A nossa cultura ético-jurídica

“Poucos homens devem viver tensão tão árdua entre a necessidade de sobreviver e a imposição de seus de valores quanto um advogado !! Contudo, ou o advogado é ético, por princípio ou por lei; ou consente em ser um velhaco de terno e gravata !!

Luiz O. Amaral

O país infelizmente ainda não tem cultura ético-jurídica suficiente para condenar uma autoridade pública tão somente por infringirem princípios como da legalidade ou da justiça, salvo se intervirem outras razões e conveniências. E se esse julgamento for pelos próprios pares, fica quase impossível tal condenação, pois o raciocínio que preside tal hipótese é o de que tal condenação afeta a imagem e conspira contra a corporação. Daí porque é tão raro um humilde vencer efetivamente um poderoso a partir só e exclusivamente de razões jurídico-morais. O lobby (no pior sentido) e a automática defesa corporativista ainda são nossas reminiscências de quarto mundo. O justo e o legal – expressões máximas do Estado de Direito – por si só ainda perdem para o “inconveniente” da condenação de parceiros e poderosos flagrados em falhas éticas ou criminais.

Assim, a luta para se fazer justiça em caso concreto e individual (fora das retórica), em certas situações, ainda é uma questão de bravura e heroísmo de poucos. Veja-se o caso do filho de um ministro que atropelou e matou um operário, em termos proporcionais de justiça pode-se dizer que quase condena-se a vítima. Confirme-se o que ocorre se uma grande empresa for condenada a devolver dinheiro ao mero consumidor, ao assalariado, é quase impossível que isso se efetive antes do hipossuficiente ser obrigado a aceitar um acordo injusto e benéfico apenas a empresa condenada : pesquisem, p.ex., como é quase impossível o Grupo OK, o WV Tartuce, dentre outros, cumprirem sentenças/acórdãos, aqui em Brasília, e por certos, noutros Estados…

Há um caso concreto e paradigmático nesse tema de cultura ético-jurídica no Brasil. È o caso do menino lesado em sua riquíssima herança, na Capital da República, no centro da razão nacional. Pode-se bem imaginar o quão difícil é a tramitação e a boa vontade com processos (“processo aidético”, ouvia-se), como os desse menino. Com a CPI houve uma leve sombra de esperança de que a justiça e lei pudessem se tornar impessoais e deferidas a todos indistintamente, menos a menino órfão e pobre (e mais empobrecido na e pela Justiça). Apagados os holofotes o menino e seus defensores devem ser massacrados, senão condenados por ousarem buscar justiça na Justiça e onde mais fosse necessário. O menino vai terminar por ser condenado, não a receber, mas a pagar a seus lesantes. Nesse caso rumoroso se quiser atestar a lisura do trabalho do juiz (e de sua equipe) basta que se apresentem os requerimentos dos credores exigindo pagamentos das dívidas feitas pelo falecido e no montante da riqueza deixada pelo e consumida em juízo. Restaria, então, apenas a falha formal de não se ter procedido, antes, como a lei e a moralidade pública impunham a todos e mais ainda a um juiz. E a imprescindível prestação de contas dessa gestão de patrimônio alheio ? Não seria isto uma garantia do maior interesse do proprio juiz, curador, advogados, gestores judiciais… ??

Ora, um juiz pagar “dívidas” sem que ninguém as exija e com dinheiro de terceiro que sob sua guarda subsiste e se tal fato se dá em detrimento de uma criança-órfã isso será fato que se possa ou que se deva esconder com esfarrapadas e deturpadas tergiversações pseudojurídicas ? Andou-se, por exemplo, propagando, no afã de defender o indefensável, ou seja, a legitimidade do desaparecimento da herança do órfão que não se tratava de bens de menor, mas do espólio (e sendo do espólio, poderia ser pilhado ?? Com efeito, maior sandice jurídica não poderia ser proclamada; ou trata-se da maior má-fé (péssima-fé, ainda é pouco), ou de ambos conjugados. Ora, todos os estudante de Direito sabem que nosso sistema jurídico se orienta pelo princípio jurídico da saissine que indica que “nenhum bem fica sem proprietário pela morte do detentor do domínio, considerando-se imediatamente como proprietário o herdeiro. Saissine, é assim, o direito à posse de uma herança pela simples morte do de cujus.” Eis então o “fundamento do direito das sucessões, no sentido de que a morte não interrompe o direito de propriedade, ou seja, o domínio e a posse dos bens transmitem-se desde logo aos herdeiros mesmo que estes desconheçam o falecimento e sem formalidade alguma.” (confira-se em todas as obras, p.ex.. Leib Soibelman Enciclopédia jurídica eletrônica, Elfez, RJ, versão 2.0, s/data., v. saissine).

Tão débil quanto o despropósito de defender-se o mal, é a tese de que o pátrio poder da anulada e ingênua mãe (ameaçada até de perder esse poder sobre seu filho) do menino pudesse justificar a dilapidação imoral da herança pelo Estado-juiz, já porque tal pátrio poder, despido de todo o poder econômico-financeiro sobre a rica herança, não seria senão apenas a guarda e a educação somente do próprio menor-herdeiro; já porque o espírito da lei, longe disso, visou proteger o menor e jamais o juiz, o curador, o advogado que cuidam de bem de menor. A falta de leilão (hasta pública) foi o que permitiu ao lado da irregular concentração de tudo sob o poder do mesmo juiz e do mesmo rol de pessoas interessadas não na sorte do menor, o que hoje resta bem patente (é só ver as dívidas geradas para ele ao longo do inventário). A conveniência tranquilizadora para o juiz não indicaria a hasta pública ainda que não obrigatória (o que não é verdadeiro) ?

Não é nada normal, justo ou legal, menos ainda moral esconder-se a sujeira para baixo do tapetão dos gabinetes.

Os que erraram (por desonestidade ou desleixo) que se desculpem perante seus pares, à sociedade e aos prejudicados, quiçá isso já seja reconforto suficiente para encerrar a luta do Davi contra o Golias, como nesse caso do órfão. E isso todos, enfim, deveriam estar buscando: a OAB (porque é sua missão estar ao lado dos advogados e dos deveres ético-profissionais), o MP (porque fiscal da lei e do interesse judicial do menores), a magistratura (porque devem buscar a justiça acima de tudo por dever funcional, legal e de juramento), a impressa em geral (porque sendo um quarto poder precisa usar legitima e justamente tal força), o Poder Legislativo (porque é a representação final do povo no poder e, sem o fundamento da legitimidade e da justiça é poder desnecessário e inútil) e a sociedade em geral (porque não pode ficar silente de diante de tal injusta imoralidade, sob pena de se perder como fonte de todos os poderes). O Brasil está a exigir de seus lideres e homens públicos exemplos edificantes, basta da ‘pedagogia’ da corrupção em que os piores afastam os melhores no podium social.

E como aquele nefasto utilitarismo imoral (tudo vale a pena se grana não é pequena) pode ser efetivado, na concretude da vida judicial, com ar e retórica de boa técnica: dois homens inteligentes e razoavelmente preparados no manejo do discurso jurídico podem debater por cem anos e ambos encontraram “razões” e discursos para mais cem anos de debates e, provavelmente ambos passaram a impressão de estarem corretos. Mas no fundo, na essência da questão, um só estará manejando verdadeiras razões de justiça e o bom Direito; o outro estará usando apenas belos discursos pseudojurídicos, aliás muito em voga nesses tempos de farisaísmos. E aí a decisão final, nesses casos raros e extremos, mas concretamente existentes, ficará por conta do valor justiça ou por conta do “valor” conveniência, corporativismo, do princípio “uma mão lava a outra…”

Em conclusão, podemos responder à pergunta que não quer se calar: a justiça (o valor ético essencial do homem) só é viável, entre nós, se houver um lobby a seu favor, se outros interesses intervierem na decisão? Cremos que não, do contrário não estaríamos aqui nessa posição não tão favorável. Enfim, precisamos de uma ferrenha guerra santa (cujas batalhas são muitas); de cruzadas pós-modernas. Faz necessário, no entanto, o reacender das qualidade de caráter, tais como o ser honesto, o ser heróico, o ser desprendido, que, aliás, já são exigência acima da média dos homens. Do contrário só nos restará a justiça utilitarista : só e quando for útil ou interessante é que ela poderá se viabilizar nos casos concretos. È preciso que se apurem mais detidamente que o comum, os casos em se ousem denunciar autoridades de um setor da vida nacional que ainda não padece da infeção generalizada da corrupção, o mal é ainda tópico.

LUIZ OTÁVIO DE O. AMARAL é advogado militante em Brasília e professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília. É o primeiro executivo federal do Direito do Consumidor, inclusive quando da elaboração do CDC e representante brasileiro nas rodadas de discussão nas Nações Unidas. Autor de livro e monografias na área do Direito do Consumidor, publicados no Brasil e no exterior.

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