A “nova” Desvinculação de Receitas da União e o pacto federativo

Autora: Raquel de Andrade Vieira Alves (*)

 

A Desvinculação de Receitas da União (DRU), assim como a CPMF, foi um instrumento criado pelo governo federal para ser provisório, mas que, ao longo dos anos, foi sendo prorrogado por sucessivas emendas constitucionais, sob a justificativa de propiciar ao Executivo Federal maleabilidade e governabilidade. É que a desvinculação de parte das receitas arrecadadas pela União conferiria uma maior flexibilidade no desempenho da atividade financeira daquele ente, desobrigando o gestor financeiro de utilizar parte das receitas arrecadadas em sua finalidade original.

Como bem destacou Fernando Facury Scaff, em coluna acerca do tema na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 14 de julho de 2015, “a DRU faz parte daquelas soluções tipicamente brasileiras, pois transforma em permanente algo que é apresentado como provisório e, sempre que o prazo de sua vigência está por vencer, acaba sendo renovada sob o argumento da crise e da possível ingovernabilidade financeira do país”.

Contudo, a DRU não foi criada de maneira inovadora, tendo se inspirado, na verdade, ainda no governo Itamar Franco, no Fundo Social de Emergência (FSE), instituído pela Emenda Constitucional de Revisão 01/94, em março de 1994, transformando-se, posteriormente, agora já no governo Fernando Henrique Cardoso, no Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) — Emenda Constitucional 10, de 4 de março, de 1996. Os recursos originalmente seriam aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social, nos termos do artigo 71 do ADCT[1].

Essa foi a primeira aparição do mecanismo de desvinculação que, após diversas modificações legislativas, inclusive com mudanças de nomenclatura — como é o caso do FEF —, atingiu o formato atual a partir da Emenda Constitucional 27, de 21 de março de 2000. Esse sistema desvinculava vinte por cento da arrecadação de impostos e contribuições sociais da União, com previsão para vigorar apenas entre 2000 e 2003, nos termos do que dizia o caput do artigo 76 do ADCT[2]. Não obstante, foi prorrogado por sucessivas emendas até o fim de sua vigência em 31 de dezembro de 2015.

De acordo com a sua última configuração, dada pela Emenda Constitucional 68, 21 dezembro de 2011, promulgada durante o governo Dilma, a DRU desvinculava de órgão, fundo ou despesa, 20% da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais, e incluía também as contribuições de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que viessem a ser criados até a data da sua vigência, 31 de dezembro de 2015. Ou seja, na prática, seria possível dizer que apenas 80% da arrecadação com contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico era efetivamente empregada em suas finalidades, porque 20% era utilizado em outras áreas, mediante determinação expressa da Constituição.

A fim de “ressucitar” esse mecanismo de desvinculação de receitas, antes mesmo do fim de sua vigência, tramitavam no Congresso Nacional algumas propostas de emenda à Constituição que visavam alterar do caput do artigo 76 do ADCT, propiciando a continuidade da DRU. Uma das propostas previa a redução gradativa do percentual desvinculado até a completa extinção do mecanismo, em 2019 (PEC 4/15); enquanto outra previa o aumento do percentual de desvinculação para 30% e a inclusão das taxas dentro dessa sistemática em vez dos impostos, bem como das participações no resultado da exploração de recursos hídricos e minerais, com vigência até o ano de 2023 (PEC 87/15). Uma terceira (PEC 112/2015), proposta pelo senador Benito Gama, trazia basicamente as mesmas inovações pretendidas pela PEC 87/2015, embora mantivesse a proposta de desvinculação no patamar de 20% e a prorrogação da vigência da DRU somente até 31 de dezembro de 2016.

Dessas propostas teve prosseguimento apenas a PEC 4/2015, tendo as demais sido arquivadas na Câmara, em junho deste ano, ocasião em que o Plenário da Casa aprovou um substitutivo à emenda, elevando para 30% o percentual de desvinculação, mas mantendo o prazo de vigência até 2019, e a inclusão das taxas na desvinculação em vez dos impostos, como era na sistemática anterior. Acrescentava ainda os artigos 76-A e 76-B ao ADCT, que criavam um mecanismo de desvinculação de receitas dos estados e municípios, a exemplo da DRU.

No Senado, a então renomeada PEC 31/2016, foi aprovada por votação em dois turnos, nos termos da redação final aprovada pela Câmara, adicionando, porém, a extensão do mecanismo até 31 de dezembro de 2023. Como consequência, na última sexta-feira (9/9), foi publicada no Diário Oficial da União a Emenda Constitucional 93, de 2016, que alterou o ADCT para prorrogar a DRU e estabelecer a desvinculação de receitas dos estados, Distrito Federal e municípios, nos termos do que foi aprovado pelo na votação do Senado.

Destaque-se que, desde o surgimento da DRU, tal como tida atualmente, a doutrina questiona a constitucionalidade das emendas que previam a possibilidade de desvinculação de parte do produto da arrecadação das contribuições. Grande parte das discussões a respeito está centrada na incompatibilidade do mecanismo de desvinculação com os direitos e garantias individuais previstos como cláusulas pétreas na Constituição.

Contudo, a desvinculação do produto da arrecadação das contribuições não representa uma ofensa apenas aos direitos e garantias individuais, como também ao princípio federativo, igualmente imutável, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º da Constituição. Como bem sintetizou Luís Cesar Souza de Queiroz[3]:

[…] durante 16 dos 21 anos que tem a Constituição de 1988, prevalece algum tipo de sistema que dispõe sobre a desvinculação de receitas da União, inclusive as provenientes de contribuições especiais. O que nasceu como uma exceção, revelou-se regra.

Essa anormalidade jurídico-política, que atinge o regime das contribuições especiais, não tem sido ignorada pela doutrina.

Parcela representativa da doutrina nacional defende a tese de que essas Emendas Constitucionais veiculam normas inconstitucionais. Há quem argumente que a desvinculação dos recursos das contribuições especiais afronta a Constituição, à medida que prejudica o atendimento dos direitos fundamentais de 2ª e 3ª gerações, ou que desrespeita os direitos e garantias individuais dos contribuintes ou que restaria afetado o princípio federativo. Neste caso, preconiza-se que a desvinculação transformaria as contribuições especiais em impostos disfarçados, com relação aos quais os demais entes não participam do produto da respectiva arrecadação. Desse modo, a União, ao criar ou aumentar as ‘contribuições especiais desvinculadas’, não precisa repartir com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios o respectivo produto da arrecadação, diversamente do que ocorreria se tivesse majorado os impostos referentes a sua competência ordinária (art. 153 c/c arts. 157 e 158 da Constituição) ou se tivesse instituído os denominados impostos residuais (artigo 154, I, c/c artigo 157, II, da Constituição).

É cediço que a destinação, aliada à referibilidade de grupo, são elementos essenciais a qualquer espécie de contribuição, de modo que a ausência de um deles, ou de ambos, conduz à desconstrução da identidade constitucional dessa espécie tributária. Nesse sentido, desde a promulgação da Constituição de 1988, a União tem instituído novas contribuições e majorado as já existentes, sem, contudo, respeitar o seu perfil jurídico, fazendo uso dessa espécie tributária única e exclusivamente em função da sua não submissão à sistemática de repartição de receitas.

Essa política arrecadatória do governo federal tem contribuído não apenas para a completa descaracterização das contribuições como espécies tributárias autônomas, como também para o esvaziamento da autonomia dos estados e municípios, que, à míngua de recursos suficientes para o desempenho normal de suas atividades, acabam se sujeitando à política ditada pelo governo central.

Ocorre que, à medida que a União aumenta a sua arrecadação por meio de contribuições, em detrimento dos impostos federais, ela cria um problema orçamentário, porque toda a arrecadação advinda dessas espécies já está comprometida com as finalidades constitucionais para as quais elas foram criadas, não havendo margem de manobra para o administrador flexibilizar o emprego dessas receitas. Dessa forma, com o tempo, o orçamento federal vai ficando “engessado”, de modo que a maior parte das receitas geradas já está vinculada a gastos sociais e econômicos específicos. Com isso, pouco sobra para a composição do chamado superávit primário, que irá amortizar os juros da dívida pública e, consequentemente, mostrar aos credores internos e externos a solvência do país.

A solução para isso está justamente no mecanismo de desvinculação de parte das receitas da União, dentre as quais estão as contribuições — e agora também as taxas. Como destaca Marciano Seabra de Godoi[4], apenas o aumento drástico das contribuições não foi suficiente para atingir os desígnios da política fiscal engendrada pela equipe econômica ao longo da década de 1990. A administração de uma dívida pública que aumentava ano a ano requeria de fato uma arrecadação maior, o que efetivamente foi conseguido por meio das contribuições.

Entretanto, a ligação direta entre o aumento das contribuições e a expansão do superávit primário restava obstada pela vinculação da arrecadação das contribuições. Ou seja, a própria natureza jurídica da exação inviabilizava os planos do governo federal. Assim, para contornar esse problema, os formuladores da política fiscal lançaram mão de uma medida legislativa e de uma medida administrativa: a primeira foi a prorrogação de sucessivas emendas constitucionais modificando o perfil jurídico de parte das contribuições instituídas, para permitir a livre utilização de sua arrecadação; e a segunda é representada pela prática do contingenciamento das rubricas orçamentárias das contribuições, de modo que grande parte é arrecadada, mas permanece no caixa único do governo federal por anos a fio, contribuindo para o sucesso do superávit primário.

É dessa forma que o que era para ser um recurso provisório se tornou um mecanismo permanente. Frise-se ainda que, não satisfeito com o grau de desvinculação orçamentária que vem sendo obtido[5], o Executivo Federal propôs o aumento do percentual de desvinculação e a expansão do mecanismo para atingir também as taxas, prorrogando por mais oito anos a DRU, o que acabou sendo aprovado pelo Congresso, entrando em vigor no dia 9 de setembro, com efeitos retroativos a janeiro deste ano.

Acontece que a solução para o “engessamento” orçamentário da União é bem simples: basta que ela faça uso adequado dos impostos de sua competência, cuja arrecadação, por natureza, não pode estar vinculada a nenhuma despesa específica. Porém, o governo federal, tendo à sua disposição um mecanismo que lhe permite desvincular parte da arrecadação de suas receitas exclusivas, obviamente prefere incrementar seu orçamento via contribuições e posteriormente lançar mão desse instrumento, a repartir parte do montante arrecadado com estados e municípios.

A questão se torna ainda mais grave, diante do atual contexto federativo de recentralização de receitas por parte da União, aliada à diminuição gradativa da arrecadação dos principais impostos federais, mediante a concessão de isenções[6]. Nesse cenário, o mecanismo de desvinculação de receitas aparece como um “golpe de misericórdia” no pacto federativo, contribuindo para que o governo federal se valha cada vez mais de tributos não partilháveis, cuja receita será posteriormente desvinculada, ao invés de prestigiar a instituição de impostos de sua competência.

 

 

 

 

Raquel de Andrade Vieira Alves é assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Uerj.

 


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