A modalidade carta convite, sob a óptica principiológica constitucional

Sob o paradigma constitucional, existem certos valores substanciais normativos que tendem a conduzir todo o processo legislativo. Dentre estes valores, encontram-se enraizados certos princípios, tanto implicitamente quanto explicitamente.

No âmbito da administração pública, o legislador originário atribuiu certos princípios, como fontes de sustentação de toda estrutura administrativa, vinculando, portanto, todo ato administrativo à sua fiel observância.

Dentro da esfera de procedimentos administrativos, a licitação constitui-se hoje um dos instrumentos primordiais na garantia de aplicação do dinheiro público, pois visa o controle de seus gastos, com base na escolha da melhor proposta, quando da necessidade de contratação pela administração pública, além de garantir uma certa paridade competitiva entre os possíveis contratados.

Para Maria Silvia Zanella Di Pietro, a licitação seria:

“Uma oferta dirigida a toda a coletividade de pessoas que preencham os requisitos legais e regulamentares constantes do edital; dentre estas, algumas apresentarão suas propostas, que eqüivalerão a uma aceitação da oferta de condições por parte da administração; a esta caberá escolher a que seja mais conveniente para resguardar o interesse público, dentro dos requisitos fixados no ato convocatório”.1
No tocante às modalidades de licitação, quais sejam, concorrência, tomada de preços, concurso, leilão, pregão e convite, esta última merece destaque no presente trabalho por conseqüência de dispositivo normativo infra- constitucional, diga-se Lei 8.666/93, que por ora acreditamos violar alguns dos princípios constitucionais.

Princípios norteadores da administração pública
Na concepção de José Crettella Júnior, princípio seria: Causa primária, início. Proposição que se situa na base de uma ciência, norteando-a, ou as preposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subsequentes2. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência3.

Para Ana Cristhina de Sousa Santana, citando Miguel Reale:

“(…)…os princípios são normas fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e da praxis”.4
Assim, o ramo do direito administrativo tem instituído constitucionalmente determinados princípios (artigo 37, caput, com redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 4 de junho de 1998), imbuídos com o propósito de apontar-lhes o norte na conduta dos responsáveis por sua utilização e aplicação, a saber, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

No entanto, já com relação expressa à licitação, o artigo 37, XXI, Constituição Federal de 1988, enumera um outro princípio adstrito a esta atribuição administrativa:

ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes….. (grifo nosso).
Partindo de uma interpretação literal do artigo supra citado, destacamos o princípio da igualdade, sendo que este constitui nas palavras de Maria Silva Zanella Di Pietro como:

“um dos alicerces da licitação, na medida em que esta visa não apenas permitir à Administração a escolha da melhor proposta, como também assegurar igualdade de direitos a todos os interessados em contratar. Esse princípio que hoje está expresso no artigo 37, XXI, da Constituição, veda o estabelecimento de condições que impliquem preferência em favor de determinados licitantes em detrimento dos demais”.5
Antinomias destacadas
Dentre as diversas assertivas supra citadas, surge a seguinte indagação: poderia o legislador criar um ato normativo, pelo qual, um ou mais princípios constitucionais fossem desprezados? Até que ponto poderia se atribuir a um ato administrativo, através de regramento normativo infra-constitucional, poderes para que seja dispensada sua vinculação aos preceitos substanciais, os quais estaria umbilicalmente interligado?.

Nas palavras de Lenio Luiz Streck6, sendo os princípios a condição de possibilidade do sentido da Constituição. Nenhuma lei pode ser editada se qualquer de seus dispositivos confrontar um princípio da Lei Maior. Dentro do mesmo contexto o autor reitera: não se olvide que princípios são normas e, portanto vinculam! (grifo nosso).

Após estas breves considerações passemos a analisar o fundamento legal pertinente.

Estabelece o artigo 2º, parágrafo 3º da Lei 8666/1993, que:

“Convite é a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados, (grifo nosso), em número mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa, a qual afixará, em local apropriado, cópia do instrumento convocatório e o estenderá aos demais cadastrados na correspondente especialidade que manifestarem seu interesse com antecedência de 24 horas da apresentação das propostas”.
Da simples leitura do texto, percebemos uma afronta gritante a um dos princípios basilares da administração, que é o da impessoalidade, conforme salienta Maria Silvia Zanella Di Pietro7 a administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, portanto a administração, ao escolher discricionariamente os candidatos aos quais enviará o convite do certame licitátorio, estaria ferindo tal princípio, pois nada impediria que tais propostas sejam direcionadas à determinadas empresas de interesse pessoal dos administrados, obtendo com isto certa vantagem sobre possíveis concorrentes, apesar de se exigir que o convite estenda-se em forma de edital a outros interessados, porém estes teriam que estar em vigília diária perante os locais de fixação, enquanto que aos outros seria dado o privilégio de permanecerem tranqüilos até o recebimento do certame, perfeitamente acomodados em seus respectivos endereços.

No entanto, ainda resta destacar que na forma como se encontrava o referido artigo, a administração não estaria impedida de enviar as cartas convites, sempre para os mesmos interessados, sendo assim, aparentemente o legislador percebendo que desta maneira a afronta constitucional seria muito evidente, resolveu por bem alterar o parágrafo 6º do artigo 22, pela Lei 8.883/94, exigindo-se a partir de então que nos casos onde houver na praça mais de três interessados, que a cada novo convite, persistindo mesmo objeto, seja endereçado a pelo menos mais um interessado.

Entretanto é gritante a persistência da violação ao princípio da igualdade, pois o referido artigo só seria aplicado nos casos em que houvessem mais de três interessados, isto é se a administração também os tivesse convidado, daí surgiu a necessidade de que o Tribunal de Contas da União, alterasse seu entendimento a respeito da legitimidade do certame, exigindo-se a repetição do ato, caso o número de interessados não atingir o mínimo de três ( DOU de 11-08-93, p. 11.635), o que a nosso ver ainda não contribui para a solução do empasse.

Outro questionamento pertinente encontra-se devidamente enraizado no artigo 32, parágrafo 1º, cujo texto menciona: “A documentação de que se tratam os artigos 28 a 31 (documentos de habilitação), poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite(…)”.

Portanto, a aplicação da regra impõe-se aos não cadastrados, que desejarem apresentar propostas sem terem sido convidados pela administração, o ônus de terem que se habilitar previamente, sob pena de não participarem do certame, o que afronta de sobremaneira o princípio da igualdade, conforme salienta Maria Silvia Zanella Di Pietro:

“O princípio da igualdade constitui um dos alicerces da licitação, na medida em que esta visa, não apenas permitir à administração a escolha da melhor proposta, como também assegurar igualdade de direito a todos os interessados em contratar. Esse princípio, que hoje está expresso no artigo 37, XXI, da Constituição, veda o estabelecimento de condições que impliquem preferência em favor de determinados licitantes em detrimento dos demais”8.
Portanto em conformidade com o questionamento levantado, a própria autora assevera:

“Do modo como está na lei, a norma levará ao absurdo de permitir a inabilitação de um licitante que não tenha o certificado de registro cadastral em ordem, quando, para os convidados, nenhuma documentação foi exigida”9.
Conclusão
Com base nos fundamentos apresentados, percebe-se claramente o verdadeiro desrespeito à hierarquia constitucional no que concerne à matéria legislativa pertinente à modalidade de licitação convite.

O que se pretende levantar com os questionamentos supra citados, é até que ponto o legislador infra-constitucional, tem legitimidade para instituir instrumentos normativos, que venha a confrontar os princípios constitucionais, e qual o fundamento de validade de tais regramentos a ponto de que os mesmos ainda não tenham sido extirpados do ordenamento jurídico.

Aparentemente, o que o legislador objetivou, foi um sistema de regras para determinada modalidade de licitação cujos valores considerados de pequeno vulto, poderiam emperrar a máquina administrativa devido à burocracia envolvida em seu processo licitatório.

Porém não podemos olvidar que existem valores constitucionais que são instituídos como substância essencial de todo o ordenamento do Estado Democrático de Direito, e que o desrespeito a determinados valores axiológicos e ou dogmáticos, podem por em xeque todo um conjunto de princípios, que tem como objetivo a persecução da convivência harmônica de toda a sociedade, fragmentando o equilíbrio tênue existente entre os poderes legalmente constituídos e banalizando aspectos relevantes.

No nosso entendimento, toda legitimidade formal deverá estar sempre atrelada à atuação em favor da substancialidade da norma.

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Bibliografia CRETTELA NETO, José. Dicionário de processo civil. Rio de Janeiro:Forense, 2002. DI PIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo. 17ª ed. – São Paulo: Atlas, 2004. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. _____________________. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 7. ed. São Paulo, Saraiva, 1980. SANTANA, Ana Cristhina S. Princípios Administrativos Aplicados À Licitação Pública. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/ action=doutrina&iddoutrina=1907. acesso em 13/03/2006 23:30. STRECK, Lênio Luiz. Garantismo Jurídico. Revista Jurídica dos Cursos de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 7 – n.º 6 – 2004.

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Marcos Vinicius Lopes é advogado, pós-graduado em direito público linha gestão de cidades e mestrando em políticas públicas e processo

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