Por Cecilia Priscila de Souza
Norma jurídica é termo ambíguo, podendo ser utilizada como enunciado prescritivo, ou mesmo, como a significação obtida desses enunciados. O estudo da norma jurídica que pretendemos apresentar tem, como base, o método hermenêutico-analítico.
Mister se faz, definir o conceito de norma jurídica, que para fins desse estudo, é o elemento do direito positivo, também chamado de mensagem, construído a partir da leitura dos textos normativos, com o intuito de transmitir uma ordem, em que se relacionam ao menos dois sujeitos de direito.
Afirmamos ser o direito um sistema composto por norma jurídica. Seguindo a premissa de que os elementos devem apresentar características comuns para integrar um conjunto, temos por norma jurídica a estrutura mínima, mas completa, de atuação do direito, que Paulo de Barros Carvalho chama de “mínimo irredutível de manifestação do deôntico”. A composição mínima a que aludimos apresenta um antecedente (descrição de uma situação do mundo social), denominado hipótese, cuja efetiva ocorrência dará ensejo a uma consequência que, invariavelmente, será uma relação jurídica que vinculará dois sujeitos de direito.
É ainda de Paulo de Barros Carvalho valiosa lição acerca do tema: “não haveria desassiso em afirmar-se que o sistema jurídico é formado por juízos de estrutura hipotética que se conjugam a juízos outros de estrutura categórica (as proposições que descrevem estados, pessoas e coisas), esses com funções ancilares na ordem jurídica global.”
Norma jurídica, portanto, é significação e não suporte físico. Não se confunde com os textos de lei (em sentido amplo). É sim, a significação construída a partir do suporte físico (o texto do direito positivo), mas não está contida nele, deste modo, caberá a cada intérprete uma significação diversa, uma norma jurídica construída de forma diferente.
Importante salientar, que para serem consideradas como normas jurídicas, essas significações não podem se apresentar como meras justaposições, e é necessário que possuam uma estrutura lógico-deôntica com sentido completo. Essa estrutura possui natureza dual, podendo ser desmembrada em duas outras: norma jurídica primária e a norma jurídica secundária.
A norma jurídica primária é responsável por instituir relações jurídicas deônticas, juridicizando fatos sociais e atribuindo relações jurídicas em consequência do acontecimento efetivo desses fatos. As normas secundárias, por sua vez, são responsáveis por trazer a previsão de uma sanção processual pelo descumprimento do preceituado no consequente da norma jurídica primária, que, mediante a presença do estado-juiz faz valer a “vontade” do sistema normativo.
As normas jurídicas são submetidas aos modais deônticos realizados pelos operadores “P” permitido, “V” proibido (ou vedado), e “O” obrigatório. Sendo três e somente três as possibilidades de regular condutas.
O direito pode operar apenas nas condutas factualmente possíveis, abrigando-se no campo ontológico da possibilidade. A hipótese normativa somente se pode ocupar de possível ocorrência no mundo; possível modificação no estado de coisas que entretém a instável circunstância humana. A hipótese normativa não traça o que, com necessidade, ocorrerá. Para a hipótese a ocorrência é tomada a título de possibilidade, como ponto de referência possível, condicionando a vinculação de consequências para a conduta humana. Daí afirmar que a hipótese é incidente na realidade e não coincidente com ela.
Formas de análise
Proposições são as significações obtidas por um intérprete a partir do contato com enunciados prescritivos. Tem a particularidade de possuírem sentido completo. Para Paulo de Barros Carvalho, “proposição é o conteúdo significativo que o enunciado, sentença ou oração exprimem.” E, a partir dessa definição de proposição, podemos classificar as normas jurídicas em duas categorias: as que possuem sentido amplo e as de sentido estrito.
Falamos então da norma jurídica com sentido completo, ou seja, em sentido estrito, quando temos a significação obtida a partir dos textos de direito positivo, estruturadas na forma hipotética condicional, que tenha o condão de transmitir uma mensagem com sentido deôntico completo.
A forma lógica da norma jurídica se apresenta sempre com a mesma estrutura, garantindo sua pertinência em relação ao sistema de direito positivo. É a homogeneidade das normas jurídicas.
Em relação ao seu conteúdo, não se pode dizer o mesmo. Semanticamente as normas jurídicas se apresentam das mais diversas formas; possuem os mais variados conteúdos. A limitação do conteúdo das normas jurídicas é feita pela própria essência do direito, que é um sistema normativo voltado à regulação de condutas humanas intersubjetivas. Esse é o recorte da realidade do direito. Como se pode notar, também aqui, no que se refere à semântica normativa, há que se falar em limitação para a produção normativa, que somente poderá versar sobre condutas intersubjetivas possíveis.
Como normas de direito, seguem estrutura homogênea, ou seja, uma hipótese (descrição de uma situação do mundo social), que implica uma consequência (relação jurídica entre dois ou mais sujeitos). Parte daí a afirmação que as normas jurídicas se apresentam homogeneidade sintática e heterogeneidade semântica.
Há, ainda, que se falar acerca da heterogeneidade semântica que pode ocorrer nas normas primárias e secundárias, visto que às normas primárias cabe a tarefa de instituir relações jurídicas e para as normas secundárias a garantia de cumprimento das normas primárias, com a intervenção do Estado-Juiz.
Concluímos, portanto, pela homogeneidade sintática das normas jurídicas em virtude de o direito somente se apresentar de uma forma: pelas normas jurídicas, em sentido estrito, veiculadoras de direitos e deveres que atuem, sempre e invariavelmente no campo das condutas possíveis. É o que garante ao direito seu fechamento sintático e abertura semântica e pragmática.
A proposição jurídica completa é composta por duas normas: a norma primária e a norma secundária. A norma primária é aquela que vincula a ocorrência de um fato social ou natural a uma consequência normativa, que é a relação de obrigação, permissão ou proibição entre dois sujeitos de direito. Já a norma secundária é o que caracteriza o direito: a coercitividade. Traz em sua previsão o descumprimento da relação prevista em uma norma primária, que implica a atuação do estado-juiz para fazer valer aquela relação jurídica.
Em virtude da linguagem do direito positivo, as proposições são unidas de maneira não ontológica, mas prescritivamente, o que faz com que esse vínculo seja realizado através de um dever-ser não modalizado; o dever-ser interproposicional é neutro. Há, entretanto, outro dever-ser na composição normativa, posta internamente na proposição jurídica, esse sim modalizado como proibido, permitido ou obrigatório.
Na composição da norma jurídica completa não há como admitir norma primária sem norma secundária; tampouco norma secundária sem norma primária. Esse modo de ser da norma completa é o que diferencia o sistema jurídico de outros sistemas reguladores de conduta. Isso porque, acaso admitíssemos a existência de norma primária sem uma norma secundária que lhe assegurasse a efetividade estaríamos diante de um sistema moral ou religioso, mas não jurídico. Por outro lado, a norma secundária depende de uma norma primária, instituindo uma relação jurídica que, descumprida, dará ensejo ao seu cumprimento. No direito, portanto, não há como conceber norma sem sanção, implicando dizer que a norma jurídica, apresentada em sua completude é formada por uma norma primária, ligada à uma norma secundária, que confere efetividade à primeira.
Norma Tributária
A regra-matriz de incidência tributária é norma voltada à prescrição de condutas, que traz em seu bojo todos os elementos necessários à incidência tributária. É, portanto, norma jurídica em sentido estrito.
A regra-matriz estabelece os elementos que nos permitem caracterizar um evento de possível ocorrência no mundo fenomênico, capaz de concretizar-se no fato jurídico tributário, bem como os elementos da relação jurídica que instalar-se-á quando da concretização do fato. Nesse sentido, descreve abstratamente o evento social, bem como as coordenadas de tempo e espaço em que sua ocorrência produzirá, se vertida em linguagem competente produzirá os efeitos jurídicos, bem como estabelece os possíveis sujeitos dessa relação, os elementos que nos permite determinar a base de cálculo da exação, bem como a alíquota.
Deixando de lado o aspecto semântico da norma jurídica nominada de regra-matriz de incidência, temos também outro viés para estudá-la: como sendo a forma lógica, estruturada com critérios componentes de seu antecedente e de seu consequente, vazios de conteúdo semântico.
Como qualquer outra norma jurídica (tributária padrão), tem sua sintaxe homogênea e sua semântica heterogênea, com a limitação de ser referente ao campo de atuação tributária, para ser considerada como tal. Disso decorre a conclusão que a regra-matriz se apresenta logicamente, isto é, sua forma é composta por uma proposição antecedente (hipótese ou descritor) e consequente (prescritor).
A hipótese se configura como sendo a descrição abstrata de uma situação possível do mundo social, que seja composta pelos critérios material, temporal e espacial que, ocorrendo na forma prevista, terá o condão de fazer nascer uma relação jurídica, na forma expressa no consequente.
O consequente, por sua vez, é composto por dois critérios: pessoal e quantitativo, compondo relação jurídica, modalizada como obrigatória, proibida ou permitida, entre dois ou mais sujeitos.
A hipótese de incidência da regra-matriz tributária comporta descrições de ação (critério material), tempo (critério temporal), e espaço (critério espacial), delimitando, através da escolha desses caracteres, o campo da exação tributária. É o antecedente, portanto, o responsável pelo recorte da realidade social que será submetido à normatividade jurídica.
Ao direito somente importam as situações sociais; aquelas criadas pela ação ou omissão de um indivíduo. Com as normas jurídico-tributárias não poderia ser diferente. O antecedente da RMIT é composto, inicialmente, pelo critério material, que faz referência ao comportamento de pessoas.
A estrutura do critério material se apresenta por um verbo pessoal acompanhado de um complemento, que apresente signos presuntivos de riqueza. Faz, portanto, referência a determinado comportamento de pessoa, seja ela física ou jurídica, que ocorrido, dará ensejo à criação do fato jurídico tributário.
Como destacado, mostra-se imprescindível que o verbo componente do critério material seja sempre pessoal, pois os demais estão fora da operatividade do direito. Ainda em relação ao verbo, imperativo que se trate de um verbo de predicação incompleta, necessitando de complemento.
O segundo critério faz referência ao tempo que o legislador recortou para considerar realizado o ato praticado no critério material. É o instante exato em que se reputa ocorrido o evento tributário, para que se possa falar em incidência normativa.
Com base na variação posta pelo legislador, na elaboração do critério temporal da hipótese, que fornece elementos que permitem identificar a condição que atua sobre determinado evento, subordinando-o no tempo, a doutrina construiu a classificação do critério temporal em instantâneos, continuados e complexivos.
Nesse contexto, os acontecimentos previstos no critério material seriam instantâneos quando sua ocorrência se esgotasse numa determinada unidade de tempo, ensejando, cada ocorrência, uma nova relação jurídica, uma nova e autônoma obrigação tributária. Os continuados abrangeriam os fatos que constituíssem situações duradouras que se prolongassem no tempo, ao passo que os complexivos englobariam os fatos cujo processo de formação se desse com o decurso de unidades sucessivas de tempo, de forma que, pela integração de vários fatores, surgiria o fato final.
A crítica à classificação, iniciou-se com a busca do sentido da palavra complexivo, cuja conclusão foi de sua inexistência no português, pelo que, de logo, deveria ser repelido. Entretanto, as críticas não pararam por aí. Os chamados fatos complexivos, se separados os seus componentes, são incapazes de gerar o nascimento da relação jurídica tributária, de forma que só gerará os efeitos previstos no consequente, no momento em que todos os fatos estiverem concretizados e relatados em linguagem competente, o que somente acontece num determinado e único momento. Antes desse momento, não existe o fato e, portanto, não há o que se falar em relação jurídica tributária.
O critério espacial, delimita em qual local o evento tributário deve ocorrer para que seja considerado tributável. É definido por Paulo de Barros Carvalho como sendo “o plexo de indicações, mesmo tácitas e latentes, que cumprem o objetivo de assinalar o lugar preciso em que a ação há de acontecer.”
Três são as possibilidades de determinação do aspecto espacial da norma tributária, classificadas em virtude do seu grau de elaboração: (i) quando há previsão específica do local onde se reputa ocorrido o acontecimento; (ii) hipótese em que há delimitação das áreas geográficas onde se considera integrante da incidência normativa.; e (iii) critério espacial coincidir com sua vigência territorial.
Muito embora por vezes coincidam, o critério espacial e o campo de eficácia da lei tributária – vigência territorial da lei — são entidades nitidamente distintas. O critério espacial especifica os locais em que a prática do evento previsto no critério material, segundo as condições de tempo estabelecidas no critério temporal.
De outra sorte, a vigência territorial da lei tem relação íntima com o campo de atuação dessa lei, que, no caso de leis estaduais, corresponderá aos limites territoriais do Estado que instituiu a lei.
Consequente e critérios
O consequente normativo traz a previsão da relação entre dois sujeitos distintos, ligados em virtude de uma conduta que deles se espera. Relação é a situação em que se encontram dois ou mais termos. Pode ser uma relação predicativa de atribuição de propriedade a um indivíduo, ou a maneira em que estão vinculados dois ou mais indivíduos. No que concerne ao campo de atuação do direito, alguns traços característicos podem ser definidos sobre as relações jurídicas, que sempre serão: (i) irreflexiva: em virtude da necessidade de haver ao menos dois sujeitos de direito em relação, já que é uma qualidade das normas jurídicas as relações intersubjetivas. A reflexividade na relação jurídica implica sua extinção, pela chamada “confusão”; (ii) assimétrica: pois pressupõe a presença, em uma relação, de direitos subjetivos e deveres correlatos e, se houvesse uma simetria desses direitos e deveres a relação estaria extinta, pelo que se chama no direito de compensação; e (iii) semitransitivas: não é regra que as relações jurídicas são transitivas, ou estejam impedidas de sê-lo.
O critério pessoal garante o caráter intersubjetivo do direito, determinando os sujeitos que irão compor o vínculo tributário, nos pólos ativo e passivo. Tem-se por sujeito passivo o indivíduo que se encontra na relação jurídica por ter o dever de cumprir o preceituado na regra-matriz de recolher aos cofres públicos certa quantia em dinheiro, a título de tributo.
Em contrapartida, ocupa a posição de sujeito ativo da relação jurídica tributária as pessoas políticas de direito público ou aquelas que a substituírem, no caso de capacidade ativa delegada, detentoras de um direito, que é o de ver satisfeito o crédito tributário.
Na maior parte das vezes, aquele que tem autorização para criar o tributo também se coloca na posição de credor da relação jurídica tributária. Havendo duas exceções: (i) a pessoa que possui competência para instituir o tributo, determina que outro ocupe o papel de sujeito ativo, sendo responsável pela arrecadação e fiscalização do tributo, mas ao final tendo o dever de transferir o produto arrecadado ao ente político; e (ii) o ente que ocupa a posição de sujeito ativo também não é o mesmo que tem a competência, mas esse fica com o resultado dessa arrecadação – a essa situação se dá o nome de parafiscalidade.
Nesse critério há dois aspectos. O primeiro, chamado de base de cálculo, estabelece o montante a que faz referência o tributo. Tem correlação direta com a hipótese de incidência, sendo norteadora do tipo tributário. É mediante a verificação do binômio hipótese de incidência/base de cálculo que se pode compreender em que espécie tributária a norma se enquadra.
Três são as funções da base de cálculo, conforme ensina Paulo de Barros Carvalho: “a) medir as proporções reais do fato; b) compor a específica determinação da dívida; e c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no antecedente da norma.”
Como se pode notar é sobremaneira importante o papel da base de cálculo na composição do tributo, sem contar a necessidade da sua análise em conjunto com o critério material, para que se possa identificar a qual espécie tributária se refere o tributo. Essa conclusão é obtida em virtude de cada um desses critérios ser o núcleo da regra-matriz, sendo o critério material no antecedente, estabelecendo quais as condutas tipificadas na norma como ensejadoras da relação jurídica e a base de cálculo no consequente, mensurando a exação tributária, posta pelo comportamento estabelecido no critério material.
Ocorre, todavia, que no que se refere à mensuração da obrigação tributária, a base de cálculo também não atua sozinha. A ela é unida a alíquota, que comumente se apresentam como uma unidade de medida, que multiplicada pela base de cálculo confere o montante a ser recolhido aos cofres públicos, a título de tributo.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007.
__________. Teoria da Norma Tributária. 5ª edição. São Paulo: Quartier Latin. 2008.
__________. Direito Tributário – Linguagem e Método. 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2008.
Cecilia Priscila de Souza é advogada em São Paulo.