Autor: Emerson Souza Gomes
A Constituição Federal declara a família como base da sociedade, sendo dever do Estado prover proteção especial aos seus entes, mediante assistência integral à saúde, à educação, à alimentação, à dignidade, dentre outras (art. 226 e segts).
Outrossim, a dignidade – princípio fundamental do ordenamento jurídico – exige o atendimento de condições materiais mínimas de subsistência ao ser humano, asseguradas, dentre outros, nos direitos sociais, nos quais se insere o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS (art. 7º, III, CF/88).
Sobretudo, citado instituto, de natureza alimentar e substitutivo da estabilidade no emprego, visa manutenir o trabalhador e a sua família nas circunstâncias de desemprego involuntário, através da formação compulsória de uma reserva de poupança, acrescida, de um plus indenizatório, ou seja, da multa fundiária de 40% (art. 18, §1º, Lei 8.036/90-FGTS).
Entretanto, cabe destacar que na Lei do FGTS incidem demais circunstâncias legítimas ao saque (art. 20), irreverentes à ocorrência da demissão involuntária, amparadas em um direito social e na dignidade do ser humano que autorizam ao trabalhador dispor do montante em depósito, tal como para o provimento do direito à moradia (incs.V, VI, VII); do direito à saúde (inc. XI), do direito à vida (inc. XIII, XIV); no caso fortuito ou força maior (incs. II, X,), e na necessidade grave e premente (inc. XVI).
Há que se denotar, porém, que o legislador ao enumerar fatos prováveis, fez com que outras hipóteses, tão ou mais belicosas aos direitos fundamentais e sociais, ficassem à margem de tutela específica, causando contra senso jurídico.
Noutro aspecto, é de espanto o trabalhador poder utilizar seus haveres na aplicação em Fundos Mútuos de Privatização (art. 20, XII); amortizar extraordinariamente empréstimos imobiliários perante instituições financeiras (art. 20, VI); e não poder, igualmente, fruir de sua propriedade para prover o próprio sustento e da sua família, quando comprovado a sua insuficiência financeira ou o estado de necessidade.
Ainda, a dignidade da pessoa humana repudia qualquer limitação de exercício de direito fundamental nos termos do art. 5°, sendo expressão do constituinte originário a inviolabilidade da propriedade quando exercida em consonância com a sua função social.
Neste esteio, é de clareza que a interpretação do art. 20 da Lei 8.036/90 deve ser norteada pela função social do diploma, para o que conspira a jurisprudência:
“Administrativo. Levantamento do FGTS. Alvará Judicial. Trabalhador desempregado. Preliminar. Incompetência ratione materiae. Improcedência. interpretação sistemática da lei nº 8.036/90, art. 20. Finalidade social da lei. decreto nº 99.684/90, art. 35, inc. VIII. 1. Não procede a preliminar de incompetência deduzida. Não se trata de o Poder Judiciário ter competência legal para liberar o FGTS, mas sim de examinar se há ou não o direito subjetivo do autor em obter, por via de Alvará Judicial, a liberação dos valores existentes em sua conta fundiária. Mais que uma questão legal, trata-se de uma questão de direito subjetivo, subordinada ao exame do judiciário. 2. Impõe-se seja utilizada a interpretação sistemática, pois a finalidade social da lei autoriza que também em outras circunstâncias, além daquelas elencadas no art. 20 da Lei nº 8.036/90, seja deferido o direito ao saque da conta fundiária. 3. Apelação improvida.(Tribunal- Quarta Região, Classe: AC – Apelação cível– 213156, Processo: 9704746938 UF: PR Órgão Julgador: Quarta Turma, Data da decisão: 18/07/2000.)”
Assim, demonstrada a necessidade premente do trabalhador em utilizar o montante depositado em sua conta vinculada, nada mais justo do que a liberação dos depósitos. Acompanha esta inteligência o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
“Administrativo. PIS. Levantamento. Necessidade premente. – Admissível a expedição de alvará para liberação do PIS em caso de doença grave do trabalhador ou familiar, ainda que não enumerada expressamente em lei. – O PIS e o FGTS nada mais são do que a poupança do trabalhador, devendo prevalecer o caráter social a que são destinados. – Honorários fixados em 20% sobre o valor da causa, considerando que se aplicados os 10% usualmente fixados, o valor resultante seria ínfimo. – Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir. – Apelação provida. (APELAÇÃO CIVEL – 627163, Processo: 200372050027707 UF: SC Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA,Data da decisão: 23/03/2004, DJU DATA:12/05/2004 PÁGINA: 691, Relator(a) JUIZA SILVIA GORAIEB, Decisão A TURMA, POR MAIORIA.) “
Outrossim, a situação de desemprego e as dificuldades financeiras, colaboram para que seja liberada movimentação:
“Alvará de levantamento de FGTS. Idade avançada e dificuldades financeiras. Desemprego. Hipóteses não previstas no art. 20 da lei 8.036/90. Interpretação sistemática. Observância da finalidade social do fundo para permitir o saque. honorários devidos pela cef que opôs resistência ao pedido. – A interpretação sistemática autoriza a parte autora que se encontra com idade avançada e desempregada a movimentar a sua conta fundiária, embora não se amoldando diretamente às hipóteses legais de movimentação da conta fundiária descritas no artigo 20 da Lei nº 8.036/90, em razão da própria finalidade social do Fundo. – Recurso provido. Inversão dos ônus da sucumbência. ( Acordão Origem: TRIBUNAL – QUARTA REGIÃO. Classe: AC – APELAÇÃO CIVEL – 400775, Processo: 200071040048516 UF: RS Órgão Julgador: QUARTA TURMA, Data da decisão: 29/08/2002 Documento: TRF400085240 , Fonte DJU DATA:18/09/2002 PÁGINA: 429 DJU DATA:18/09/2002 , Relator(a) JUIZ JOEL ILAN PACIORNIK , Decisão A TURMA, POR UNANIMIDADE, DEU PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.)”
Por fim, o Superior Tribunal de Justiça, considera que as hipóteses elencadas no art. 20, da sobredita lei fundiária, não se tratam de enunciação numerus clausus, cabendo, destarte, o saque em outras situações.
“FGTS. Levantamento dos saldos. Pagamento de resgate do mútuo. Possibilidade. 1. A enumeração do art. 20, da Lei 8.036/90, não é taxativa, sendo possível, em casos excepcionais, o deferimento da liberação dos saldos do FGTS em situação não elencada no mencionado preceito legal. Precedentes da 1ª Turma. 2. Encontrando-se o mutuário em dificuldades financeiras, inadimplente perante o SFH, caracteriza-se a “necessidade grave e premente”, prevista no disposto no art. 8°, II, “c”, da Lei n.° 5.107/66 e na Lei. n.° 8.036/90, interpretada extensivamente, de forma autorizá-lo a levantar o fundo de garantia para saldar as prestações em atraso. 3. Ao aplicar a lei, o julgador subsunção do fato à norma, deve estar atento aos princípios maiores que regem o ordenamento e aos fins sociais a que a lei se dirige (art. 5.º, da Lei de Introdução ao Código Civil). 4. Recurso especial improvido. (Acórdão RESP 322302 / PR ; RECURSO ESPECIAL, 2001/0051541-0, Fonte DJ DATA:07/10/2002 PG:00184, SJADCOAS VOL.:00121 PG:00071 , Relator Min. LUIZ FUX (1122), Data da Decisão 17/09/2002, Orgão Julgador , T1 – PRIMEIRA TURMA )”
Desta forma, na carência de recursos para o trabalhador manutenir a si e a sua família, configurando a necessidade premente, a inteligência doutrinária e jurisprudencial, especialmente, norteada na prevalência dos direitos fundamentais; na salva-guarda da dignidade da pessoa humana; na proteção da família; no uso da propriedade nos limites da sua função social; tem admitido a movimentação pelo trabalhador dos valores depositados em sua conta fundiária, contrastando, destarte, com uma interpretação literal da legislação extravagante, ou seja, do art. 20 da Lei 8.036/90.
Autor: Emerson Souza Gomes
Advogado em Joinville(SC), sócio da Pugliese e Gomes Advocacia, data do texto: agosto/2004, Rua Abdon Batista, 121, sala 1006, centro, Joinville(SC), emerson-adv@terra.com.br