestino, onde o coronelismo e o voto de cabresto sempre imperaram, onde o Estado Democrático de Direito é um termo por muitos ainda desconhecido, -sabem que esperar meses e meses para que um Delegado Civil Regional conclua um inquérito policial é algo no mínimo desumano, afinal, aquela comunidade interiorana, já tão pequena, espera ver seus crimes solucionados e seus responsáveis devidamente punidos o quanto antes.

Não se está dizendo aqui que o Ministério Público deva ser conivente com a figura inconstitucional do Delegado Especial, de modo algum, mas tão somente que o Promotor de Justiça, diante da omissão do Estado-administração, não pode simplesmente cruzar os braços e aguardar por meses que o Delegado Regional respectivo confeccione um inquérito policial, ou por anos, para que o Estado realize concurso para delegado civil de carreira, para, então, oferecer a denúncia.

Ademais, nada obsta a que as informações elucidativas -que são-, colhidas por um Delegado Especial, sejam recebidas pelo Ministério Público como peças informativas para o embasamento da peça delatória.

O que não se pode admitir é que o Ministério Público se omita, deixe de promover a “persecutio criminis” sob o pretexto amarelo de que inexiste delegado civil de carreira na sua respectiva Comarca para elaborar um inquérito policial, afinal, o Ministério Público, como fiscal da lei e representante da sociedade, “incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” , deve utilizar-se dos meios legais alternativos disponíveis ao exercício de suas funções, procurando contornar as deficiências materiais do Estado-administração, sob pena de cair no mais absoluto descrédito.

(*) A autora é Promotora de Justiça da Comarca de Jaguaretama e Mestranda em Direito Público pela UFC. grecy@for.sol.com.br

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