A Inconstitucionalidade do Art. 335 do Código Eleitoral Brasileiro

Sandro Ari Andrade de Miranda

Sandro Ari Andrade de Miranda – advogado em Blumenau/SC, pós-graduado em ciência política pela UFPel, e sócio-fundador da Associação Hoc-Tempore.

Um dos maiores mitos, de natureza autoritária, que dominam o pensamento de certos setores da elite brasileira, é o de que vivemos numa sociedade homogênea, dotada de apenas poucos grupos étnicos (negros, brancos, índios e mestiços), e com o predomínio de apenas um idioma, ou seja, a língua portuguesa . Pior ainda, este mesmo mito, decantado desde a nossa entrada na escola, ainda prega a idéia que a nossa língua oficial, a língua portuguesa, é um idioma de características únicas na nação, malgrado o fato de existirem dezenas de dialetos diferenciados da língua portuguesa em todo o território nacional.
Tal descalabro, historicamente defendido por uma idéia autoritária e limitada de projeto nacional, ou melhor, de nacionalidade, serviu como justificativa para uma série de ações repressivas em períodos de exceção, especialmente durante a ditadura militar e o Estado Novo de Vargas, como neste exemplo citado por Gilvan Muller de OLIVEIRA:
“Durante o Estado Novo, mas sobretudo entre 1941 e 1945, o governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais em alemão e italiano, perseguiu, prendeu e torturou pessoas simplesmente por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas, instaurando uma atmosfera de terror e vergonha que inviabilizou em grande parte a reprodução dessas línguas, que pelo número de falantes eram bastante mais importantes que as línguas indígenas na mesma época: 644.458 pessoas, em sua maioria cidadãos brasileiros, nascidos aqui, falavam alemão cotidianamente no lar, numa população nacional total estimada 50 milhões de habitantes, e 458.054 falavam italiano, dados do censo do IBGE de 1940 (Mortara, 1950). Essas línguas perderam sua forma escrita e seu lugar nas cidades, passando seus falantes a usá-las apenas oralmente e cada vez mais na zona rural, em âmbitos comunicacionais cada vez menos extensos”
Essa construção de uma língua nacional única como instrumento de identificação da soberania, e até mesmo de civilidade, foi fortemente usada durante a época colonial, marcadamente no período do “despotismo esclarecido” do Marquês de Pombal, como mecanismo de afirmação política da metrópole e, conseqüentemente, de justificativa para a opressão de destruição de culturas indígenas. Mas o projeto “civilizatório” europeu, não afetou apenas o Brasil. Todas as colônias americanas, africanas e asiáticas, testemunharam verdadeiros massacres de seres humanos, culturas, e conseqüentemente de línguas, em torno do discurso europeu de “civilizar” os povos conquistados. Alguns países, mesmo depois de independentes, como o Brasil, o México, e principalmente os Estados Unidos, moveram verdadeiras guerras civis, no processo de ocupação e aculturação por brancos de terras originalmente ocupadas por indígenas. O caráter preconceituoso do conceito de civilização, que norteou a ação da conquista européia, tem como pressuposto, como bem adverte Norbert ELIAS, que toda a sociedade ocidental, dos últimos dois ou três séculos, se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”, neste último caso, ressalvado os EUA, as não européias. No caso específico dos Estados Unidos, o sangue colonizador, e o discurso “civilizador”, ainda servem de justificativa para a intolerante ação de levar democracia “americana” ao Oriente Médio.
Na verdade, o discurso civilizatório, de imposição monocultural, sempre foi uma racionalização ideológica dos dominantes e dos conquistadores, que ora encontravam nele justificativa para invadir e conquistar países independentes e povos com culturas diferentes, ora justificavam a imposição de regimes de exceção sobre o próprio povo. Mesmo democratas como John Locke e Montesquieu, falavam dos povos naturalmente servis do Oriente (das Índias), ou da falta de aptidão de alguns povos, como os das colônias americanas, para o trabalho. Este modelo de pensamento também povoou o ideário da nossa elite nacional que durante muito tempo justificou a escravidão de negros e índios, e o vilipêndio das culturas pré-colombianas.
O discurso que durante muito tempo justificou a ação colonizadora européia, no início do século XX e até o final da guerra fria, quando novamente retornará com contornos civilizatórios, sob o codinome “globalização”, recebeu uma nuance nacionalista, instruindo regimes políticos autoritários e totalitários em todo o planeta.
A versão nacional deste último modelo, teve o seu apogeu político durante o Estado Novo (1937-1945) e no período de ditadura castrense (1964-1985), quando foram literalmente “criados” possíveis adversários do povo brasileiro, ou da nacionalidade brasileira, principalmente imigrantes e descentes, que não seguissem os padrões de hábitos nacionais, tidos como corretos, dentre os quais o de falar a língua nacional , vizinhos moradores da fronteira, ou intelectuais estrangeiros e nacionais de esquerda. Um dos maiores exemplos desta política de criminalização do uso de língua não nacional, ou seja, de língua diferente da portuguesa, foi o art. 335, da Lei Federal 4737, de 15 de julho de 1965, que considerou como crime o uso de língua estrangeira em processos eleitorais.
Ocorre que dentro no nosso ordenamento constitucional vigente, não há mais espaço para esse modelo autoritário de identidade nacional. Esta contradição ganha ainda mais relevo, na atualidade, se não ignoramos as relações línguisticas efetivamente predominantes no Brasil, destacadas por Gilvan Muller OLIVEIRA:
“(…): no Brasil de hoje são falados por volta de 200 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), e as comunidade de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones). Somos, portanto, como a maioria dos países do mundo – em 94% dos países do mundo são falados mais de uma língua – um país de muitas línguas, plurilíngue”
O Código Eleitoral Brasileiro, Lei Federal 4737/1965, foi instituído no país durante o período de ditadura militar, sob regência da doutrina da segurança nacional, que entre outros dispositivos, no seu art. 5º, II, proíbe o alistamento de todos aqueles que não saibam se exprimir em língua nacional, excluindo além dos falantes de línguas descendentes dos troncos europeu, asiático e africano, todos os povos indígenas falantes de seus idiomas nativos, autóctones, que por sinal eram considerados como relativamente incapazes pelo Código Civil de 1916.
Com a vigência da Constituição Federal de 1988, especialmente em respeito ao disposto nos art. 1º, incisos II, III e V, art. 3º, incisos IV, art. 4º, incisos II e III, art. 5º caput e inciso I, e art. 231 da Carta Régia, não poderemos aceitar como válidos, o art. 5º, inciso II e o art. 335 da Lei Federal 4737/1965, posto que não foram recepcionados pela nova Constituição.
Mesmo que o art. 13 da Constituição Federal declare o idioma português como língua oficial do Brasil, não existe nenhuma regra de natureza constitucional que vede o uso, por nacionais, considerando ainda todos os dialetos regionais existentes, em qualquer evento, inclusive eleições, de língua diversa do português. Por sinal, a Carta da República Brasileira, tem como fundamento a cidadania e o pluralismo político, e estes somente podem ser alcançados com o respeito das diferenças e das minorias, incluindo as minorias lingüísticas e culturais. Não pode uma norma, baseada na visão autoritária da segurança nacional, deturpando todo um ordenamento democrático e pluralista, ser impunemente considerada como válida.
Mas afinal de contas, o que é uma língua estrangeira? O guarani, o nheengatu-tupi, o talian, o bantu, são línguas estrangeiras? Ora, nem estas, nem o alemão, o italiano, o árabe, e outros tantos modelos línguísticos que contribuem, ou contribuíram, para formar o idioma que equivocadamente chamamos de língua portuguesa, ou que ainda fazem parte do quotidiano da realidade social e cultural brasileira.
A constituição brasileira estabelece o direito à igualdade, em todas as suas dimensões, como um dos seus princípios fundamentais, tanto aos falantes, quanto aos não falantes, da língua portuguesa. Acolhida pela constituição de 1988, a Lei Federal n.º 6.815, de 19 de agosto de 1980, no seu art. 112, inciso IV, não considera o ler e o escrever em Língua Portuguesa, condição absoluta para a concessão de naturalização de estrangeiro e, conseqüentemente, da cidadania brasileira. Esta Lei, expressamente estabelece que deverão ser consideradas as condições do naturalizando, como por exemplo a do imigrante que vem morar e trabalhar no Brasil de forma legal, e que adquire hábitos e sentimento nacional, mas não consegue se adaptar ao uso da língua portuguesa .
Por outro lado, atualmente fala-se muito em garantir cidadania aos povos da floresta, e principalmente aos amazônicos. Considerando que o direito ao voto é um atributo fundamental da cidadania, seria uma incoerência não permitir aos povos indígenas, e das populações tradicionais, moradores dessas regiões, que falam variações do inglês, do espanhol, do francês, ou de suas próprias línguas nativas, o direito de participar do processo eleitoral, ou ver este direito limitado, simplesmente por não lhes ser garantido o acesso às informações contidas nos materiais de propaganda, que sob pena de incursão em crime eleitoral deverão ser todos em língua portuguesa. Na verdade, adotando tal postura, estaremos simplesmente contribuindo para a segregação destes povos e para a perda do controle estratégico da região. A desconsideração do direito à cidadania dos povos da Amazônia, e de outras regiões do país, apenas favorece a ação daqueles que pretendem incorporar estes imensos espaços territoriais a outros países, e conseqüentemente, ao contrário de fortalecer a nossa soberania, apenas contribui para o seu enfraquecimento. No mesmo sentido, não devemos nos esquecer da prática notória de certos setores da nossa elite política, que sempre se beneficiaram da falta de conhecimento dos eleitores. A manutenção de dificuldades para os eleitores acessarem as informações durante as eleições acaba beneficiando estes setores mais conservadores, e prejudicando a salvaguarda de interesses reconhecidos constitucionalmente como nacionais, cujo exemplo maior é o fortalecimento da democracia.
O uso de língua diversa do português no processo eleitoral, como uma garantia de acesso à informação não pode ser considerada, dentro do nosso ordenamento constitucional, como um crime que ofende a segurança nacional. O reconhecimento eleitoral do caráter multilingüista do Brasil, é condição indispensável para a efetivação da cidadania aos não falantes da língua originária da nossa colonização lusitana. Logo, indubitavelmente, sob pena de ofendermos art. 1º, incisos II, III e V, art. 3º, incisos IV, art. 4º, incisos II e III, art. 5º caput e inciso I, e ainda o art. 231, todos da Constituição Federal de 1988, deveremos considerar a aplicação do artigo 335 da Lei 4737/1965, Código Eleitoral Brasileiro, como inconstitucional.
Tais considerações deverão ser ainda questionadas por aqueles que, inspirados pelo discurso do verde-amarelismo de Vargas e dos ditadores militares, defenderão o uso da língua portuguesa como uma forma de combater a nossa colonização pela cultura estrangeira. Ora, se quisermos fugir da influência de línguas colonizadoras em nosso país, poderemos optar pela proposta do personagem Policarpo Quaresma do brilhante Lima Barreto, transformando o Tupi em língua oficial do Brasil. O certo é que se mantivermos na nossa cultura jurídica a doutrina de segurança nacional, considerando o uso de língua tida como estrangeira em processos eleitorais como crime, chegaremos ao absurdo de criminalizar o uso do latim. Outro caminho, mais adequado, será assumir o caráter democrático da nossa Constituição, aceitando o fato de que vivemos num país multicultural e multilingüísta, e que muito deve às diferente culturas que contribuíram para a sua formação, acabando com este entrave ditatorial presente no art. 335 do Código Eleitoral. O pluralismo político, a tolerância e o acesso à cidadania, sempre foram atributos essenciais da Democracia.

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