Autor: Lúcio Delfino (*)
É absolutista toda doutrina que prega o exercício do poder sem restrições. Os modelos são muitos: i) o absolutismo utopista de Platão em República; ii)o absolutismo papal afirmado por Gregório VII e Bonifácio VIII, que reivindicava para o Papa, como representante de Deus sobre a Terra, aplenitudo potestatis — a soberania absoluta sobre todos os homens, inclusive príncipes, reis e o próprio imperador; iii) o absolutismo monárquico do século XVI, cujo defensor é Hobbes[1]; iv) o absolutismo de Maquiavel que, partindo da constatação sobre a perversidade da natureza humana, defende que somente um homem excepcional (de virtù) pode proporcionar estabilidade a uma comunidade política.
Mesmo hoje o absolutismo está entre nós. Ainda que mergulhados num regime democrático, somos vítimas de expressões do poder estatal estranhas à soberania popular, a atingir nossas esferas física, psíquica e patrimonial de maneira irrefragavelmente arbitrária. É o que se dá quando nos é negado direito de participação ativa na construção das decisões públicas, em atentado a uma das diretrizes normativas que compõem o devido processo legal, cujo papel é disciplinar e legitimar manifestações estatais de poder.[2] Insista-se no fato de que num Estado Democrático de Direito as atividades estatais, e as decisões delas oriundas, apenas adquirem legitimidade se equando conforme vetores constitucionalmente estabelecidos. Daí se falar, no âmbito da atividade jurisdicional, em legitimidade pelo devido processo, categoria que repudia uma práxis na qual decisões são elaboradas segundo padrões mentais de impraticável fiscalização, porquanto decorrentes unicamente da subjetividade do julgador (messianismo judicial ou tirania dos juízes).
Há por conseguinte um padrão de decisões judiciais proferidas em manifesto atropelo ao contraditório, direito fundamental que implanta a democracia no ambiente processual e garante aos litigantes o direito de influência e não surpresa. E a reboque, muitas delas, edificadas a partir dolivre convencimento do juiz, atropelam a ampla defesa, o dever de fundamentação, a imparcialidade judicial[3] e outros direitos fundamentais processuais, a sugerir circunstâncias (de fato e de direito) curiosamente impermeabilizadas ao devido processo legal. São diversos os exemplos de decisões judiciais proferidas em desacordo com a atual estruturação do contraditório, desajustadas à ideia de democracia e, por isso, contrárias ao modelo democrático do processo civil brasileiro: i) condenações em multas por litigância de má-fé[4], honorários sucumbenciais[5] e definição da incidência de juros e correção monetária[6]; ii) decisões fundadas em tese jurídica construída em desatenção à dialética processual[7]; iii) decisões assentadas em presunção judicial nascida sem o prévio entre os litigantes[8]; iv) desconsideração abrupta da personalidade jurídica[9]; v) embargos de declaração julgados sem a participação do embargado[10].
Toda essa conjuntura representa anomalia que desdenha a indispensávelfiltragem constitucional pela qual deve se submeter a metodologia de elaboração decisional. Está vazado na Constituição que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, LIV). Nela também se lê, com clareza solar, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, LV).” E a despeito do fulgor dos referidos dispositivos, a prática corrente, no que tange aos exemplos acima indicados, segue curso como se não existissem, de maneira tal que decisões são proferidas solipsisticamente, sem a devida participação e influência daqueles a quem elas mais interessam.
Impossível não verificar que o novo Código de Processo Civil avançou. Em seu corpo está positivado, de forma expressa, aquilo que já devia fazer parte do senso comum daqueles que por ofício lidam com a atividade jurisdicional (juízes, promotores e advogados). Constata-se ali verdadeira intenção de se realizar a indispensável interface entre Constituição e ordenamento processual, percebida já em seu artigo inaugural. No que diz respeito sobretudo ao princípio democrático, nota-se que o legislador se conscientizou da sua importância ao vedar que decisões sejam proferidas contra uma das partes sem que antes seja ela previamente ouvida, excepcionados alguns casos a envolver urgência e evidência (CPC/15, artigo 9º). Tampouco a autoridade judicial está autorizada a decidir, em qualquer grau de jurisdição, com base em fundamento sobre o qual não se tenha dado aos litigantes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria que possa ser decidida de ofício (artigo 10).
Mas os ganhos democráticos introduzidos pela novel legislação processual encontram-se ameaçados por forte resistência no cenário pragmático protagonizada por alguns setores do Judiciário, órgão estatal a quem cabe justamente o papel de sentinela do ordenamento jurídico e, em particular, da Constituição. As coisas se dão meio sorrateiras, com doses de absolutismo ministradas de forma homeopática para que o impacto não seja sentido. O propósito é fazer com que tudo se naturalize, ou permaneça como sempre esteve, e seja aceito sem maiores reboliços pela comunidade. Ou seja, a velha técnica de cozinhar sapos: não é estrategicamente correto jogá-los em água fervendo pois saltarão para fora. A receita é colocar os bichos numa panela de água fria e, pouco a pouco, ir aumentando a temperatura para que não percebam que logo sucumbirão. A expectativa é sufocada e o erro naturalizado pelo cotidiano.
Essa (infeliz) realidade de rebeldia no cumprimento da lei é enfim atestada pela postura assumida por vários tribunais, entre os quais o próprio Superior Tribunal de Justiça. O que se vê, de um lado, são julgados que seguem manietados ao livre convencimento motivado, construídos à margem da substancialidade que deve(ria) distinguir contraditório e fundamentação das decisões judiciais. De outro, assiste-se a produção em série deenunciados por grupos de estudos constituídos por julgadores, alguns caracterizados pela afronta inconteste da textualidade legal, e que com certeza irão influenciar (negativamente) muitas decisões Brasil afora.[11]
Aliás, dois destes enunciados ilustram com perfeição o que aqui se está afirmando, oriundos do “Fórum de Debates sobre o Novo Código de Processo Civil”, organizado pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF), publicados, conjuntamente com outros, no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais[12]:
i) “Enunciado 5. Não viola o disposto no art. 10 a decisão que dá definição jurídica diversa, embora previsível, aos fatos discutidos pelas partes.” O problema aqui é saber o que é previsível. E também quemdecide o que é ou não previsível. É o fator “Professor Xavier”: cabe ao jurisdicionado (e sobremodo ao seu advogado) desenvolver o dom da telepatia a fim de extrair da mente dos julgadores mineiros aquilo que para eles é ou não previsível no caso concreto. Já é de se imaginar o debate em colegiado: se apenas um dos desembargadores entenderprevisível a decisão que deu definição diversa aos fatos debatidos nos autos, a nulidade será decretada! A previsibilidade, no âmbito jurisdicional, dependerá de um critério matemático …;
ii) “Enunciado 6. Não depende de prévia manifestação das partes a decisão que fixa juros de mora, correção monetária e as verbas de sucumbência, inclusive honorários advocatícios.” Aqui o velho problema da baixa constitucionalidade. Em que parte da Constituição afinal está escrito que pedidos implícitos estão imunes ao contraditório?
A filosofia, desde a Antiguidade, pondera sobre a admiração, sensação de dúvida ou espanto que revela a súbita surpresa da alma diante daquilo que não se esperava, um estado de ânimo que impulsiona o pensar. A rotina forense fatalmente impõe uma dura realidade aos profissionais do direito, e o custo disto é amiúde a perda da capacidade de admiração. Resultado: uma atividade jurisdicional cada vez mais automatizada e blindada a reflexões. Algo assaz pernicioso se pensarmos que o Estado Democrático de Direito, insaturado a partir da Constituição de 1988, é um projeto em construção e sua centelha ainda não polinizou a integralidade das práticas judiciárias.
Superar desvios e resistências fundadas num consequencialismo avesso às diretrizes republicanas e democráticas exige de todos um reavivar da capacidade de admiração. Admirar para crer, lutar e mudar!
Autor: Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).