A Lei Seca e o valor da vida – Cruzada pela vida

Quando a vida humana, bem mais precioso, entre todos os demais, nada mais vale, é sinal de que o homem deve parar e fazer profunda reflexão, porque chegou ao fundo do abismo e há que repensar o sentido de todas as coisas!

A Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2.008, fruto da adoção da Medida Provisória nº 415, de 2008 [1], convertida no Projeto de Lei de Conversão nº 13, de 2.008, altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1.997, e a Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1.996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do artigo 220 da Carta Magna.

Este diploma, ao atualizar o Código Brasileiro de Trânsito, tem um objetivo essencialmente educativo e também punitivo, visto que, a par de estabelecer alcoolemia zero, determina ainda aos estabelecimentos que oferecem ou vendem bebidas alcoólicas coloquem no recinto aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool. Esta lei entrou em vigor na data de sua publicação, que ocorreu no dia 20 seguinte. [2]

A lei veda a venda varejista ou o oferecimento de bebidas alcoólicas, para consumo no local, na faixa de domínio de rodovia federal ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia, impõe multa e faz algumas ressalvas, em se tratando de área urbana, segundo delimitação imposta pela legislação do Distrito Federal ou de cada município.

Esta lei modifica ainda os artigos 165, 276, 277, 291, 296 e 306 do CTB. O artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro passa a considerar gravíssima a infração, se a direção de veiculo se der, sob influência de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência, impondo a multa e a suspensão do direito de dirigir, por doze meses, bem como a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

O artigo 276 permitia a concentração de seis decigramas de álcool no sangue. Com a nova redação, qualquer que seja a dosagem impõe ao infrator as penalidades do artigo 165. Entretanto, a órgão do Poder Executivo Federal é atribuído disciplinar as margens de tolerância em casos específicos, o que demonstra a elevada sensibilidade do legislador [3].

O artigo 277 obriga o condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou alvo de fiscalização, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou de uso de substância psicoativa, submeter-se aos testes e exames nele descritos.

A ordem deste comando não é automática. Uma leitura atenta dessa disposição leva à conclusão de que a submissão do motorista a testes de alcoolemia [4], exames clínicos, perícia ou outro exame, está condicionada ao seu envolvimento em acidente de trânsito ou ser alvo de fiscalização de trânsito. São situações distintas. A outra condição não menos importante, indispensável e decisiva, é a suspeita de dirigir sob a influência de álcool ou de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.

A lei é cristalina e exige que o exame se realize por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN [5], que permitam certificar o estado da pessoa. Em caso de recusa, a comprovação, sobre os sinais notórios de embriaguez, excitação ou torpor do condutor, poderá ser feita por outros meios de prova em direito admitidas. O ato da autoridade está, pois, vinculado à ocorrência desses pressupostos. Tanto o infrator quanto o agente estão acorrentados às amarras da lei e o abuso deve ser severamente reprimido.

É lamentável que a lei não se refira também aos outros tipos de veículos, mencionados no artigo 96 do Código.

O novo artigo 291 manda aplicar, quando se tratar de veículos automotores, aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos artigos 74, 76 e 78 da Lei 9.099, de 1995. Não obstante, não incidirão essas disposições benéficas, se o agente estiver sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente ou ainda transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h.

Trata-se, como se percebe, do abominável “pega” ou abuso de velocidade. Esta lei veio em boa hora, não obstante, é preciso mais! Faz-se necessária a conscientização da sociedade, a criminalização mais severa de comportamentos execráveis e o endurecimento das penas, se os crimes de trânsito forem praticados por agentes, sob a influência do álcool ou de substância psicoativa causadora de dependência. Ou ainda quando praticados durante os tradicionais “pegas ou rachas” ou trafegando em excesso de velocidade.

As sanções previstas no Código Brasileiro de Trânsito, neste particular, são inexpressivas, irrisórias e incompatíveis com a realidade trágica em que vivemos e merecem ser modificadas o quanto antes.

Tem razão o ilustre Professor Luiz Flávio Gomes, ao declarar que “o legislador adotou a política da tolerância zero, não obstante ainda há graves falhas na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução homicida, que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total menosprezo à vida alheia” [6].

Não há que falar em autoritarismo, quando se trata de fazer obedecer à lei. Esta existe para ser cumprida, com rigor. No entanto, os princípios da dignidade humana, da razoabilidade e da proporcionalidade devem ser rigorosamente respeitados, para que a lei não passe de “flatus vocis”, como ensinava o pranteado advogado Edson Alves. Para o abuso da autoridade ou o excesso, existe o remédio adequado, previsto na legislação pátria.

É evidente que um bombom com licor não pode levar ao cúmulo de penalizar o motorista, sob pena de tudo não passar de chacota e levar ao descrédito uma lei que, se aplicada, com bom senso, trará ótimos resultados. A fiscalização deve ser feita, efetiva e continuamente, sem espalhafato, e não como “chuva pirotécnica”, ao acaso.

Quem dirige não deve beber. Quem bebe não deve dirigir. Com muita propriedade, o Ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, alerta que beber e dirigir são incompatíveis e que isso deve ser levado a sério, visto que os números (de violência nas estradas) são assustadores. [7]

A rigidez não existe apenas no Brasil, segundo a International Center for Alchool Policies, sediada em Washington. Países, como a Suécia, a Polônia, a Estônia, a Mongólia, a Noruega e os Estados Unidos da América são exemplos de rigor e seriedade.

Não vinga a tese incongruente de inconstitucionalidade da lei, por obrigar a pessoa a fazer prova contra si mesmo, violar o direito de ir e vir [8]. A proibição realmente existe para quem for dirigir o veículo automotor, após ingerir bebida alcoólica ou estar sob efeito de drogas proibidas, o que é bem diferente. Também imprestável é o argumento piegas de que a proibição trará o desemprego de milhares de pessoas, fere o direito adquirido de comerciantes, de empresários ou a livre iniciativa e a liberdade econômica. Tudo isso não passa de verdadeiro sofisma. Da mesma forma, poder-se-ia dizer que o fim do cangaço causou o desemprego de centenas de pistoleiros profissionais, o que peca pelo absurdo [9]. De igual modo, ninguém, em sã consciência, há de condenar o fim da escravatura, com a edição da Lei Áurea, que, segundo seus detratores, empobreceu os proprietários de escravos e feriu-lhes o direito adquirido.

A lei, em nenhum momento, proíbe o comércio de bebidas, como não veda o comércio de armas, como se propalou no passado recente, nem a livre iniciativa. Impõe restrições que a própria Constituição admite. O artigo 5º é expressivo, quando afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:…”. Vale dizer: o direito não é absoluto, está sujeito às restrições impostas pela lei e pela própria Carta.

O direito à vida, à segurança e à incolumidade são valores fundamentais que se superpõe a qualquer outro direito. Regis de Oliveira, magistrado e deputado, em alentado artigo, sobre a religião e a transfusão de sangue, defende esta tese com inequívoco brilho e incontestáveis argumentos. [10] O Supremo Tribunal Federal, em memorável julgamento, sufragou o mesmo entendimento. [11]

Gilmar Ferreira Mendes, estudando com profundidade a questão da colisão dos direitos fundamentais, observa, com notável acuidade, que, “no processo de ponderação desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais, não se deve atribuir primazia absoluta a um ou outro princípio ou direito.” Citando o Tribunal alemão, prossegue: “Ao revés, esforça-se o Tribunal para assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuação”. [12]

O rigor da lei, em relação à bebida e ao motorista, é defendida por especialistas. O que se objetiva é exatamente a preservação da vida humana. O psiquiatra, Professor Ronaldo Laranjeira, da Unifesp, adverte que nos Estados Unidos da América a tolerância zero já ocorre para a faixa etária até os trinta anos. [13] Sérgio Seibel, coordenador-técnico do Centro de Atenção Psicossocial, em erudito trabalho, assevera que existe “um consenso de que nenhum padrão de consumo de substâncias esteja isento de riscos” e citando a equipe da Professora Vilma Leyton, do Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da USP, demonstra quão desastrosa é a impunidade a que a população se acostumou, de sorte que advoga, com razão, a necessidade de medidas complementares, tanto no âmbito administrativo quanto no criminal, visando uma futura revisão legislativa [14].

O Poder Judiciário não se vem furtando da responsabilidade que lhe cabe e, num crescendo, admite a penalização de criminosos que sequer se apiedam das vítimas e não se constrangem com as mortes que causam.

O Superior Tribunal de Justiça, pela 5ª Turma, decidiu que se caracteriza o dolo eventual, quando o agente pratica ato do qual pode resultar efeito lesivo, in casu, morte, ainda que não pretendesse produzir aquele resultado, mas assumiu, com o seu comportamento, o risco de produzi-lo (artigo 181, I, do Código Penal). Prossegue o v. acórdão que o agente de homicídio com dolo eventual produz, sem dúvida, perigo comum, nos termos do artigo 121, §2°, inciso III. Comete o crime doloso (dolo eventual) [15], ao imprimir velocidade excessiva a veículo automotor (165 km/h) e trafegar em via pública urbana movimentada (a Ponte JK), provocando desastre que produz a morte de condutor de automóvel que se deslocava em velocidade normal, à sua frente, abalroando-o pela sua parte traseira. [16]

Afinal, ser juiz é ser bom, quando necessário. Ser justo, sempre. Ser intransigente com a injustiça e a ilegalidade. Ser solidário com o inocente. Ser duro com o infrator. Diga-se o mesmo do policial.

Desafortunadamente, a impunidade, que aqui se tornou regra, é o início da derrocada da civilização, uma vez que, nas sociedades adiantadas, a punição efetivamente subsiste. Crimes hediondos, crimes de extorsão mediante seqüestro e outros, que tais, merecem punição severa e exemplar, sem qualquer contemplação, sem as fantasiosas, românticas e adocicadas concessões e filigranas jurídicas que transformam esses criminosos em donatários de injustas benesses que nem os homens de bem desfrutam, rompendo, destarte, os mais sagrados princípios de justiça.

A verdadeira justiça reside na punição exemplar dos que se voltam contra a própria sociedade, não como instrumento de vingança, o que é inadmissível, senão como forma de, tal qual erva daninha, extirpá-los do meio social, como proteção aos membros dessa mesma sociedade, em se tratando de crimes que abalam a consciência dos homens de bem e projetam a animalidade desses desertores da lei.

O veículo automotor é tão mortífero quanto qualquer arma de fogo ou branca, quando dirigido por quem o utilize, sem a mínima responsabilidade, abusando criminosamente da velocidade, varando ruas, avenidas e estradas, doidamente.

O mau motorista, indisciplinado e arrogante, e o condutor bêbado podem ser comparados ao terrorista insensível, merecedor da mais severa punição, porque causam a morte e a destruição de milhares ou milhões de vidas inocentes que não pediram para morrer ou serem mutiladas.

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NOTAS

Regulamentada pelo Decreto nº 6.366, de 30 de janeiro de 2008.
Cf.www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei_lei2008.htm, consulta em 6 de julho de 2008. Cf. Mensagem nº 404, de 19 de junho de 2008, de veto parcial do PLC nº 13/2008.
O Decreto nº 6.488, de 19 de junho de 2.008, regulamenta os artigos 276 e 306 do CTB, disciplinando a margem de tolerância de álcool no sangue e a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeitos de crimes de trânsito. O artigo 1º desse decreto determina ao CONTRAN definir por resolução as margens de tolerância de álcool no sangue, de acordo com proposta formulada pelo Ministro de Estado da Saúde. O artigo 306 do CTB define a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas ou sob efeito de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, para efeito de aplicação da pena.
Presença de álcool no sangue (cf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição); concentração passageira de álcool etílico no sangue, resultante da ingestão de bebidas alcoólicas; estado do sangue que contém álcool (cf. Dicionário Houauiss da língua portuguesa, Edição Objetiva, 2001, 1ª edição).
Conselho Nacional de Trânsito – coordenador do Sistema Nacional de Trânsito (artigo 7º, I, do Código Brasileiro de Trânsito).
Cf. “Lei seca: …”, in Folha de São Paulo, de 2 de julho de 2008, p. A3.
CF. O Estado de São Paulo, de 2 de julho de 2008, p. C7.
Cf. noticiário em inúmeros periódicos.
Em 4 de julho de 2008, a Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento – ABRASEL Nacional – ingressou no STF com a ação direta de inconstitucionalidade dos artigos 2°, 4° e 5º, incisos III, IV e VIII, da referida Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008 (ADI 4103).
Cf. Transfusão de sangue e religião, in Prática Jurídica, Editora Consulex, Brasília, DF, nº 74, de 31 de maio de 2008.
Cf. Habeas Corpus nº. 82.424/RS, j. em 19.9.2003. Relator Ministro Maurício Corrêa.
Leia-se, a propósito, o excelente trabalho de Gilmar Ferreira Mendes, Colisão de Direitos Fundamentais, na Revista de Informação Legislativa nº 121, pp. 297/301. Neste sentido, J.J.Canotilho e Jorge Miranda.
In Folha de São Paulo, de 24 de junho de 2008, p. C3.
Cf. Revista Jurídica Consulex, Editora Consulex nº 276, de 15 de julho de 2008.
Em 2 de setembro de 1981, quando se encontrava, na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 2.083, de 1980, do Deputado Nilson Gibson, que definia os crimes de trânsito, apresentamos, ao Instituto do Advogados Brasileiros, a indicação para propor ao parlamentar a qualificação dos delitos de trânsito, pelo dolo eventual, nas hipóteses definidas pela lei, com o objetivo de “guilhotinar de vez esse flagelo, nos casos, por exemplo, do bêbado que dirige o automóvel, do excesso de velocidade e dos pegas, para não se apadrinharem os malfeitores.”
Cf. Recurso Especial nº 912.060, Distrito Federal (2006/0268673-3), acórdão julgado em 14 de novembro de 2007. Neste sentido, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Cf. O dolo eventual nos crimes de trânsito e a navalha de Occam, in site http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10694. Consulta em 6 de julho de 2008.

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Leon Frejda Szklarowsky
advogado e consultor jurídico em Brasília (DF), subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, editor da Revista Jurídica Consulex

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