A MEDIDA PROVISÓRIA n.º 229/04 e O ESTATUTO DO DESARMAMENTO – RETOMANDO A QUESTÃO DA EFICÁCIA DE SEUS
ART. 12 e 14 (posse irregular de arma de fogo)
Em abril de 2004, experimentei a honra de ter publicado neste Boletim, o de n.º 137, artigo intitulado “Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu art. 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido)”. Naquela ocasião, sustentei que, embora em vigor, o dispositivo em comento não poderia surtir efeitos até que se encerrasse o prazo para o registro ou deposição das armas de fogo irregulares, cuja posse criminosa acabou por ser, ainda que de forma pouco técnica, anistiada. Foi o que denominei, naquela ocasião, de anistia temporária[1].
Com o advento da Medida Provisória n.º 174/04, o prazo inicial para o registro ou deposição das armas irregulares foi modificado, o que implicou em dilação do termo final para o exercício do direito, conferido pelo Estatuto do Desarmamento aos possuidores de armas de fogo irregulares, de delas se livrar legalmente, sendo por isto indenizados, ou mesmo promover a sua regularização.
Inicialmente calculei aquele termo final em 19 de dezembro de 2004[2]. Mas falou-se, posteriormente, em 23 de dezembro de 2004, numa clara confusão entre dias e meses (o prazo, que se iniciara na data limite estabelecida pela Lei de Conversão da Medida Provisória, 23 de junho de 2004, já que o decreto regulamentador – o Decreto n.º 5.123, de 1º de julho de 2004 – só veio depois, publicado em foi em 2 de julho de 2004, era de 180 dias; não de 6 meses!). Falou-se até que o prazo terminaria em 29 de dezembro de 2004, não entendi bem o porquê (não eram 190 dias?!)[3]. De uma forma ou de outra, certo é que, somente a partir do término do prazo para o registro ou deposição das armas irregulares é que se poderia cogitar do crime consistente em sua posse irregular que, deste modo, só incidiria a partir do dia seguinte ao dia em que tal prazo se esgotasse – ou seja, data maxima venia, 20 de dezembro de 2004.
E assim se aguardava, para o final do ano de 2004, enfim, o término dos prazos em comento, conferidos pelos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/03, com redação determinada pela Medida Provisória n.º 174/04, convertida na Lei n.º 10.884/04).
Sucede que, talvez na empolgação do que se convencionou denominar de “sucesso” da campanha do desarmamento – não me consta que nenhum traficante de drogas tenha deposto ou requerido o registro de seus fuzis! – o Presidente da República resolveu adotar a Medida Provisória n.º 229/04, de 17 de dezembro de 2004, publicada no mesmo dia, em edição extra do Diário Oficial. Tal ato normativo dispõe, em seu art. 5º: “Os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, ficam prorrogados, tendo por termo final o dia 23 de junho de 2005.”
Diante disto, sinto-me na obrigação de voltar ao tema da incidência do art. 12 do Estatuto do Desarmamento, o que faço nesta oportunidade.
Em primeiro lugar, e com isto corrijo omissão do já mencionado artigo inicial[4], gostaria de acrescentar que as mesmas observações que se fazem quanto à incidência do art. 12 – armas de fogo de uso permitido – devem ser feitas no que concerne ao art. 16 do Estatuto do Desarmamento, exclusivamente quanto à conduta de possuir, no interior de casa, arma de fogo de uso restrito, ou mesmo arma de fogo com numeração raspada, suprimida ou adulterada (inciso IV). Isto porque as razões são rigorosamente as mesmas – o art. 32 do Estatuto confere a este possuidor o direito de se desfazer dessas armas, entregando-as à Polícia Federal, podendo inclusive ser indenizado, na forma prevista no Regulamento. Concluindo: até que termine o prazo para deposição dessas armas de uso restrito ou com numeração raspada, suprimida ou adulterada, não se pode cogitar do crime do art. 16, pelo simples fato de sua posse.
Com muito mais razão, o mesmo há de ser dito quanto ao crime do art. 12, cuja incidência só pode se dar após o término do prazo conferido pelos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento para a regularização do registro ou a entrega à Polícia Federal mediante indenização.
Como este prazo foi prorrogado pela referida Medida Provisória n.º 229/04, fixando-se seu termo final em 23 de junho de 2005, pode-se afirmar que cogitar-se, como crime, da simples posse de armas de fogo de uso permitido ou restrito, ou com numeração raspada, suprimida ou adulterada (arts. 12 e 16, este último parcialmente), só a partir de 24 de junho de 2005.
Damásio de Jesus levantou intrigante objeção ao fato de Medida Provisória adiar a vigência de norma penal[5]. Sem embargo de seus doutos argumentos, entendo que a garantia do nullum crimen, nulla poena sine lege, conferindo-se à palavra lei sua acepção formal, é estabelecida em função do cidadão, como proteção dele contra a vontade unilateral do Presidente da República. Ora, se a Medida Provisória vem exatamente para protegê-lo da incidência da norma penal, não há razão para invocar a garantia[6].
Nem se levante a objeção do art. 62, § 1º, I, “b”, da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional n.º 32, de 11 de agosto de 2001, que veda a adoção de Medida Provisória em matéria Penal. Tal dispositivo há de ser interpretado em consonância com a interpretação acima proposta ao art. 5º, XXXIX, da mesma Constituição.
De mais a mais, não se tem tal Medida Provisória como sendo, propriamente, em matéria penal. Na verdade, cuida-se de um ato normativo destinado à organização administrativa dos registros de armas de fogo, prorrogando-lhes o prazo máximo de regularização das armas irregulares ou sua entrega mediante indenização, o que somente por via reflexa projeta seus efeitos no âmbito das normas penais contidas nos arts. 12 e 16 do Estatuto do Desarmamento. Não está, deste modo, tal Medida Provisória inclusa na vedação constitucional. É uma Medida Provisória em matéria administrativa que, por via oblíqua, projeta efeitos em matéria penal. A norma restritiva das Medidas Provisórias em matéria penal deve receber interpretação restritiva, por se tratar de exceção à regra, que é a possibilidade de adoção de Medidas Provisórias com força de Lei (art. 62, caput, da Constituição Federal).
Não é de causar surpresa alguma, por não ser nada estranho ao Direito Penal, suas normas se complementarem, para surtir efeitos, de outras fontes normativas diversas da Lei em sentido formal. O próprio Estatuto do Desarmamento remete ao Regulamento para a definição do que são armas de uso restrito[7]; a Lei n.º 6.368/76, na definição do que são substâncias entorpecentes, remete a ato normativo de órgão do Ministério da Saúde (art. 36, da Lei n.º 6.368/76; art. 8º, da Lei n.º 10.409/02); e assim por diante, exemplos das chamadas normas penais em branco, que se complementam com outras normas que não são necessariamente Lei em sentido formal, abundam no Direito Penal, sem qualquer contestação.
Ora, se é admissível um ato normativo diverso da Lei em sentido formal para completar e dar eficácia às normas penais em branco, garantindo a incidência de diversos tipos penais, por que se objetar a Medida Provisória para fazer exatamente o contrário, ou seja, impedir que surtam efeito as normas penais dos arts. 12 e 16 do Estatuto do Desarmamento? Não faz sentido invocar uma garantia constitucional estabelecida em favor do réu contra o seu próprio interesse!
Deste modo, pouco importa que tenha sido ou não em virtude de Medida Provisória a dilação do prazo para o registro ou deposição das armas de fogo irregulares, certo é que esta regra administrativa surte efeitos penais, impedindo a incidência dos crimes dos arts. 12 e 16, consoante sustentado neste escrito. Por conseguinte, até o dia 23 de junho de 2005, inclusive, ninguém poderá ser preso em flagrante pela simples posse de arma de fogo sem registro, seja de uso permitido ou restrito, ou com numeração raspada, suprimida ou adulterada; se isto ocorrer, deve a prisão ser imediatamente relaxada pelo Juiz competente, restituindo-se eventual dinheiro pago à guisa de fiança e devolvendo-se a arma apreendida ao seu até então legítimo proprietário; e o Promotor, ao receber os autos de inquérito policial, deve promover seu imediato arquivamento.
Tais condutas penais só podem ser exigidas a partir do dia 24 de junho de 2005 … Por enquanto … se não vierem mais surpresas por aí…
MARCELO LESSA BASTOS
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal e de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos, Mestre e Especialista em Direito Público.
[1] Vide BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu art. 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido). São Paulo: IBCCrim, Boletim n.º 137, abril de 2004, p. 12).
[2] Vide BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – armas de uso permitido e restrito e outras considerações. Disponível na Internet: www.ibccrim.org.br, 01/10/2004.
[3] Vide PEREIRA, Mônani Menini; OLIVEIRA, Alessandra Mayra da Silva de. Estatuto do Desarmamento – A problemática da Vacatio Legis Indireta. Disponível na Internet: www.ibccrim.org.br, 19/08/2004.
[4] Citado na nota de rodapé n.º 01.
[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Estatuto do Desarmamento: medida provisória pode adiar o início de vigência de norma penal incriminadora? São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Disponível na Internet: www.damasio.com.br, 21/04/04.
[6] Neste sentido: CAPEZ, Fernando, BONFIM, Edilson Mougenot, CALLEGARI, André Luís, DELMANTO, Celso, mencionados pelo próprio Damásio, no artigo acima citado.
[7] O denominado R-105 (Regulamento de Fiscalização de Produtos Controlados, com redação atualizada pelo Decreto n.º 3.665/00), conforme explicitei no artigo mencionado na nota de rodapé n.º 02.