É possível que o Poder Judiciário, sob o pretexto de aplicar e fazer valer a legalidade, ignore situações que o próprio decurso do tempo consolidou? A pergunta não é inédita, sendo recorrente no meio jurídico. Todavia, recentemente vem ganhando destaque por conta de uma realidade vivida no estado do Pará. Isso porque, principalmente no início da década 1990-2000, a Administração Pública contratou servidores de forma direta, isso é, sem concurso público, para atendimento de necessidades temporárias.
Esse tipo de contratação tinha prazo determinado de seis meses, prorrogável uma única vez e, no máximo, pelo mesmo período, era previsto na lei estadual nº. 5.389/87 e, posteriormente, nas leis complementares estaduais nº 07/91, 11/93, 19/94, 30/95 e 36/98. Muitos desses servidores jamais foram exonerados, tendo permanecido durante, aproximadamente, os últimos 20 anos no serviço público, executando, de boa-fé, suas atividades diárias da mesma forma como seus colegas efetivos (concursados) ou mesmo os ocupantes de cargos comissionados.
Agora, anos depois do ingresso desses servidores, fala-se de forma reiterada na necessidade de exonerar, demitir ou distratar esses servidores temporários, a bem da aplicação da lei, pelo ingresso somente via concurso público.
Nesse contexto é que se retoma a questão inicial: até que ponto é legítima a intervenção do Judiciário para desfazer situações consolidadas pelo tempo? Os defensores da exoneração dos servidores temporários sustentam que a Constituição Federal trouxe a regra absoluta do concurso público como ingresso no serviço (art. 37, II). Isso, aliás, não é apenas um argumento, mas um fato, pois, depois de 1988, não há exceção legal que permita o ingresso no serviço sem concurso público – salvo a nomeação para cargo em comissão.
Entretanto, ao que parece, a questão é maior do que a simples aplicação da letra da lei. Não que a lei seja norma a ser relativizada sempre, a qualquer tempo e sob qualquer pretexto. Não, porque isso é nocivo à segurança jurídica, que não se alinha com instabilidades. Todavia, o mesmo princípio da segurança jurídica impõe uma reflexão ponderada da legalidade em casos específicos, nos quais, em nossa opinião, insere-se a situação de alguns dos servidores temporários.
Para justificar essa ponderação, cabe ressaltar que a legalidade é um princípio e, como tal espécie de norma jurídica, não é, em abstrato, superior a nenhum outro princípio. Em outras palavras, princípios, entre si, não têm hierarquia, de modo que, quando houver colisão entre eles, é no caso concreto que se aplicará um ou outro, por meio do juízo de ponderação. Não se pode predeterminar que a legalidade é superior, por exemplo, aos princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e da boa-fé objetiva.
Pois bem. Posicionando a discussão a partir dessa premissa (não há hierarquia entre princípios), cabe destacar algumas situações decorrentes desses anos de serviço público prestados pelos temporários: (i) os que ainda estão no cargo, por certo, fizeram por merecer; do contrário, já teriam sido penalizados ou mesmo demitidos; (ii) a cada ano de inércia da Administração Pública, crescia a expectativa de que, em termos de previdência e seguridade, algum efeito aquele labor prestado ao serviço público surgiria; (iii) o Estado beneficiou-se da contribuição previdenciária, quer para INSS ou para o regime próprio de previdência.
Assim, é absolutamente verossímil afirmar que, ante a inércia do Poder Público, alguma confiança de que aquela situação não mais se alteraria surgiu, pois não é característico da vida humana a convivência sob constante instabilidade, bem como porque a Administração sempre teve o poder de desfazer a ilegalidade, sem, entretanto, efetivamente fazê-lo. Além disso, o fato de permanecerem tanto tempo no serviço público consolidou, objetivamente, a vida profissional e familiar desses servidores, que destinaram uma parcela significativa de suas vidas ao serviço público.
É aí que a confiança, que é valor protegido pelo direito, desponta como justificativa para a permanência desses servidores no cargo público. Embora tivesse o poder para tanto, a Administração Pública não os exonerou no prazo inicialmente previsto, prorrogando, indefinidamente, o vínculo dos servidores que só podiam pressupor a legalidade de suas situações. Acresça-se, ainda, que é ilógico afirmar, sob a ótica da segurança jurídica, que a relação do Estado com esses servidores esteve e sempre estará em risco, pois a instabilidade não é comum à ideia de justiça e direito; em algum momento desses longos anos de serviço, há que se admitir que houve a estabilização desses servidores.
Nesse ponto, é fácil verificar que a situação dos temporários representa o conflito direto entre os princípios da legalidade e do amplo acesso aos cargos públicos com os princípios da segurança jurídica, da tutela da confiança e da boa-fé objetiva. Daí, numa análise crítica, ponderando os princípios envolvidos, é possível compreender que a repercussão social será expressivamente mais negativa e prejudicial caso simplesmente haja a desconsideração da estabilização dos servidores e sua exoneração do serviço público. Esses, que por vontade da Administração Pública permaneceram tantos anos no serviço público, deparar-se-ão, do dia para a noite, com a necessidade de se reinserir no mercado de trabalho, após anos exercendo apenas uma atividade: o serviço público.
Quem sofrerá maior prejuízo? Aqueles que têm mera expectativa de tentar ingressar no serviço público, caso seja mantida a situação funcional dos temporários, ou estes últimos, que efetivamente já estão há anos no serviço público, caso não lhes seja reconhecida a estabilização de sua situação funcional e haja sua exoneração?
Acolhendo grande parte dos argumentos aqui expendidos, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, analisando o recurso em mandado de segurança nº. 29.970/PA, reconheceu, por unanimidade, o direito de uma servidora temporária permanecer no serviço público, ante a estabilização de sua situação funcional após 15 anos de serviço público.
Esse caso citado ainda deverá ser julgado, novamente, pelo próprio STJ e, também, pelo STF, caso o estado do Pará, que é parte recorrida no processo, provoque a atuação da Corte Maior. Além disso, muita discussão judicial ainda é aguardada sobre a questão dos temporários. Entretanto, fato é que não se está diante, simplesmente, de uma hipótese de se aplicar literalmente a lei, ignorando princípios que também são normas jurídicas e são afetos à própria ideia de justiça.