Por Reginaldo de Castro
A reprovação em massa de bacharéis em Direito no Exame de Ordem da OAB — 88%! — cobre a educação brasileira de vergonha. É mais que um índice estatístico: é uma confissão de delinquência por parte das universidades, do MEC e da própria OAB.
Cito a OAB, que tive a honra de presidir no triênio 1998-2001, por uma razão simples: ela inexplicavelmente abriu mão de seu papel proativo no processo, deixando de editar, a partir de 2007, a publicação anual “OAB Recomenda”, que relacionava as faculdades de Direito que ofereciam ensino de alguma qualidade.
Esse serviço teve início em minha gestão e mostrou-se de enorme eficácia. Em vez de denunciar quem ia mal, relacionava quem ia bem. E todas as instituições, até por razões de mercado, procuravam se ajustar para constar daquela publicação, que se tornou rapidamente fonte de consulta dos que queriam se matricular numa faculdade de Direito.
O consumidor procura sempre o melhor produto, e a OAB, como entidade dos advogados, tem credibilidade e fé pública para aferir a qualidade do ensino jurídico. As más faculdades de Direito — a maioria — sentiram na carne a contundência daquele serviço, de eficácia bem maior que qualquer denúncia.
Até então, as relações da Ordem com o tema limitavam-se a pressões sobre o MEC e a denúncias, sem que disso resultasse algo de objetivo. As reprovações em massa continuavam e o MEC seguia credenciando novas instituições de ensino, mesmo sem ter qualquer controle sobre as antigas. E as reprovações não davam sinais de recuo, lançando anualmente no mercado milhares de bacharéis frustrados. Um crime contra a educação, a juventude e o país.
Foi com base nisso que tivemos a iniciativa de inverter a equação: em vez de denunciar os faltosos, passamos a recomendar os eficazes. E os resultados se mostraram promissores. Tinha início um serviço público de valor inestimável, com efeito corretivo, obrigando os maus empresários do setor a mudar suas estratégias, com vistas à sobrevivência no mercado.
Aliás, um dos sinais mais evidentes da eficácia do “OAB Recomenda” era a pressão de conhecidos picaretas do ensino para que aquele serviço deixasse de ser prestado. Foram atendidos.
A partir de 2007, subitamente e sem qualquer alegação, a OAB deixou de publicar suas recomendações. Voltou a confiar exclusivamente no MEC, que, como de hábito, prometeu maior rigor no credenciamento dos cursos jurídicos e, como de hábito também, não cumpriu o que prometeu. O resultado aí está: em cinco anos, houve aumento de 30% no credenciamento de cursos jurídicos.
Somente em Brasília, o aumento foi de 75%. As reprovações voltaram a aumentar até chegar o presente índice, pornográfico, de 80%. Restou à OAB vir a público, como fazia no passado, apenas para lamentar e denunciar. Seu presidente, Ophir Cavalcante, informa que os cursos foram criados à revelia dos pareceres negativos da Ordem, como se o MEC dependesse desses pareceres para agir.
A OAB não trabalha para o Estado, mas para a sociedade. E o melhor serviço que lhe pode prestar nessa questão é, sem prejuízo das pressões que deve exercer sobre o MEC, mostrar quais instituições de ensino cumprem seu dever.
Não o fazendo, associa-se, por omissão, ainda que não o queira, à delinquência generalizada que historicamente debilita o setor. Como membro honorário vitalício do Conselho Federal da Ordem, tenho cobrado sistematicamente o restabelecimento daquele serviço, sem qualquer êxito, o que acho estranho, já que essa é uma das causas mais eloquentes de nossa entidade.
A OAB sempre associou a má qualidade dos serviços jurídicos do país à má qualidade dos cursos de Direito, que formam não apenas advogados, mas todo o elenco que atua na cena judiciária: como magistrados, procuradores, delegados, promotores etc.
Não basta promover a reforma do Poder Judiciário sem simultaneamente melhorar o padrão do ensino de Direito no país. Além de melhorar o atendimento ao público, aumenta a consciência e o padrão ético de nosso meio, uma das bandeiras mais tradicionais da OAB e tema de numerosas campanhas públicas no passado.
E há ainda um fator adicional: o processo de globalização econômica, que interconectou mercados e acirrou a competitividade internacional, deu relevo ainda maior à precariedade dos nossos cursos jurídicos. A abertura dos mercados colocou nossos profissionais em concorrência direta com os do Primeiro Mundo, aumentando a exigência de apuro e especialização.
Como agimos na contramão dessa lógica, piorando em vez de melhorar, favorecemos a invasão dos escritórios internacionais de advocacia. E isso é ruim para o país, cujas demandas no campo dos negócios multilaterais acabam sendo conduzidas segundo a óptica dos interesses externos.
Espero que, com mais esse revés, cujas vítimas maiores são a juventude e a sociedade brasileira — a primeira por ver frustrado seu sonho de ascensão social pelo saber; a segunda por ser vítima direta de maus serviços numa área vital —, algo mude.
Esse novo fiasco fortalece o lobby das universidades relapsas pela extinção do Exame de Ordem, já proposta no Congresso Nacional. O Exame de Ordem, no entanto, nada tem a ver com isso. É apenas um termômetro a indicar o quadro febril do paciente — nesse caso, a educação brasileira. Quebrar o termômetro não cura a febre. É um gesto insano e desonesto dos que querem manter as coisas como estão e seguir lucrando às custas da juventude brasileira. Um crime de lesa Pátria. Nada menos.
Lamento que a Ordem não tenha argumentos para justificar sua omissão nesse capítulo lamentável da história do Direito no Brasil.