Luiz Fernando Valente de Paiva, Guilherme de A.C. Abdalla*
Há uma grande razão para as empresas prestadoras de serviços aéreos públicos e de infra-estrutura aeronáutica festejarem o Projeto da Nova Lei de Falências – a Subemenda Aglutinada Global às Emendas de Plenário ao Substitutivo Adotado pela Comissão Especial ao Projeto de Lei nº 4.376-B de 1993 (Projeto de Lei nº 205, de 1995) – atualmente em deliberação no Congresso Nacional.
De fato, a atual Lei de Falências (Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945) estabelece que o devedor pode, para evitar ou suspender a decretação de quebra, requerer a concordata (preventiva ou suspensiva, conforme o caso), que pode ser qualificada, em poucas palavras, como um perdão parcial das dívidas e/ou uma dilação concedida às empresas em dificuldades financeiras para solverem suas dívidas, evitando-lhes, ou suspendendo-lhes, a falência e suas conseqüências desastrosas. Um favor legal ao qual os credores não podem se opor, salvo se o devedor não preencher algum dos requisitos elencados na lei ou se a falência lhes for mais benéfica.
Entretanto, estabelece o art. 187 do atual Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986) que não podem impetrar concordata as empresas que, por seus atos constitutivos, tenham por objeto a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica. Esse dispositivo, que tem suas origens no art. 1º do antigo Decreto-lei nº 669, de 8 de julho de 1969, impede – de maneira expressa e inquestionável – que tais empresas se beneficiem do regime de concordata.
A justificativa para tal exclusão seria a de que os serviços de transporte aéreo público, que refletem o caráter de segurança e soberania nacionais desde seus primórdios, só terão a precisão almejada pela nação se, e somente se, a empresa prestadora estiver munida de condições econômico-técnico-financeiras acima de qualquer suspeita. Uma empresa aérea que se encontre em estresse financeiro não teria condições mínimas para preservar a segurança de seus serviços, assim como os critérios de eficiência e regularidade indispensáveis ao setor, sendo de rigor a intervenção pelo Poder Executivo, seguida de liquidação extrajudicial ou falência (esta podendo ser requerida diretamente por credores, independente de prévia intervenção). Nesse exato sentido a exposição de motivos do art. 1º do Decreto-lei nº 669:
“Considerando que a navegação aérea só pode ter a eficiência, isto é, segurança, regularidade e precisão, se a empresa que a explora estiver em condições econômico-financeiras que permitam, em termos de planejamento, execução, manutenção, supervisão e controle, a perfeita sustentação de serviços através de uma sólida estrutura, capaz de plena atividade;
Considerando que, se a empresa de navegação aérea, entra em falência, concordata ou liquidação, sua estrutura técnico-financeira não tem mais condições adequadas e necessárias a merecer a confiança de proporcionar serviços regulares, eficientes e, sobretudo, dotados da imprescindível segurança, que compete ao Governo fiscalizar e garantir;
Considerando que a concordata, sendo um favor legal, que se dá à empresa estritamente comercial para continuar o seu negócio, não é de molde a ser admitida para a empresa de transporte aéreo, quando se tem em vista, acima do interesse comercial da empresa, a regularidade e segurança do vôo, decreta:
Art. 1º. Não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica.”
Esta mesma exceção (impossibilidade do benefício da concordata) foi também imposta pelo legislador, exemplificativamente, às instituições financeiras em geral, às sociedades seguradoras, aos consórcios e às usinas de açúcar. Conquanto as razões da exclusão sejam distintas, sua premissa é análoga, qual seja o interesse público.
Parênteses à parte, ousamos discordar data maxima vênia da visão dos legisladores de 1969 e 1986 em relação às empresas prestadoras de serviços aéreos públicos e de infra-estrutura aeronáutica, primus porque a segurança do transporte aéreo público não advém da existência ou não de um processo de concordata sobre a empresa, mas sim do controle de aeronavegabilidade de seus bens e serviços – entre outros – exercido pronta e incansavelmente pelo Departamento de Aviação Civil – DAC; secundus porque a regularidade e eficiência dos serviços podem e devem ser igualmente fiscalizadas pelo DAC, sob pena das sanções previstas em lei, sendo irrelevante destarte se a empresa encontra-se sob regime de concordata; tercius porque a legislação em vigor impõe a contratação de seguros em níveis adequados, e o descumprimento dessa legislação obriga a que as empresas estacionem imediatamente suas aeronaves; e, por fim, porque a confiança nos serviços aéreos e correlatos não pode, e não deve, estar relacionada ao regime de administração da empresa. Vejamos senão, exemplificativamente, a confiança da nação norte-americana conferida à segurança dos serviços prestados por determinadas empresas aéreas em regime de Chapter 11. Mas voltemos ao tema em exame.
Ocorre que um dos efeitos do Projeto da Nova Lei de Falências – se e quando aprovado pelo Congresso, e observada sua vacatio legis – será a extinção da ora denominada concordata, instituindo-se, em seu lugar, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial, que muito embora possuam alguns efeitos semelhantes à concordata, distinguem-se formal e substancialmente. São institutos jurídicos diversos, por conseguinte.
Pois bem. Tendo-se em mente que o Projeto da Nova Lei de Falências determina, em seu art. 2º, §1º, que não se aplicará a recuperação judicial única e exclusivamente às empresas referidas no inciso II deste artigo(1), numerus clausus (trata-se de rol taxativo), pode-se concluir que aquela (recuperação judicial) se aplicará, assim como a recuperação extrajudicial, a todas as demais empresas, dentre as quais se incluem as empresas prestadoras de serviços aéreos públicos e de infra-estrutura aeronáutica.
Com efeito, a Nova Lei de Falências – caso aprovada – deverá ser interpretada como lei nova e específica aplicável, como regra geral, a todo e qualquer concurso de credores, uma vez que regula inteiramente a matéria (art. 2º, §1º da Lei de Introdução ao Código Civil), salvo nas hipóteses expressamente excepcionadas em seu próprio texto, ficando revogado implicitamente o art. 187 do Código Brasileiro de Aeronáutica. Poderão, então, as empresas prestadoras de serviços aéreos públicos e de infra-estrutura aeronáutica se valer do novo instituto da recuperação (judicial ou extrajudicial).
Esta interpretação (de que a Nova Lei de Falências afastará a aplicação dos dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica) já foi analogamente adotada, em parte, pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ao julgar conflito de normas entre o Código Brasileiro de Aeronáutica (ou a Convenção de Varsóvia no caso de transporte aéreo internacional) e o Código de Defesa do Consumidor em matéria de responsabilidade civil, optou, em parte, repise-se, pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, em que pese opiniões divergentes.
Infere-se, deste modo, que tão logo seja aprovada e sancionada – e uma vez em pleno vigor – a Nova Lei de Falências, desde que mantida sua redação atual, as empresas que, por seus atos constitutivos, tenham por objeto a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica, poderão valer-se a princípio dos novos regimes da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, conforme o caso, regimes esses que, se realmente requeridos por tais empresas, deverão ter sua legalidade reconhecida pelo Poder Judiciário.
Nota de rodapé
1- Instituições financeiras, públicas e privadas, cooperativas de crédito, consórcios, sociedades de previdência privada, sociedades operadoras de planos de assistência à saúde, sociedades seguradoras, de capitalização, e outras entidades voltadas para idêntico objeto.
Luiz Fernando Valente de Paiva é associado de Pinheiro Neto Advogados
Guilherme de A.C. Abdalla é associado de Pinheiro Neto Advogados