Marco Antônio Ribeiro Tura
(Parecer publicado na Revista de Direito Constitucional e Internacional, publicação oficial do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, a cargo da Revista dos Tribunais, ano 8, abril – junho, 2000, n.º 31, pp. 309-316)
O Senhor … e sua esposa …, para adquirirem bem imóvel da empresa …, tomaram empréstimo do Banco …, comprometendo-se ao seu pagamento em quarenta e oito parcelas mensais e sucessivas. Como garantia, deram ao Banco, em hipoteca, o bem imóvel adquirido.
Após o pagamento de dez parcelas do empréstimo, contudo, os compradores sofreram redução em seus ganhos e, assim, ficaram sem meios para o pagamento das restantes. Preocupados, procuraram o Banco para renegociar a dívida. O Banco, no entanto, negou-se.
Posteriormente, os compradores foram notificados de que o bem imóvel hipotecado seria levado a leilão, através de agente fiduciário designado pelo Banco, nos termos do Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966. Os compradores propuseram, então, medida cautelar inominada para que fosse determinada, liminarmente, em vista da urgência, a suspensão do referido leilão. O Meritíssimo Juízo determinou, porém, o depósito das parcelas em atraso como condição para o deferimento da liminar. O primeiro leilão, por isso, realizou-se, mas não foi arrematado o bem. Um pedido de reconsideração da decisão não foi acatado pelo Meritíssimo Juízo. Conseqüentemente, foi agravada a decisão. O Egrégio Tribunal reformou-a, determinando, assim, a suspensão dos demais leilões.
Agora, tendo em vista a necessidade de propositura de ação principal, os Digníssimos Advogados dos compradores consultam-me para saber se a atitude do Banco, nos termos do Decreto-lei citado, tem respaldo constitucional.
DO PARECER
I
É triste constatar que as autoridades brasileiras não têm a menor preocupação com os problemas habitacionais do povo. Tudo está a indicar que estejam ocupados demais com os assuntos de interesse dos financistas internacionais para se dignarem a tratar do tema, entregue, há muito, à regulação ultrapassada e, na maior parte dos casos, sem conexão com os interesses maiores da sociedade.
Embora seja o Brasil um dos signatários do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (norma válida, eficaz e exigível em nosso ordenamento, em razão de sua aprovação e promulgação nos termos do direito nacional, e que faz referência expressa à questão), as autoridades brasileiras nunca se esforçaram, como ainda não se esforçam, para cumprir, integral e sinceramente, suas determinações. Os programas, planos e projetos referentes à habitação, especialmente para as classes mais pobres, parecem concebidos para o atendimento dos interesses dos bancos, incorporadores, construtores e imobiliárias e não para a satisfação das necessidades elementares da população. Trata-se da utilização do Estado para proteger interesses privados em detrimento do interesse público, conforme insistentemente denuncio há tempos (“O Caos da Mundialização Autocrática”. in Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, volume 27, n.º 1, pp. 77-93).
Da maneira como são regulados os negócios de financiamento de unidades habitacionais no País, especialmente os contratos de empréstimo com garantia hipotecária, os credores ficam em posição invejável. Pois, nos termos do Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966, diversamente das demais pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, os credores nos contratos de empréstimo com garantia hipotecária têm o direito de promover, através de agente fiduciário e à sua escolha, a execução extrajudicial das hipotecas não pagas no vencimento e levarem o bem imóvel hipotecado a leilão.
A validade dessa norma tem sido amplamente discutida. Creio serem, todavia, salvo raras exceções, tanto os argumentos favoráveis quanto os contrários à sua constitucionalidade, excessivamente apegados à letra das regras constitucionais em vez de voltados ao espírito animador dos seus princípios. O tema é similar àqueles que preocuparam HORÁCIO WANDERLEI RODRIGUES em sua tese aprovada no concurso para o cargo de Professor Titular da disciplina de Teoria Geral do Processo da Universidade Federal de Santa Catarina (“Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro”. São Paulo: Acadêmica, 1994, 1.ª edição, 1.ª tiragem). A discussão passa, é certo, pelo acesso ao Judiciário; mas culmina, na verdade, com o problema do acesso à Justiça. Falarei, pois, do espírito constitucional que, para mim, tem sido deixado à margem desse debate.
II
Inspirando-me em EROS ROBERTO GRAU (“O direito posto e o direito pressuposto”. São Paulo: Malheiros, 1998, 2.ª edição), defino as constituições como sendo complexos de valores, normativamente postos e factualmente pressupostos, que informam e conformam as bases políticas, econômicas e ideológicas sobre as quais se estabelecem as relações de poder entre membros de uma dada sociedade.
Com esta definição quero ressaltar o fundamento material das constituições e, pois, afirmar que o ato constituinte tem natureza declaratória; isto é: os valores constitucionais não são invenções do constituinte, mas suas descobertas. Assim, os valores integrantes de uma constituição formal, isto é, os valores integrantes de uma constituição posta juridicamente, são expressões de valores integrantes da constituição material subjacente, isto é, de valores integrantes da constituição pressuposta socialmente.
As constituições, portanto, balizam as relações de poder segundo uma concepção hegemônica em certo espaço e em determinado tempo. Por isso, a ciência jurídica, ao analisar as constituições, deve considerar seus aspectos formais em conexão íntima com seus aspectos materiais, para, com isso, a prudência judicial, ao aplicar as constituições, possa fazer com que os valores postos juridicamente condigam com os valores pressupostos socialmente. Sigo, pois, com palavras diversas mas igual orientação, a proposta de JUAREZ FREITAS (“A Substancial Inconstitucionalidade da Lei Injusta”. Petrópolis/Porto Alegre: Vozes/EDIPUCRS, 1989).
Na interpretação e na aplicação das constituições, conseqüentemente, a ciência jurídica e a prudência judicial devem fazer com que coincidam os focos das constituições formais e materiais. A ciência jurídica e a prudência judicial devem laborar para conferirem ao texto constitucional, sentido, alcance e direção como reclamados naquele contexto social. O texto constitucional, ao ser interpretado e aplicado, deve ser contextualizado socialmente. E não há contextualização social de um texto constitucional sem que haja a apreensão e compreensão da história da sociedade em que foi escrito e em que é lido. É por essa razão que cuidarei a seguir da conformação jurídica das formações sociais capitalistas; cuidarei, em especial, da conformação jurídica do poder estatal nas formações sociais capitalistas, pois, em verdade, é disto que se esquecem muitos.
III
Com a lição de PAULO BONAVIDES (“Ciência Política”. São Paulo: Malheiros, 1994, 10.ª edição revista e atualizada), pode-se afirmar que, desde as primeiras formações sociais tipicamente capitalistas, as conformações jurídicas correspondentes passaram a qualificar o poder estatal como dotado de soberania, isto é, qualificado por se relacionar de maneira coordenada com outros poderes estatais (independência) e, também, por se relacionar de maneira subordinada com os demais poderes sociais desprovidos da estatalidade (supremacia). À primeira espécie de relação, relação de coordenação, que afasta outros poderes estatais para excluir-se de suas influências, convencionou-se denominar soberania externa; à segunda espécie de relação, relação de subordinação, que aproxima outros poderes sociais para incluí-los sob sua influência, foi chamada de soberania interna.
Como mostra ARI MARCELO SÓLON em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (“Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997), de início, a soberania foi apresentada como a qualidade do poder estatal que, tanto interna quanto externamente, era incontrastável. Essa era a teoria de JEAN BODIN que buscava o fortalecimento do poder monárquico pelo enfraquecimento dos poderes papal, imperial, feudais e corporativos. Com tal concepção, buscava-se a afirmação do poder geral monárquico pela aproximação dos poderes efetivamente parciais feudais e corporativos e pelo afastamento dos poderes pretensamente universais papal e imperial.
Os estudos de CELSO DUVIVIER DE ALBUQUERQUE MELLO (“Curso de Direito Internacional Público”. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, 1.º Volume) revelam que há muito, porém, a soberania do ângulo externo deixou de ser essencial para a definição do poder estatal. Há poderes que não apresentam essa qualificação nas relações internacionais e, nem por isso, deixam de ser tidos, pelo direito internacional, como estatais. Do ângulo externo, portanto, a soberania é, quando muito, traço acidental para a qualificação do poder dos Estados.
Todavia, como assinalam DARCY AZAMBUJA (“Introdução à Ciência Política”. São Paulo: Globo, 1996, 10.ª edição), PAULO BONAVIDES (“Ciência Política”. São Paulo: Malheiros, 1994, 10.ª edição revista e atualizada), DALMO DE ABREU DALLARI (“Elementos de Teoria Geral do Estado”. São Paulo: Saraiva, 1989, 14.ª edição) e CELSO RIBEIRO BASTOS (“Curso de Teoria do Estado e Ciência Política”. São Paulo: Saraiva, 1995, 3.ª edição), a acidentalidade da soberania como traço para a qualificação do poder dos Estados nas relações internacionais, reguladas segundo as normas de direito internacional, não se repete nas relações internas, reguladas segundo as normas de direito constitucional.
A diferenciação entre o poder estatal e os outros poderes sociais permanece sendo feita com referência expressa à soberania para qualificar e elevar o primeiro e desqualificar e rebaixar os demais. Enfim, a transformação histórica das formações sociais capitalistas não eliminou das conformações jurídicas correspondentes o traço da soberania para a qualificação do poder estatal. Se, externamente, a soberania é acidental, não sendo exigida para qualificar o poder dos Estados, internamente, porém, se dá o contrário: a soberania permanece como traço essencial para a qualificação do poder estatal. Tanto isso é verdade que, por vezes, os autores chegam a coincidir os conceitos de soberania com as definições de Estado. Vê-se, assim, que, internamente, soberano é o poder estatal e estatal é o poder soberano. De maneira que a caracterização da soberania mostra-se como sendo, a rigor, a caracterização do poder estatal. E a superposição de qualificante e qualificado não teria como deixar de trazer sérias implicações. Pois ao se caracterizar a soberania, o seu sentido, o seu alcance e a sua direção são estabelecidos. E, concomitantemente, os do poder de Estado.
Historicamente, a superposição da soberania e do poder estatal nas sociedades capitalistas é compreensível, aceitável e, até mesmo, justificável. Pois, em meio à pluralidade de poderes sociais, o poder estatal surge com pretensões de generalização e finalidades de aglutinação, contendo os diversos poderes sociais e impedindo, assim, que a contradição entre eles leve à ruptura das relações sociais. E apenas qualificando o poder estatal como soberano, como poder de mando supremo e incontrastável, é que sua generalização e a aglutinação dos demais poderes sociais se dá. Por razões de ordens lógica, sociológica e teleológica, então, a soberania é qualidade reconhecida, nas sociedades capitalistas do passado e do presente, única, exclusiva e perpetuamente, no poder estatal.
Conseqüentemente, a soberania e o poder estatal assim qualificado, na linha de DARCY AZAMBUJA (“Introdução à Ciência Política”. São Paulo: Globo, 1996, 10.ª edição), PAULO BONAVIDES (“Ciência Política”. São Paulo: Malheiros, 1994, 10.ª edição revista e atualizada), DALMO DE ABREU DALLARI (“Elementos de Teoria Geral do Estado”. São Paulo: Saraiva, 1989, 14.ª edição), caracterizam-se pela indivisibilidade, pela inalienabilidade, pela indelegabilidade, pela irrevogabilidade e, por fim, pela imprescritibilidade. Em um mesmo território e sobre um mesmo povo não incide mais de um poder dotado de soberania e esse poder é apenas e tão-somente o poder estatal, sem limite temporal algum para sua expressão e manifestação. Por definição, o poder social qualificado pela soberania, isto é, o poder estatal, não é passível de transferência, temporária ou permanentemente, sob pena de perda de sua estatalidade e, pois, da qualidade de poder soberano. Falarei, por isso, adiante, acerca do poder estatal e de suas expressões e manifestações.
IV
Seguindo as colocações de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Curso de Direito Constitucional”. São Paulo: Saraiva, 1990, 18.ª edição, revista e atualizada), considero que o poder estatal consiste, fundamentalmente, na impositiva elaboração de normas gerais e abstratas e na coercitiva aplicação dessas normas a situações específicas e concretas. Assim, o poder estatal expressa-se pelas atividades de normatização e de execução. Resulta, então, consistir o poder estatal na função normativa e na função executiva.
A função normativa, conforme mostra EROS ROBERTO GRAU (“O direito posto e o direito pressuposto”. São Paulo: Malheiros, 1998, 2.ª edição), é manifestada nas atividades legislativa, regulamentar e regimental. Assim, a elaboração de normas gerais e abstratas é função exercida tanto na edição de leis, quanto na expedição de regulamentos e regimentos. A função executiva, por sua vez, é manifestada na atividade administrativa e na atividade judiciária. Tanto a atividade administrativa (administração) quanto a atividade judiciária (jurisdição) consistem na aplicação de normas gerais e abstratas a situações específicas e concretas. Diversamente, porém, da atividade administrativa, como vislumbra CELSO RIBEIRO BASTOS (“Curso de Direito Constitucional”. São Paulo: Saraiva, 1990, 13.ª edição reformulada de acordo com a Constituição Federal de 1988), consistente na aplicação interessada das normas, na aplicação de normas em satisfação de seus interesses, a atividade judiciária consiste na aplicação desinteressada das normas, na aplicação de normas para a satisfação de interesses que não os próprios. E, sendo desinteressada, por isso mesmo, cercada de cuidados maiores do que as demais atividades.
JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER (“Elementos para uma Teoria Geral do Processo”. São Paulo: Saraiva, 1993), alertando para a existência de processos diversos conforme a diversidade da atividade estatal exercida, demonstra, implicitamente, a importância do processo no desempenho das atividades estatais em geral, mas, especialmente, para o exercício da jurisdição. Num sentido especialmente jurisdicional e mais restritamente de ordenação dos atos de agentes e órgãos jurisdicionais, na linha de MOACYR AMARAL SANTOS (“Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”. São Paulo: Saraiva, 1990, 1.º volume, 14.ª edição, atualizada nos termos da Constituição Federal de 1988), o processo consiste na prática de atos tendenciais à prestação da jurisdição na forma reclamada pela situação específica e concreta. Os atos processuais praticados pelos agentes e órgãos da jurisdição concorrem para a aplicação de norma geral e abstrata à situação específica e concreta conforme uma valoração dos atos dos jurisdicionados. A valoração dos atos dos jurisdicionados difere da valoração dos atos pelos próprios jurisdicionados porquanto os agentes e órgãos da jurisdição a fazem desinteressadamente e a expressam coercitivamente. A desinteressada aplicação coercitiva de normas gerais e abstratas a situações específicas e concretas após um processo de valoração dos atos dos jurisdicionados é o que define e o que caracteriza a atividade estatal denominada como jurisdição.
Já colocados todos os elementos teóricos da questão, tratarei, por essa ótica, da análise do caso presente que motivou este parecer.
V
Nos contratos de empréstimo com garantia hipotecária no âmbito dos programas habitacionais, quando vencidas e não pagas as hipotecas, considera-se vencida toda a dívida e permite-se ao credor escolher entre executar o devedor através de agentes e órgãos jurisdicionais ou através de agentes fiduciários contratualmente designados. A primeira, regulada pelo Código de Processo Civil e, a segunda, pelo Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966.
Escolhida a execução por meio de agentes fiduciários, o credor deve solicitá-la, com os documentos exigidos para a instrução, ao agente fiduciário contratualmente designado que, após notificar o devedor e este não purgando o débito, pode efetuar leilões para alienação do bem imóvel hipotecado.
Leiloado e alienado o bem imóvel hipotecado, e não purgado o débito com os acréscimos legais, carta de arrematação será emitida, com as assinaturas do leiloeiro, do credor, do agente fiduciário e de cinco testemunhas, e servirá como título para a transcrição no registro imobiliário. Transcrita a carta, o adquirente poderá requerer, ao órgão jurisdicional competente, a imissão da posse no bem imóvel. E o requerimento deverá ser liminarmente deferido se, no prazo legal, o devedor não demonstrar o resgate ou a consignação judicial do débito antes da realização de um ou outro leilão.
Em resumo, nos contratos de empréstimo com garantia hipotecária, no âmbito de programas habitacionais, praticamente, o devedor vê a alienação de seu bem imóvel, através de leilão promovido por agente fiduciário, sem que possa discutir os termos e condições referentes ao seu débito.
O agente fiduciário busca a satisfação dos interesses do credor, que encontram resistência nos interesses do devedor, com a realização de leilão do bem imóvel hipotecado em garantia do pagamento do débito oriundo do contrato de empréstimo. Ao fazê-lo, o agente fiduciário aplica a norma geral e abstrata à situação específica e concreta estabelecida entre credor e devedor. A aplicação da norma pelo agente fiduciário é feita no interesse do credor, logo trata-se de aplicação desinteressada, isto é, sem interesse próprio, de normas gerais e abstratas a situações específicas e concretas.
O mais importante, porém, é que a aplicação da norma pelo agente fiduciário é feita de maneira coercitiva. A realização dos leilões representa a prática de atos tipicamente executivos posto dotados de coercitividade necessária a impor ao devedor uma valoração desfavorável a seus interesses. Nitidamente, então, o agente fiduciário exerce atividades judiciárias pois que importam na desinteressada aplicação coercitiva de normas gerais e abstratas a situações específicas e concretas.
O agente fiduciário, entretanto, é agente privado, ao passo que as atividades judiciárias são públicas, no sentido de expressões do poder estatal e, por isso, entregues apenas e tão-somente aos agentes e órgãos estatais encarregados do exercício da jurisdição. Função do poder estatal, a jurisdição é, por expressar sua qualificação soberana, intransferível, temporária ou permanentemente, parcial ou totalmente. Norma alguma, portanto, sob pena de contrariar o fundamento mesmo da soberania, materializada e formalizada nas diversas Constituições Brasileiras e, em especial, na Constituição Federal de 1988, tem legitimidade para transferir, alienar ou delegar, as várias atividades representativas das funções do poder de Estado.
Nessa linha de argumentação, por conseguinte, o Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966, ao estabelecer execução promovida através de agente fiduciário, entrega a agente privado o exercício de atividades representativas da essência do poder de Estado e, assim, fere, frontal e flagrantemente, a soberania.
Por isso, os dispositivos do Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966, que estabelecem execução através de agente fiduciário, isto é, os artigos 31 a 38, são, hoje, como eram à época da edição, inconstitucionais. E inconstitucionalidades não devem servir para exigências quaisquer que sejam, ainda mais injustas e absurdas exigências.
VI
Em síntese, respondendo à questão formulada sobre se há respaldo constitucional para a atitude do Banco com fundamento no Decreto-lei n.º 70, de 21 de Novembro de 1966, digo que:
1) A resposta exige conhecer o direito constitucional como configurado nas sociedades atuais;
2) E o conhecimento revela que a soberania, como qualificação do poder estatal, faz parte da matéria e da forma constitucionais;
3) Soberania esta que se mostra como qualidade única, exclusiva e perpétua do poder estatal;
4) Que, portanto, não admite divisão, alienação, delegação, revogação e prescrição;
5) Igualmente, o poder estatal, poder social qualificado pela soberania, não pode ser dividido, alienado, delegado, revogado e, por fim, não sofre prescrição;
6) E, assim, também, com suas funções que consistem, fundamentalmente, na impositiva elaboração de normas gerais e abstratas e na coercitiva aplicação dessas normas a situações específicas e concretas;
7) Dentre as várias atividades manifestadas pelo exercício das funções estatais, destaca-se a atividade judiciária (jurisdição) que consiste na desinteressada aplicação coercitiva de normas gerais e abstratas a situações específicas e concretas após processo de valoração dos atos dos jurisdicionados pelos agentes e órgãos da jurisdição;
8) Os atos praticados no curso de execução por meio de agente fiduciário, permitida ao credor nos contratos de empréstimo com garantia hipotecária no âmbito de programas habitacionais, representam o exercício de atividade tipicamente judiciária por agente privado;
9) A soberania, porém, é qualificação exclusiva do poder estatal e, também, atributo essencial de suas funções e atividades;
10) O exercício das funções e o desempenho das atividades do poder estatal, por isso, são encargos exclusivos de agentes e órgãos estatais;
11) A execução por meio de agente fiduciário, permitida ao credor nos contratos de empréstimo com garantia hipotecária no âmbito de programas habitacionais, portanto, é evidentemente contrária à soberania e, pois, inconstitucional, como era, também, quando de sua criação;
12) A atitude do Banco, credor no contrato de empréstimo com garantia hipotecária, subjacente à situação concreta à qual se busca aplicar os conceitos teóricos construídos neste parecer, assim, não encontra respaldo constitucional algum, ao menos se analisada a Constituição Brasileira, como qualquer outra, com mínima seriedade e dedicação.
É o que me parece.
São Paulo, 12 de Novembro de 1999.
MARCO ANTÔNIO RIBEIRO TURA
Professor Titular da Faculdade de Direito da Fundação Karnig Bazarian
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade São Marcos
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Presidente da Associação Americana de Juristas no Estado de São Paulo
Membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional
Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasilieiros
Membro Efetivo da Associação Brasileira dos Constitucionalistas