A informação como direito fundamental do consumidor

Paulo Luiz Netto Lôbo

Conferência proferida na Cerimônia de abertura do 3º Curso de Pós-Graduação em Direito do Consumidor do Centro do Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no dia 10.11.2000.

SUMÁRIO: 1. Inserção constitucional do direito à informação; 2. Direito à informação; 3. Direito fundamental à informação; 4. Direitos fundamentais oponíveis aos particulares – Efeitos diante de terceiros; 5. Força normativa dos princípios e regras constitucionais de tutela do consumidor; 6. Titular do direito à informação; 7. Dever de informar; 8. Requisitos do dever de informar; 9. Efeitos jurídicos da informação publicitária; 10. Informação: oferta ou integração ao contrato? 11. Vinculação da informação não explícita; 12. Direito à informação e garantia de cognoscibilidade; Conclusão.

1. Inserção constitucional do direito à informação

O direito à informação adequada, suficiente e veraz é um dos pilares do direito do consumidor. Nas legislações mundiais, voltadas a regular as relações de consumo, a referência quase uniforme ao direito à informação fortalece as características universalizantes desse novo direito. Afinal, os problemas e dificuldades enfrentados pelos consumidores, em qualquer país, são comuns, a merecerem soluções comuns.

Por tais razões, a Resolução nº 30/248 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 16.04. 1985, determina em seu artigo 3º que é necessário promover o acesso dos consumidores à informação.

Os efeitos do direito à informação não estão contidos, apenas, no âmbito da legislação infraconstitucional, pois as constituições mais recentes elevaram-no ao nível dos direitos fundamentais. Portanto, não diz respeito apenas à ordem privada dos sujeitos, mas irradia-se na consideração pública do campo indisponível da cidadania ativa, segundo a concepção contemporânea que não a vê apenas no exercício do direito oponível ao poder político, mas em face do poder econômico.

Os direitos do consumidor, é cediço, radicam no interesse público social, que não se compagina no clássico interesse público estatal. Para desenvolver tal dimensão, sua tessitura está coenvolvida de inevitáveis inserções no âmbito do direito público constitucional, até porque as relações de consumo são necessariamente transindividuais, pois irradiam efeitos além dos sujeitos concretos da aquisição ou utilização de determinado produto ou serviço, para alcançar todos os que sejam por elas atingidos, em ato ou potência.

É interessante notar que os temas relativos a direito do consumidor estejam em franca expansão, justamente no momento em que se discute a aguda crise por que passa o Estado social, que permitiu seu surgimento e evolução. O avanço da globalização econômica dá-se a expensas do Estado social, compelido a reduzir ao mínimo a intervenção na atividade econômica, em que se insere o direito do consumidor. Os Estados e os direitos nacionais que intervieram na ordem econômica, para consecução da justiça social, ao longo do século XX, são obstáculos naturais à hegemonia do mercado global, que passou a ser a pedra de toque desse fenômeno inquietante, nas últimas duas décadas. Na perspectiva jurídico-constitucional, o Estado social identifica-se pela regulação ou intervenção na ordem econômica, é dizer, pela limitação do poder econômico e pela definição dos direitos sociais (1).

A tensão entre globalização econômica e Estado social levou à contradição entre a demanda econômica do Estado mínimo, dominado pelo mercado, e a demanda social da função regulatória. Mas, a substituição do Estado empreendedor pelo Estado regulador não altera, substancialmente, a natureza jurídica de Estado social, que se diferencia do Estado liberal, da etapa anterior, justamente por intervir nas relações privadas. Ou seja, enquanto houver ordem econômica constitucional, independentemente do grau de intervenção legislativa, judiciária e administrativa, nela fundado, haverá Estado social. O direito do consumidor, incluindo o direito à informação, insere-se nesse contexto de reforço do papel regulatório, pois suas regras tutelares configuram contrapartida à liberdade irrestrita de mercado, na exata medida do espaço de humanização dos sujeitos consumidores.

Afinal de contas, já se tornou um truísmo a afirmação de que todos e cada um de nós somos consumidores, e a dignidade humana não estará assegurada se a realidade existencial de submissão, no mercado de consumo cada vez mais despersonalizado, não for levada em conta pelo direito. A presunção de vulnerabilidade jurídica impõe ao direito a imensa tarefa de estabelecer o equilíbrio material nas relações de consumo. O acesso à informação, em especial, é indeclinável, para que o consumidor possa exercer dignamente o direito de escolha, máxime quando as necessidades não são apenas reais, mas induzidas pela publicidade massificada.

A Constituição brasileira incluiu explicitamente a defesa do consumidor no elenco dos direitos fundamentais (art. 5º, XXXII) e, por sua destacada importância, previu que (art. 5º, XIV) “é assegurado a todos o acesso à informação”. Do mesmo modo, a Constituição portuguesa (art. 60º) estabelece que os consumidores têm direito à informação. O diálogo entre as ordens jurídicas brasileira e portuguesa marcará esta exposição, doravante, mercê da interessante experiência que ora vivenciam, é dizer, de uma lado pela origem comum, de outro lado pela integração a grupos nacionais distintos (Mercosul e União Européia)

2. Direito à informação

Cumpre, inicialmente, delimitar o campo da investigação, pois o tema apresenta dimensão polissêmica (2), levado ao paroxismo com a revolução da informática. Todavia, em dois âmbitos interligados e estreitos, a informação se apresenta com significados aproximados: no direito da comunicação e no direito do consumidor.

O direito à informação, no âmbito do direito da comunicação, tem significado diferenciado. Na perspectiva do direito fundamental da liberdade de expressão, é direito oponível ao Estado, e a qualquer pessoa, de não impedirem o acesso e a transmissão de informação, assim para quem comunica e para quem recebe a comunicação. É um direito sensível e vulnerável ao autoritarismo político. Enquadra-se entre os direitos fundamentais de primeira geração, direitos de liberdade ou direitos à prestação negativa. Em sentido estrito, relaciona-se com o direito à comunicação, entendido este como direito de procurar, receber, compartilhar e publicar informações.
Não se desconhece a relevância do papel da comunicação, na relação de consumo, bem demonstrada no Congresso Internacional sobre “Comunicação e Defesa do Consumidor”, realizado em novembro de 1993, sob a iniciativa e organização do Instituto Jurídico da Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nele foram abordadas “as cinco vertentes do direito da comunicação”: comunicação social, audiovisuais, informática, telecomunicação e publicidade (3). Essa importância vem da constatação de estar o consumidor sistematicamente vulnerado pelas distintas técnicas de comunicação. Sob outro ângulo, a informação é mercadoria para a indústria da comunicação. As informações são bens que as pessoas podem trocar. Nessa hipótese, quem comunica assume a posição de fornecedor, na relação de consumo.

O direito à informação, no âmbito exclusivo do direito do consumidor, é direito à prestação positiva oponível a todo aquele que fornece produtos e serviços no mercado de consumo. Assim, não se dirige negativamente ao poder político, mas positivamente ao agente de atividade econômica. Esse segundo sentido, próprio do direito do consumidor, cobra explicação de seu enquadramento como espécie do gênero direitos fundamentais.

3. Direito fundamental à informação

Para os propósitos desta exposição, podem ser dispensadas as formulações doutrinárias acerca da natureza e do alcance dos direitos fundamentais e sua vinculação com os direitos humanos e os direitos naturais. Com todos os riscos epistemológicos possíveis, adota-se a concepção corrente de direitos fundamentais como aqueles que se encontram positivados nas normas constitucionais de cada país e nas normas infraconstitucionais que as densificam.

Os direitos fundamentais costumam ser classificados em gerações, na medida em que historicamente foram ocorrendo. Norberto Bobbio, por exemplo, entende ser possível identificar quatro gerações, nos dois últimos séculos de experiências e vicissitudes, no mundo ocidental: os direitos de liberdade, os direitos políticos, os direitos sociais e econômicos e a nova geração de direitos, relativos “à integridade do próprio patrimônio genético, que vai muito além do tradicional direito à integridade física” (4) As gerações não substituíram as antecedentes, mas se conjugaram em ciclos de expansão. Desse modo, perpassam as ordens constitucionais.

Os direitos do consumidor, dentre eles o direito à informação, inserem-se nos direitos fundamentais de terceira geração e somente foram concebidos tais nas últimas décadas do século XX. E apenas foi possível quando se percebeu a dimensão humanística e de exercício de cidadania que eles encerram, para além das concepções puramente econômicas. Com efeito, as teorias econômicas sempre viram o consumidor como ente abstrato, despersonalizado, como elo final da cadeia de produção e distribuição. O homo oeconomicus simboliza o distanciamento da realidade existencial do ser humano que consome. Não é sujeito; é apêndice do objeto, somente identificável mediante o consumo. No mundo atual, até mesmo suas necessidades podem ser artificialmente provocadas pelo monumental aparato publicitário que cerca os produtos e serviços lançados no mercado. A dissolução da pessoa humana em apenas consumidor bem demonstra o distanciamento da ótica economicista dos valores que plasmaram a opção jurídica.

O direito do consumidor recuperou a dimensão humana do consumidor, na medida em que o afirma como sujeito, titular de direitos constitucionalmente protegidos. Proteger o consumidor é, na incisiva lição de Antônio Pinto Monteiro “lutar pela qualidade do relacionamento humano, no que ele implica de respeito pela dignidade do Homem e pelo seu poder de autodeterminação, e no que ele significa de uma solidária e responsável participação na vida em comunidade”(5). Desse modo, a migração para o campo dos direitos fundamentais, na concepção ampla que ostentam na atualidade, tornou-se inevitável.

4. Direitos fundamentais oponíveis aos particulares – Efeitos diante de terceiros

Em virtude da natureza de prestação negativa dos direitos de liberdade, de primeira geração, e da típica oponibilidade ao poder político que sempre os caracterizaram, houve, e ainda há, reação a se admitir efeitos dos direitos fundamentais diante de terceiros ou particulares. Cresceu, todavia, uma consistente doutrina a eles favorável, com repercussões positivas nos tribunais. Não se confundem com os direitos fundamentais de prestação positiva oponíveis ao Estado, próprios dos direitos sociais, que estão na raiz da crise do Estado de bem estar social ou Estado providência, que não consegue mais atender às crescentes demandas de serviços públicos. São, ao contrário, direitos que envolvem intervenção ativa do Estado, na legislação, na administração pública e no judiciário, para que sejam exeqüíveis.

Com relação ao Estado, esses específicos direitos fundamentais exercem pretensão positiva mediata, a saber, de realização dos meios que os assegurem, editando-se leis de proteção efetiva (6), instalando-se órgãos administrativos voltados à prevenção, fiscalização e resolução de conflitos, e garantindo o acesso facilitado ao Poder Judiciário. Cuida-se de dever geral de proteção, incumbido ao Estado, como estabelece a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa, de 1996 (art. 1º).

A pretensão positiva imediata é dirigida ao particular. No direito do consumidor, o particular é quem exerce atividade organizada e permanente de produção e distribuição de produtos e serviços (7). Numa perspectiva estritamente jurídica, atividade é o complexo ou conjunto de atos teleologicamente orientados, com caráter de permanência e continuidade. Na legislação brasileira, denomina-se genericamente fornecedor, termo que será utilizado doravante.

O questionamento que se fez, quanto à natureza de direitos fundamentais, reside no fato de sua realização envolver a proteção ou defesa de um particular (o consumidor) contra outro particular (o fornecedor), dado a que, historicamente, os direitos fundamentais são atribuíveis a todos, e não a um contra outros. Esse entendimento não se sustenta, salvo na ambiência exclusiva dos direitos de primeira geração, na exata medida em que a regulação da ordem econômica, na Constituição, vai além da limitação ao poder político, como sujeito passivo do dever decorrente. Em suma, o fornecedor, detentor do poder econômico, assume idêntica situação passiva ante o direito fundamental, antes apenas reservada aos titulares do poder político.

Situando a controvérsia na Alemanha, Konrad Hesse dá notícia da resistência doutrinária e jurisprudencial que, no geral, entende não poderem os direitos fundamentais vincularem diretamente os particulares, cabendo ao legislador de direito privado concretizá-los. Contudo, admite que forte é a tendência de vinculação direta quando se trata de proteção da liberdade pessoal contra o exercício de poder econômico e social (8).

5. Força normativa dos princípios e regras constitucionais de tutela do consumidor

As constituições jurídico-positivas utilizam enunciados gerais em suas normas, sejam elas regras ou princípios. Porém, pouco importa a generalidade das expressões, ou a indeterminação dos conceitos, pois são normas jurídicas e como tais devem ser tratadas, com força normativa própria.

Os publicistas abandonaram a idéia de efeitos meramente simbólicos das normas constitucionais, que durante muito tempo reduziram o alcance dos direitos fundamentais. Há, particularmente nos princípios constitucionais, uma eficácia jurídica mínima, a demonstrar que são auto-executáveis e não dependem de concretização pelas normas infraconstitucinais.

São efeitos mínimos dos princípios constitucionais, ainda que de escassa densidade semântica:

1 º. Comando positivo ao Estado, principalmente o legislador, de otimização dos direitos fundamentais, para que algo seja realizado, na maior medida possível, dentro das possibilidades reais e jurídicas existentes (9); (eficácia positiva)

2º . Critério fundamental de interpretação. Os princípios informam e conformam o conteúdo e o significado das normas infraconstitucionais, cuja interpretação e aplicação devem deles partir, não podendo ser com eles incompatíveis; (eficácia positiva)

3 º. Limite para edição das normas infraconstitucionais. Aquelas que forem incompatíveis com os princípios constitucionais são rejeitadas pelo sistema jurídico, mediante o controle de constitucionalidade, isto é, são inconstitucionais. (eficácia negativa)

Os princípios são explícitos ou implícitos, neste caso quando emergirem do sistema constitucional, com idêntica força normativa. O direito à informação está posto nas Constituições brasileira e portuguesa, como princípios explícitos. Mas seria implícito, se não tivesse sido expressamente referido, porque é de natureza fundamental para tutela do consumidor contemporâneo. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem declarado a inconstitucionalidade de leis que sejam incompatíveis com determinados princípios implícitos, como o da proporcionalidade ou da razoabilidade.

Na Constituição da Argentina há norma semelhante, mas de densidade semântica maior, na linha de tendência de entender a informação como direito fundamental do consumidor. Estabelece seu artigo 42 que “os consumidores têm direito, na relação de consumo, a uma informação adequada e veraz”.

Uma última palavra, relativamente a esse marco conceitual. Os princípios constitucionais estão postados no topo da escala hierárquica das normas jurídicas. Desse modo, estão necessariamente presentes quando da aplicação de quaisquer normas infraconstitucionais, por mais claras e precisas que aparentem. Nada têm em comum com o conceito clássico de princípios gerais de direito, concebidos como regras de clausura do sistema, funcionalmente supletivos, à falta de leis expressa ou de costumes (vedação de non liquet ao julgador). A norma de sobredireito brasileira (Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, art. 6º) assim prevê: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costume e os princípios gerais de direito”. Não são dessa natureza, repita-se, os princípios constitucionais.

6. Titular do direito à informação

O consumidor, tantas vezes referido, é o titular do direito à informação. Mas qual consumidor? Por certo não é consumidor individual e concreto em determinada relação de consumo, pois o dever de informar é objetivamente concebido em relação a todos os adquirentes e utentes do produto ou do serviço fornecido. Dessarte, há de ser considerado o consumidor típico, independentemente do maior ou menor grau de acesso individual à informação (10).

O consumidor objetivamente considerado é um tipo ideal, médio, para fins de identificação jurídica, ou seja, é o tipo médio a que se destina o produto ou o serviço. O tipo ideal ou médio é transpessoal, ultrapassa os interesses e condições individuais ou subjetivos e envolve o interesse coletivo de todos os destinatários, no tempo e no espaço. Sua configuração rejeita um juízo de valor universal, a exemplo do bonus paterfamilias do direito antigo. Em alguns casos, o consumidor típico é qualquer um, inclusive o iletrado, para o qual a informação deve ser a mais simples e acessível possível, como se dá com os produtos alimentícios postos à disposição em supermercados. Em outros casos, certo grau de informação técnica é necessário para o consumidor típico, como se dá com produtos de informática.

7. Dever de informar

O direito fundamental à informação resta assegurado ao consumidor se o correspectivo dever de informar, por parte do fornecedor, estiver cumprido. É o ônus que se lhe impõe, em decorrência do exercício de atividade econômica lícita.

Para o professor argentino Roberto M. Lopez Cabana, o dever de informar, imposto a quem produz, importa ou comercializa coisas ou presta serviços, se justifica em razão de se enfrentarem nessa peculiar relação, um profissional e um profano, e a lei tem um dever tuitivo com este último (11).

O dever de informar tem raiz no tradicional princípio da boa fé objetiva, significante da representação que um comportamento provoca no outro, de conduta matrizada na lealdade, na correção, na probidade, na confiança, na ausência de intenção lesiva ou prejudicial. A boa fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam (12). Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. No direito comum dos contratos, esse princípio implícito, sem embargo da omissão proposital da codificação tradicional, como a brasileira, foi recorrente na doutrina mais atenta à evolução do direito contratual.

O princípio da boa fé objetiva foi refuncionalizado no direito do consumidor, otimizando-se sua dimensão de cláusula geral, de modo a servir de parâmetro de validade dos contratos de consumo, principalmente nas condições gerais dos contratos. Anteriormente ao advento das legislações específicas, a jurisprudência dos tribunais socorreu-se à larga da boa fé como cláusula geral definidora do limite das condições gerais dos contratos e do efetivo cumprimento do dever de informar.

Contudo, o dever de informar não é apenas a realização do princípio da boa fé. Na evolução do direito do consumidor assumiu feição cada vez mais objetiva, relacionado à atividade lícita de fornecimento de produtos e serviços. A teoria contratual também construiu a doutrina dos deveres anexos, deveres acessórios ou deveres secundários ao da prestação principal, para enquadrar o dever de informar (13). O desenvolvimento do direito do consumidor foi além, transformando-o no correspectivo do direito à informação, como direito fundamental, e o elevando a condicionante e determinante do conteúdo da prestação principal do fornecedor. Não se trata apenas de dever anexo.

A Constituição brasileira (art. 170) estabelece que a atividade econômica deve observar, entre outros, o princípio de defesa do consumidor. O princípio é dirigido não só ao Estado mas, principalmente, aos agentes econômicos. O princípio é abrangente do direito à informação, referido explicitamente no artigo 5º, XIV.

A fraca densidade semântica do princípio não é óbice à sua aplicação ou executividade imediata. Havendo, como há, legislação infraconstitucional regulamentando a matéria, sua aplicação deverá ser, sempre, informada do princípio.

A concepção, a fabricação, a composição, o uso e a utilização dos produtos e serviços atingiu, em nossa era, elevados níveis de complexidade, especialidade e desenvolvimento científico e tecnológico cujo conhecimento é difícil ou impossível de domínio pelo consumidor típico, ao qual eles se destinam. A massificação do consumo, por outro lado, agravou o distanciamento da informação suficiente. Nesse quadro, é compreensível que o direito avance para tornar o dever de informar um dos esteios eficazes do sistema de proteção.

O dever de informar impõe-se a todos os que participam do lançamento do produto ou serviço, desde sua origem, inclusive prepostos e representantes autônomos. É dever solidário, gerador de obrigação solidária. Essa solidariedade passiva é necessária (14), como instrumento indispensável de eficaz proteção ao consumidor, para que ele que não tenha de suportar o ônus desarrazoado de identificar o responsável pela informação, dentre todos os integrantes da respectiva cadeia econômica (produtor, fabricante, importador, distribuidor, comerciante, prestador do serviço).

8. Requisitos do dever de informar

Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

A adequação diz com os meios de informação utilizados e com o respectivo conteúdo. Os meios devem ser compatíveis com o produto ou o serviço determinados e o consumidor destinatário típico. Os signos empregados (imagens, palavras, sons) devem ser claros e precisos, estimulantes do conhecimento e da compreensão. No caso de produtos, a informação deve referir à composição, aos riscos, à periculosidade.

Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informação publicitária, que é de natureza diversa, como adiante se dirá. Tome-se o exemplo do medicamento. A informação da composição e dos riscos pode estar neutralizada pela informação publicitária contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hipótese, a informação não será adequada, cabendo ao fornecedor provar o contrário.

A legislação de proteção do consumidor destina à linguagem empregada na informação especial cuidado. Em primeiro lugar, o idioma será o vernáculo. Em segundo lugar, os termos empregados hão de ser compatíveis com o consumidor típico destinatário. Em terceiro lugar, toda a informação necessária que envolva riscos ou ônus que devem ser suportados pelo consumidor será destacada, de modo a que “saltem aos olhos”. Alguns termos em língua estrangeira podem ser empregados, sem risco de infração ao dever de informar, quando já tenham ingressado no uso corrente, desde que o consumidor típico com eles esteja familiarizado. No campo da informática, por exemplo, há universalização de alguns termos em inglês, cujas traduções são pouco expressivas, a exemplo do aparelho denominado mouse.

A suficiência relaciona-se com a completude e integralidade da informação. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omissão, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados ou referências não vantajosas ao produto ou serviço. A ausência de informação sobre prazo de validade de um produto alimentício, por exemplo, gera confiança no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informação suficiente permite-lhe escolher aquele que seja de fabricação mais recente. Situação amplamente divulgada pela imprensa mundial foi a das indústrias de tabaco que sonegaram informação, de seu domínio, acerca dos danos à saúde dos consumidores.

Insuficiente é, também, a informação que reduz, de modo proposital, as conseqüências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico.

Problema mais delicado diz respeito ao chamado risco do desenvolvimento. Considera-se assim o lançamento do produto ou do serviço, que posteriormente vêm a ser demonstrados inadequados ou inseguros em virtude do desenvolvimento científico ou tecnológico posterior. No momento em que foram concebidos ou desenvolvidos mostravam-se compatíveis com o nível do conhecimento existente. Há forte controvérsia na doutrina. No Brasil, a tendência é desconsiderar o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade, enquadrando-o nos riscos da atividade do fornecedor. Pessoalmente, conforme escrevi alhures (15), entendo que, no geral o risco de desenvolvimento deve ser considerado como exoneratório de responsabilidade. Todavia, a falta de informação suficiente, acerca do estágio do conhecimento científico e tecnológico sobre a matéria, infringe o dever de informar, pois sonega dados necessários à escolha do consumidor.

Todo produto ou serviço lançado no mercado, em conformidade com os dados de ciência e tecnologia atualmente irrefutáveis, considera-se adequado e seguro ao consumo. Porém, o progressivo desenvolvimento científico e tecnológico poderá alcançar estágios de aperfeiçoamento e qualificação dos mesmos produtos e serviços que tornem os anteriores inadequados ao uso.

É de se ter como unívocos os significados de state of the art (o produto está de acordo com os padrões correntes na data de seu lançamento) e risco de desenvolvimento (o produto não alcançou o nível de qualidade e segurança que seria lícito esperar, na data de seu lançamento), que a doutrina estrangeira busca distinguir (16) Exemplifica-se a primeira hipótese com o cinto de segurança nos automóveis que não se tinha como necessário décadas atrás; a segunda, com a inadequação do produto por excessiva toxidade, apenas mais tarde reconhecida.

A legislação mais recente encaminha-se a considerar exonerativa de responsabilidade o chamado risco de desenvolvimento (incluindo o state of the art), especialmente as que perfilharam a Diretiva da Comunidade Européia de 1985, acerca da responsabilidade do fornecedor. A Diretiva permitiu que se excluísse o risco do desenvolvimento quando se provar que o estado do conhecimento científico e tecnológico não permitia a descoberta da existência do defeito.

O Código do Consumidor brasileiro foi omisso a respeito, o que levou parte da doutrina a sustentar a impossibilidade da exoneração da responsabilidade por tal motivo, permanecendo imputável o fornecedor. O principal argumento é que a lei brasileira adota a responsabilidade objetiva, mercê do risco criado pela atividade econômica, não possuindo os consumidores meios de conhecerem os riscos que determinado produto encerra.

A veracidade é o terceiro dos mais importantes requisitos do dever de informar. Considera-se veraz a informação correspondente às reais características do produto e do serviço, além dos dados corretos acerca de composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos. A publicidade não verdadeira, ou parcialmente verdadeira, é considerada enganosa e o direito do consumidor destina especial atenção a suas conseqüências.

O artigo l º do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária estabelece que todo anúncio deve ser “honesto e verdadeiro”.

9. Efeitos jurídicos da informação publicitária

Meio século atrás, Jean Carbonnier levantara a necessidade da análise jurídica da publicidade, ao afirmar que “o estudo do contrato na nossa época não se deveria separar de um estudo da publicidade” (17).

Para o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, publicidade é “toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias”(18). Para atingir suas finalidades, a publicidade deve observar os princípios básicos de liberdade, identificação, veracidade, lealdade e ordem pública. Porém, há uma distinção qualitativa com a informação em sentido estrito. A publicidade tem por fito atrair e estimular o consumo, enquanto s informação visa a dotar o consumidor de elementos objetivos de realidade que lhe permitam conhecer os produtos e serviços e exercer suas escolhas. Sem embargo da distinção, ambas são espécies do gênero informação, incidindo o dever de informar.

Afirmou-se, acima, que a informação obriga. Esclareça-se que obriga o fornecedor, pois o dever de informar de modo adequado, suficiente e veraz decorre da atividade que exerce. Essa obrigação desponta com especial força na publicidade dos produtos e serviços lançados no mercado de consumo, modificando substancialmente os valores jurídicos. A publicidade utiliza principalmente os meios de comunicação social, mas pode estar contida em mensagens dirigidas diretamente ao consumidor, seja por mala direta seja pela Internet, e nos próprios produtos.

Até o advento e consolidação do direito do consumidor, a publicidade não gerava conseqüências jurídicas a quem dela se utilizasse ou mesmo abusasse. Entendia-se que era o preço a pagar ou a ser suportado pela sociedade, para o desenvolvimento das atividades econômicas, em favor do irrestrito princípio da livre iniciativa. Afirmava-se que era um “dolus bonus”, tolerado ou desconsiderado pelo direito, pois sua função era apenas a de estimular e atrair ao consumo. Mas, já se disse que “a evolução contemporânea do direito positivo, caracterizado pela proteção e informação dos consumidores, a regulamentação da publicidade, a força obrigatória dos documentos publicitários e o desenvolvimento da obrigação de informar, parece deixar um lugar muito reduzido ao ‘dolus bonus’” (19). Ao meu sentir não há mais lugar algum ao “dolus bonus”.

Para realizar o direito fundamental à informação, o direito do consumidor toma a publicidade sob dois aspectos: no primeiro, a publicidade preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade, considerando-a lícita; no segundo, a publicidade ultrapassa limites positivos e negativos estabelecidos na lei, para defesa do consumidor, tornando-a ilícita. A publicidade ilícita é enganosa quando divulga o que não corresponde ao produto ou serviço, induzindo em erro; é abusiva quando discrimina pessoas e grupos sociais ou agride outros valores morais. A publicidade ilícita não produz efeitos em face do consumidor, que pode resolver o contrato por esse fundamento.

A Constituição portuguesa (art. 60º) proibe todas as formas de publicidade oculta ou indireta. Do mesmo modo, a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa rejeita a publicidade que não seja inequivocamente identificada e desrespeite a verdade e os direitos dos consumidores. O sentido de “inequivocamente identificada” resulta em tornar ilícito o merchandising, a meu ver corretamente. Considera-se merchandising a aparição ou inserção camuflada de produtos em programas de televisão, rádio, em filmes, em espetáculos teatrais, sem indicação da natureza de mensagem publicitária. No direito brasileiro não é clara a proibição, havendo entendimento doutrinário de sua possível admissibilidade, desde que seja adaptada ao princípio da identificação (20). Penso, ao contrário, que não preenche o requisito de adequação do dever informar, porque não utiliza a transparência na publicidade, alcançando o consumidor de surpresa e de modo subliminar.

Para os propósitos deste estudo, interessam os efeitos jurídicos obrigacionais da publicidade lícita, nas relações de consumo. Teriam eles natureza de oferta?

10. Informação: oferta ou integração ao contrato?

É sabido que a oferta, seja ela individual ou ao público, classifica-se como negócio jurídico unilateral, para cuja existência e eficácia vinculante basta a única manifestação de vontade do ofertante ou proponente. Produz, portanto, efeitos jurídicos próprios, antes da aceitação e de sua consumação no contrato. A oferta, como qualquer outro negócio jurídico unilateral, pode ser revogada, nos limites que a lei admita, extinguindo o vínculo obrigacional, além de estar sujeita às vicissitudes dos vícios subjetivos de vontade, em especial do erro.

A informação nas relações de consumo, e particularmente a publicidade lícita (adequada, suficiente e veraz), integra-se aos contratos de modo objetivo e inevitável, desde quando concretizados. Não pode ser objeto de retratação ou de escusa da obrigação, sob alegação de erro. A lei portuguesa de defesa dos consumidores, de 1996, é clara, a respeito (art. 7º, 5): “As informações concretas e objectivas contidas nas mensagens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito consideram-se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se por não escritas as cláusulas contratuais em contrário”. Do mesmo modo, o Código do Consumidor brasileiro (art. 36) determina que toda informação ou publicidade suficientemente precisa “obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dele se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.

Trata-se, pois, de obrigação decorrente de lei, de integração contratual compulsória, não se enquadrando, por inteiro, na teoria do negócio jurídico. Essa teoria, melhor dizendo teorias, aprofundam, no plano conceitual, o princípio da autonomia da vontade, pouco importando que arranquem da vontade em si ou da declaração, pois os efeitos negociais queridos são reconhecidos e validados pela lei, nos seus limites. Todavia, a mensagem ou oferta publicitária não é recebida pelo direito com os efeitos queridos pelo fornecedor (atrair ao consumo), mas com efeitos jurídicos obrigacionais definidos pela lei, a saber, vinculando objetivamente o conteúdo da informação, no interesse dos consumidores.

Se de negócio jurídico unilateral se tratasse, então poderia o erro ser oponível ao vínculo obrigacional dela decorrente. E assim, o fornecedor estaria escusado de celebrar o contrato com o consumidor atraído pela mensagem publicitária, alegando que teria havido erro. As conseqüências do erro são a ele imputáveis, que, se for o caso, terá pretensão e ação contra o publicitário. O erro, por exemplo quanto ao preço anunciado, integra-se no risco de sua atividade, não podendo ser oposto aos consumidores, que estariam mais vulneráveis a tais práticas, quase sempre intencionais de atração enganosa. A jurisprudência dos tribunais brasileiros, sem embargo de vacilações naturais ante modelos que escapam do sistema tradicional dos contratos, tem rejeitado o argumento escusativo de erro da mensagem publicitária. A firme orientação nesse sentido previne a solução de conflitos evitáveis e favorece o cumprimento da proteção constitucional do consumidor. Esse efeito preventivo e benéfico tem sido traduzido na prática de muitas empresas em definirem, na publicidade, o número exato de unidades dos produtos à venda e melhor precisão no preço e nas condições de pagamento.

Assim, não se pode considerar a publicidade como oferta, no sentido tradicional do termo, melhor se concebendo como modo de integração compulsória aos contratos de consumo.

11. Vinculação da informação não explícita

A informação insuficiente ou deficiente (informação não explícita) não pode ser óbice à vinculação obrigacional do fornecedor, em benefício do consumidor. Em outras palavras, a informação obriga, ainda que não esteja explicitada, pouco importando que essa omissão seja intencional ou involuntária.

A informação não explícita, que vincula, é toda aquela necessária ao conhecimento e compreensão do consumidor típico, e no seu interesse, emergente da natureza do produto ou do serviço. Nesse sentido, também integra o contrato de consumo. As regras técnicas aplicáveis à segurança de determinado produto, por exemplo, integram a informação como nelas estivessem. Do mesmo modo, as características de qualidade utilizadas em produtos e serviços similares, pelos demais fornecedores.

Se assim não fosse, estar-se-ia a admitir, por via transversa, conduta fundada em venire contra factum proprium. A falta do dever de informar constitui não apenas violação ao direito do consumidor à informação mas ao direito-dever de concorrência, pois estaria em indevida posição de vantagem, que a ordem econômica constitucional rejeita (artigo 170, IV, da Constituição brasileira).

12. Direito à informação e garantia de cognoscibilidade

O direito fundamental à informação visa à concreção das possibilidades objetivas de conhecimento e compreensão, por parte do consumidor típico, destinatário do produto ou do serviço. Cognoscível é o que pode ser conhecido e compreendido pelo consumidor.

Não se trata de fazer com que o consumidor conheça e compreenda efetivamente a informação, mas deve ser desenvolvida uma atividade razoável que o permita e o facilite. É um critério geral de apreciação das condutas em abstrato, levando-se em conta o comportamento esperado do consumidor típico em circunstâncias normais. Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida.

A cognoscibilidade abrange não apenas o conhecimento (poder conhecer) mas a compreensão (poder compreender). Conhecer e compreender não se confundem com aceitar e consentir. Não há declaração de conhecer. O consumidor nada declara. A cognoscibilidade tem caráter objetivo; reporta-se à conduta abstrata. O consumidor em particular pode ter conhecido e não compreendido, ou ter conhecido e compreendido. Essa situação concreta é irrelevante. O que interessa é ter podido conhecer e podido compreender, ele e qualquer outro consumidor típico destinatário daquele produto ou serviço. A declaração de ter conhecido ou compreendido as condições gerais ou as cláusulas contratuais gerais não supre a exigência legal e não o impede de pedir judicialmente a ineficácia delas. Ao julgador compete verificar se a conduta concreta guarda conformidade com a conduta abstrata tutelada pelo direito.

Pretende-se com a garantia de cognoscibilidade facilitar ao consumidor a única opção que se lhe coloca nos contratos de consumo massificados, notadamente quando submetidos a condições gerais, isto é, “pegar ou largar” ou avaliar os custos e benefícios em bloco, uma vez que não tem poder contratual para modificar ou negociar os termos e o conteúdo contratual.

A Lei portuguesa das cláusulas contratuais gerais, de 1985, com as alterações havidas pelo Decreto-Lei nº 220 de 1995, em seu artigo 5º, prevê um dever de comunicação prévia e integral, ao consumidor, das condições gerais que deverão ser integradas ao contrato individual. A norma estabelece que a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com antecedência necessária, tendo em conta a extensão e a complexidade das condições, a possibilidade de seu conhecimento efetivo por quem use de comum diligência, cabendo ao fornecedor o ônus da prova da efetiva e adequada comunicação.

O Código do Consumidor brasileiro (arts 46 e 54) estabelece que os contratos de consumo não serão eficazes, perante os consumidores, “se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo”, ou houver dificuldade para compreensão de seu sentido e alcance, ou se não forem redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, ou se não forem redigidos com destaque, no caso de limitação de direitos.

Todas essas hipóteses legais configuram elementos de cognoscibilidade, situando-se no plano da eficácia, vale dizer, sua falta acarreta a ineficácia jurídica, ainda que não haja cláusula abusiva (plano da validade). Os contratos existem juridicamente, são válidos mas não são eficazes. O direito do consumidor, portanto, desenvolveu peculiar modalidade de eficácia jurídica, estranha ao modelo tradicional do contrato. No lugar do consentimento, desponta a cognoscibilidade, como realização do dever de informar.

Conclusão

Procurou-se demonstrar que o mundo atual assiste a transformações substanciais, para muitos irresistíveis, em que os Estados e os direitos nacionais são postos em tela de julgamento, quanto à sua função prestante, em face da globalização econômica. A crise do Estado social – a promessa generosa e solidária da última etapa do Estado moderno – repercute nos direitos fundamentais de terceira geração, onde se incluem os direitos do consumidor, que brotaram de seu seio.

Paradoxalmente, enquanto o Estado social se reduz, na exata medida do avanço do mercado global, o direito do consumidor se expande, sabido que somente é possível fazê-lo mediante a intervenção estatal, na legislação, nas ações e políticas públicas de proteção e na forte atuação da administração da justiça. Esse paradoxo não pode ser entendido senão como fato, contrário à dura lógica do mercado, decorrente da consciência de que o consumidor não é o elo enfraquecido e despersonalizado da cadeia econômica de produção e distribuição. É pessoa com necessidades, desejos, ideais, que merece respeito à sua dignidade humana, que somente o direito pode assegurar.

Na era da informação, justamente a informação é erigida em direito fundamental do consumidor, de cada cidadão, no plano mais elevado que o sistema jurídico pôde desenvolver, de modo a que a tutela jurídica arme-o de condições para o exercício da liberdade de escolha, como contrapartida ao mercado massificado que tende a todos submeter à sua lógica. No plano internacional, a resolução da ONU e as diretivas das ordens supranacionais afirmam o reconhecimento da natureza fundamental do direito à informação.

A informação e o dever de informar tornam realizável o direito de escolha e autonomia do consumidor, fortemente reduzida pelos modos contemporâneos de atividade econômica massificada, despersonalizada e mundializada. Nessa direção, recupera parte da humanização dissolvida no mercado e reencontra a trajetória da modernidade, que prossegue o sonho mais alto do iluminismo, a capacidade de pensar e agir livremente, sem submissão a vontades alheias, cada vez mais difícil na economia globalizada de Estados e direitos nacionais enfraquecidos, onde as principais decisões econômicas são tomadas por conselhos de administração de empresas transnacionais.

O desafio que se coloca ao jurista é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica e não como simples e abstratos pólos de relação jurídica e muito menos como objetos manipuláveis pelos interesses econômicos. Tratando do direito civil, mas com aplicabilidade certeira ao atual direito do consumidor, o grande jurista e humanista português Orlando de Carvalho (21) pugnou pela “repersonalização” do direito, como autêntico princípio, fundado na “acentuação de sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a pessoa e seus direitos”. Restaurar a primazia da pessoa é assentar o direito na dignitas humana e concebê-lo como um “serviço da vida”, um foyer da cidadania ativa.

Notas:

1. Na Constituição brasileira, o artigo 6º assim os define: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
2. Cf. Aloísio Ferreira, Direito à informação, Direito à comunicação, São Paulo, Ed. Celso Bastos, 1997, p. 94/5, que lista as seguintes espécies de informação: informação oral, informação escrita, informação visual, informação audiovisual, informação jornalística, informação publicitária ou propagandística, informação recreativa, informação individual, informação institucional, informação popular, coletiva ou geral, informação automatizada.
3. Cf. Actas do Congresso Internacional omunicação e Defesa do Consumidor”, Coimbra, 1996.
4. Norberto Bobbio, O tempo da Memória, De senectude e outros escritos autobiográficos, trad. Daniela Versiani, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1997, p. 160.
5. Cf. Actas do Congresso Internacional sobre “Comunicação e Defesa do Consumidor”, cit., p. 492.
6. A Constituição brasileira optou por norma geral assecuratória do direito fundamental do consumidor, inserida no artigo enumerador dos direitos e garantias individuais e coletivas (art. 5º), prescrevendo: “XXXII – O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
7. O Código do Consumidor brasileiro (art. 3º) admite que pessoa jurídica de direito público possa assumir a posição de fornecedor, quando prestar serviço mediante remuneração. Do mesmo modo, a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa (art. 2º.2).
8. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, 1998, p. 281-5.
9. Cf. Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, trad. Ernesto Garzón Valdés, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, p. 86.
10. Para um estudo mais amplo do tema, cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, São Paulo, Ed. Saraiva, 1991, p. 61-70.
11. Información al usuário, in Revista Ajuris, edição especial, Porto Alegre, março 1998, p. 256.
12. Para Antonio Manoel da Rocha e Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1997, p 1234) a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes e futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e tutela.
13. Cf. Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 241.
14. O Código do Consumidor brasileiro, em seu artigo 34, é explícito a respeito. Do mesmo modo, a Lei de Defesa do Consumidor portuguesa (art. 8º,5 ): “O fornecedor ou prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor, sendo solidariamente responsáveis os demais intervenientes na cadeia da produção à distribuição que hajam igualmente violado o dever de informação”.
15. Paulo Luiz Netto Lôbo, Responsabilidade por Vício do Produto ou do Serviço, Brasília, Ed. Brasília Jurídica, 1996.
16. Cf. Geraint G. Howells, Strict Liability in Common Law: Historical Development and Perspectives. Documentos Básicos do Congresso Internacional de Responsabilidade Civil. Blumenau, out./nov. 1995, p. 82.
17. Flexible Droit, 6ª edição, Parias, LGDJ, 1988, p. 273.
18. A diretiva européia nº 84/450/CEE define a publicidade como “qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, artesanal ou liberal tendo por fim promover o fornecimento de bens ou de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações”.
19. Cf. Jacques Ghestin, Traité de Droit Civil – La Formation du Contrat, 3ª edição, Paris, LGDJ, 1993, p. 534.
20. Nesse sentido, um dos mais importantes consumeristas brasileiros, Antônio Herman de Vasconcelos Benjamin, in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor,Ada Pellegrini Grinover et al., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1998, p. 266.
21. Cf. A Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, Centelha, 1981.

PAULO LUIZ NETTO LÔBO é Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Federal de Alagoas e dos cursos de Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco. Diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.

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