A inconstitucionalidade da Súmula Vinculante nº 5

A Ordem dos Advogados do Brasil sempre foi uma instituição que defendeu com vigor os direitos dos cidadãos e a Democracia brasileira e agora deve mais uma vez liderar uma cruzada jurídica em defesa dos cidadãos.

No dia 7 de maio último, o Supremo Tribunal Federal editou sua quinta súmula vinculante, em sentido diametralmente contrário à Súmula n. 343 do STJ, [01] que afirma: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

Tal súmula vem sendo festejada por parte da comunidade jurídica por assegurar a manutenção de milhares de decisões proferidas em processos administrativos (aplicando sanções) trazendo, como afirmam, uma suposta “segurança jurídica”.

Ao que parece, a interpretação jurídica adotada parte do pressuposto que a decisão tomada, pelo simples fato de existir, já traz segurança e que a ausência de defesa técnica, produzida por um advogado, é desnecessária para que o cidadão possa exercer o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, ou seja, todos os princípios do modelo constitucional de processo.

No entanto, esse entendimento não traduz um “amor” pela segurança jurídica em relação a processos administrativos já julgados. Parte do pressuposto que o Supremo Tribunal Federal, por uma busca de uma eficiência inconstitucional, pode esvaziar o modelo constitucional de processo, permitindo que decisões desprovidas de um processo constitucional possam ser consideradas legítimas.

Ora, quando a Constituição da República estabelece princípios processuais constitucionais, tem por objetivo garantir ao cidadão a possibilidade de atuar com competência na defesa de seus direitos. A “competência de atuação” (Handlungskompetenz) corporifica-se exatamente na capacidade da parte antecipar as estratégias da outra e de se posicionar diante das argumentações e decisões, o que obviamente se aplica em qualquer estrutura normativa legítima formadora de provimentos (processo), judicial e administrativo (WASSERMANN, Rudolf. Der soziale Zivilprozeß: Zur Theorie und Praxis des Zivilprozesses im sozialen Rechsstaat. Neuwied, Darmstadt: Luchterhand, 1978, p. 140).

Perceba-se que a defesa técnica e a participação de um advogado não é uma necessidade corporativa de uma instituição como a Ordem dos Advogados, mas uma garantia de qualquer cidadão (servidor ou não) de poder atuar de modo competente e técnico na defesa de seus direitos.

E, sem dúvida, o Supremo Tribunal Federal não pode interpretar os arts. 5º, inc. LV, e 133 da Constituição da República, que asseguram o direito a um defensor ou do direito a uma defesa técnica sob o argumento de pseudo-eficiência apresentado. Pois tais preceitos constitucionais, com o objetivo de garantir uma correção do desenvolvimento processual, pressupõem “[…] a presença de sujeitos capazes de esclarecer com consciência e conhecimento de causa no emaranhado de questões que a realidade processual impõe assistência; nem sempre a pessoa diretamente interessada é suficientemente provida de conhecimento das leis e de experiência no campo processual; sem contar que uma conduta processual consciente pode encontrar obstáculo na mesma componente emocional, que frequentemente caracteriza a participação pessoal no processo” (CHIAVARIO, Mario. Processo e garanzie della persona. Milano: Giuffrè, 1984. v. II, p. 135-136). Essa atividade processual é, sem dúvida, atribuída no Direito brasileiro ao advogado, de forma que todo cidadão deve ter a garantia de se valer de uma defesa técnica, mediante a escolha de um advogado privado ou mesmo mediante o subsídio de um advogado público (defensor público).

Ao se permitir a interpretação que se inaugura, em breve, corremos o risco de termos “processos” sem devido processo legal, sem contraditório, sem ampla defesa. Afinal, o advogado seria também dispensável no inquérito policial, porque se trata de “procedimento administrativo”? E nos processos administrativos disciplinares junto ao Conselho Nacional da Magistratura? E ao Conselho Nacional do Ministério Público? E nas Comissões parlamentares de Inquérito? E no julgamento das contas públicas perante os Tribunais de Contas? Por que seriam processos “não-judiciais”? Defesa técnica por advogado também seria dispensável nesses casos?

Há, portanto, pelo menos, duas questões importantes aqui:

Em primeiro lugar, processo administrativo disciplinar pode levar, entre outras coisas, mas em última análise, à perda do cargo pelo servidor público. Cabe lembrar do art. 41, § 1.º, II e III da Constituição da República, que equipara, inclusive, o processo administrativo – disciplinar – ao processo judicial. Que se aplique ao processo administrativo as mesmas exigências do processo judicial. Exatamente o próprio art. 5.º, LV, da Constituição da República.

O Supremo Tribunal Federal não pode subverter o princípio da ampla defesa nos processos administrativos, como se a constitucionalização deste princípio autorizasse o STF a desnaturalizar tal princípio a ponto de esvaziá-lo totalmente. O cidadão leigo (servidor ou não), no quadro de complexidade jurídica atual, em princípio não possui competência de atuação a permitir a defesa de seus direitos tecnicamente e nenhum argumento de eficiência pode obscurecer essa realidade que a súmula n. 5 tenta encobrir. Não há garantia de “acesso à justiça” sem advogado competente, e isso por uma questão de garantia do princípio da igualdade.

Que hermenêutica “constitucional” é essa que subverte os institutos jurídicos exatamente em razão da sua constitucionalização? Ampla defesa é um instituto jurídico-processual e não se pode desconsiderar sua história institucional em nome de um falso imperativo axiológico de eficiência custe o que custar. Afinal, estaremos vivendo o que o Prof. Lenio Streck tão bem denuncia, uma espécie de “estado de exceção hermenêutico”, instaurado por tal pragmatismo judicial, levado às últimas conseqüências.

Pois acolher o juízo de valor proposto pelo sr. Advogado-Geral da União, segundo o qual manter o entendimento da indispensabilidade seria “premiar a torpeza de servidores demitidos a bem do serviço público”, é desrespeitar o devido processo legal. Afinal, “torpeza” é algo que somente pode ser apurado caso a caso, e a súmula n. 5 tem eficácia erga omnes e efeito vinculante, a ser aplicada indiscriminadamente, segundo o entendimento do próprio Tribunal.

Em segundo lugar, é também garantia institucional da Administração Pública que a defesa do servidor seja feita de forma adequada para que a apuração de possíveis faltas seja feita de forma adequada. E não por um suposto “interesse público secundário”, mas porque isso diz respeito a todos nós, cidadãos, como garantia, no mínimo, de transparência, de democracia administrativa, na condução do serviço público. Pois quem garante que sem defesa técnica houve apenas demissões “a bem do serviço público”?

Por fim, cabe considerar que a interpretação do art. 3.º, da Lei 8.112/90 e do art. 156 da Lei 9.874/99 não pode levar ao absurdo de subverter uma garantia processual em desculpa para acobertar o desrespeito ao devido processo. Nesse sentido, processo administrativo sem defesa técnica é processo administrativo sem contraditório e sem ampla defesa. Simplesmente, não é processo. É inquisição. É arbítrio.

Desse modo precisamos que a Ordem dos Advogados do Brasil venha desempenhar novamente seu papel democrático em defesa dos cidadãos, eis que possui legitimidade para requerer a revisão e cancelamento da das Sumulas vinculantes (Arts. 103 A, §3º, da Constituição da República, e 3º, inc. V, da Lei 11.417/06), provocando assim uma verdadeira mobilização da sociedade civil e de todos os setores diretamente afetados por esta decisão. Enfim, para lembrar que embora se é o Supremo Tribunal Federal quem erra por último, a Constituição, por isso, não é do Supremo Tribunal. É da República. E o guardião máximo da Constituição é a cidadania.

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Nota
Súmula: 343. É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.

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Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
professor adjunto da UFMG e da PUC/MG, doutor e mestre em Direito

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Dierle José Coelho Nunes
Doutor em Direito Processual (PUC Minas / Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professor Universitário da PUCMinas, da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e da UNIFEMM. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. Advogado militante. Autor dos livros: “Processo jurisdicional democrático” (Juruá, 2008), “Direito constitucional ao recurso” (Lumen Juris, 2006).

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