Os regimes matrimoniais de bens em nosso país eram até há pouco marcados pela característica da irrevogabilidade, consagrada no artigo 230 do Código Civil de 1916, segundo a qual, uma vez celebrado o casamento sob a égide de determinado regime, impossível seria sua posterior alteração, ressalvada a excepcionalíssima hipótese do artigo 7o., § 5o, da Lei de Introdução ao Código Civil, que contempla a situação do estrangeiro que venha a se naturalizar brasileiro.
No plano doutrinário, estavam divididos os entendimentos acerca da conveniência ou não de consagrar a mutabilidade como característica desse sistema, polarizando-se no debate ilustres autores (a favor : Orlando Gomes e Carvalho Santos; contra : Silvio Rodrigues e Caio Mário da Silva Pereira), fugindo ao objeto deste trabalho alinhar os ponderáveis argumentos favoráveis e contrários a cada tese.
Inovando profundamente na matéria, o Código Civil de 2002 subverte o sistema anterior, e passa a admitir a alteração do regime de bens no curso do casamento, nas condições postas pelo artigo 1.639, § 2o . Sinale-se que, desta forma, o ordenamento jurídico nacional, na linha das legislações mais recentes, faz com que a autonomia de vontade dos cônjuges, no que diz com o ajuste dos efeitos patrimoniais do casamento, amplie-se consideravelmente, não se manifestando apenas no momento anterior ao matrimônio, através da pactuação do regime de bens que adotarão ao casar – momento em que, pelo consagrado princípio da livre estipulação (art. 1.639, “caput”), poderão escolher (salvante as hipóteses em que é obrigatório o regime da separação de bens – art. 1.641, CC) o regime de bens que melhor lhes aprouver – como podendo vir a modificar, ante circunstâncias que a extraordinária dinâmica da vida venha a lhes apresentar, a escolha feita naquele momento precedente.
Entretanto, para que se viabilize tal modificação, diversos requisitos estão postos na lei.
Primeiro, o pedido deve ser formalizado em juízo, cautela que se mostra adequada, ante a relevância da medida, uma vez que visa resguardar tanto os interesses dos próprios cônjuges como de terceiros, evitando, quanto possível, possíveis abusos que, de outra forma, teriam melhor chance de prosperar. Nessa perspectiva, de todo recomendável que seja realizada audiência para fins de ratificação do pedido, ocasião em que o magistrado terá a oportunidade de, em contato direto com as partes, melhor aferir as verdadeiras razões do pedido, esclarecendo o casal sobre as conseqüências de sua nova opção.
No que diz com a intervenção do Ministério Público – embora admita controvertido o tema – considero-a necessária, ante o disposto nos artigos 1.105 e 82, II, do CPC, considerando que se trata de causa atinente ao casamento, não obstante de conteúdo meramente patrimonial. Ocorre que os dispositivos em foco não operam tal distinção, determinando que a intervenção se dê em atenção à natureza do instituto.
Deferida a alteração por sentença, isso basta para todos os fins, não sendo necessário lavrar escritura pública posterior, o que se caracterizaria como absurda superfetação, tendo em vista que a petição onde for postulada a modificação do regime de bens deverá conter todas as cláusulas do novo ajuste patrimonial, não sendo demais lembrar que o processo judicial, em sentido amplo, constitui um escrito público.
Além da averbação no assento de casamento, a modificação, para que produza efeitos com relação a terceiros, deverá ser levada a registro no Ofício de Imóveis do domicílio dos cônjuges, conforme determina o artigo 1.657 do novo Código, somente passando a produzir tais efeitos a partir da data desse assento. Na hipótese de já ter ocorrido o registro de um pacto antenupcial no álbum imobiliário – o que, segundo remansosa doutrina, deve ocorrer no primeiro domicílio conjugal –, e se encontre o casal agora em outro domicílio, impositivo novo registro, agora no domicílio atual, além de averbar-se no registro original a alteração levada a efeito, como também na matrícula de cada imóvel de titularidade do casal.
O Código não explicita se os efeitos da alteração serão “ex tunc” ou “ex nunc” entre os cônjuges (porque com relação a terceiros que já sejam portadores de direitos perante o casal, é certo que serão sempre “ex-nunc”, uma vez que se encontram ressalvados os direitos destes). No particular, considero que se houver opção por qualquer dos regimes que o código regula, a retroatividade é decorrência lógica, pois, p. ex., se o novo regime for o da comunhão universal, ela só será UNIVERSAL se implicar comunicação de todos os bens. Impossível seria pensar em comunhão universal que implicasse comunicação apenas dos bens adquiridos a partir da modificação. Do mesmo modo, se o novo regime for o separação absoluta, necessariamente será retroativa a mudança, ou a separação não será absoluta! E mais : se o escolhido agora for o da separação absoluta, imperiosa será a partilha dos bens adquiridos até então, a ser realizada de forma concomitante à mudança de regime (repito: sem eficácia essa partilha com relação a terceiros). Assim, por igual quanto ao regime de comunhão parcial e, até, de participação final nos aqüestos. Entretanto, face ao princípio da livre estipulação (art. 1.639, “caput”), sendo possível estipular regime não regrado no código, a mudança poderá, a critério dos cônjuges, operar-se a partir do trânsito em julgado da sentença homologatória, caso em que teríamos a criação de um regime não regrado no CC.
Como segundo requisito, dispõe a norma que o pedido deverá ser formulado por ambos os cônjuges. Assim, inadmissível postulação unilateral, que, se formulada, deverá ser de pronto rejeitada, por carência de ação. Sinale-se que não é cabível pedido de suprimento judicial de consentimento para a alteração de que se trata.
A motivação e sua prova constituem a terceira condição do pleito, cabendo à jurisprudência, na análise dos casos concretos, fixar as hipóteses em que se permitirá a modificação pretendida. Penso, no entanto, que não deva ser por demais rígida a exigência quanto aos motivos que sirvam para justificar o pedido, caso contrário ficará esvaziada a própria finalidade da norma.
Não há que ter receio quanto a possíveis prejuízos que venham a ser causados a terceiros que já sejam detentores de direitos com relação ao casal, ou a qualquer dos cônjuges , uma vez que estão expressamente ressalvados os respectivos direitos. Logo, nenhuma eficácia terá contra eles a alteração produzida. Neste contexto, parece-me sem razão – por desnecessária a providência – o enunciado aprovado ao ensejo da Jornada sobre o novo Código Civil, levada a efeito no Superior Tribunal de Justiça de 11 a 13 de junho de 2002, no sentido de que a autorização judicial para alteração do regime de bens deva ser precedida de comprovação acerca da inexistência de dívida de qualquer natureza, inclusive junto aos entes públicos, exigindo-se ampla publicidade.
Não será possível a modificação do regime de bens daqueles casais que celebraram o matrimônio nas circunstâncias do artigo 1.641, incisos I, II e III, estando sujeitos, assim, ao regime obrigatório da separação de bens, salvante a hipótese de terem obtido a não aplicação das causas suspensivas, conforme previsão do parágrafo único do artigo 1.523, caso em que não se submeterão obrigatoriamente a esse regime, podendo, portanto, vir a alterar aquele que houverem escolhido. Interessante hipótese, no entanto, ocorrerá quando o casamento for celebrado com infração a causa suspensiva (art. 1.523) sem que tenha sido obtido beneplácito judicial (portanto, com adoção obrigatória do regime da separação de bens), vindo, mais tarde, ao longo do casamento, a desaparecer a causa suspensiva (v.g., um divorciado que não realizara a partilha e que venha depois a completá-la). Nesse caso, tenho que nenhuma razão haverá que impeça a mudança do regime de bens, uma vez desaparecido, por circunstância superveniente, qualquer potencial prejuízo a terceiro, o que é a justificativa que impõe aquele regime.
Por fim, parece estar desenhando-se na doutrina o entendimento de que o artigo 2.039 impede a incidência da nova regra com relação aos matrimônios celebrados anteriormente à nova codificação. Nesse sentido é a opinião de Maria Helena Diniz (in “Comentários ao Código Civil”, ed. Saraiva, vol. 22, 2003) e Leônidas Filipone Farrula Junior (in “O Novo Código Civil – Do Direito de Família”, coord. de Heloisa Maria Daltro Leite, Freitas Bastos Editora, 2002).
Penso, no entanto, que esse dispositivo, constante nas Disposições Finais e Transitórias, não tem o significado que lhe está sendo emprestado. Ao dispor que “o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior (…) é o por ele estabelecido”, claramente objetiva a regra resguardar o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. Isso porque ocorreram diversas modificações nas regras próprias de cada um dos regimes de bens normatizados no Código de 2002 em relação aos mesmos regimes no Código de 1916. Exemplificativamente: 1) no regime da separação de bens, não há mais necessidade de autorização do cônjuge para a prática dos atos elencados no artigo 1.647; 2) no regime da comunhão universal, não estão mais excluídos da comunhão os bens antes relacionados nos incisos IV, V, VI, X e XII do artigo 263 do CC/16; 3) no regime da comunhão parcial, não mais se excluem os bens relacionados no inciso III do artigo 269 do CC/16, mas passam a não mais comunicar os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (inc. VI do art. 1.659), expressamente excluídos antes pelo inciso VI do art. 271, sob a denominação de “frutos civis do trabalho, ou indústria de cada cônjuge, ou de ambos”. Como se percebe, alterações houve na estruturação interna de cada um dos regimes de bens e, não fosse a regra do artigo 2.039, a incidência das novas regras sobre os casamentos anteriormente realizados caracterizaria ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, uma vez que operaria alteração “ex lege”, independentemente da vontade das partes, no regime antes escolhido, expressa ou tacitamente, pelo casal. Frise-se que, em decorrência, os casamentos pré-existentes ao novo Código, regem-se pelas normas do respectivo regime de bens conforme regrado na lei vigente à época da celebração – ou seja, o Código Civil de 1916 – não sendo, dessa forma, alcançados pelas alterações trazidas na nova codificação.
Em conclusão, pode-se afirmar que a possibilidade de alteração do regime de bens no curso do casamento merece ser vista com otimismo, na medida em que permite maior flexibilidade ao casal quanto aos ajustes matrimoniais de bens, mas, de outro lado, exige redobrada cautela do Estado-Juiz no exame de cada caso, a fim de não consagrar lesão à parte hipossuficiente.
* Luiz Felipe Brasil Santos
Desembargador do TJRS; Presidente do IBDFAM-RS; Professor das Escolas da Magistratura (AJURIS) e da Escola do Ministério Público do RS