Autor: Thiago Cássio D’Ávila Araújo (*)
A Lei 11.107, de 6 de abril de 2005, derivada do artigo 241 da CF/88 após EC 19/98, dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos para objetivos de interesse comum dos entes federados, prevendo que estes podem formar consórcio público, por associação pública ou pessoa jurídica de Direito Privado sem fins econômicos, por prévia celebração do protocolo de intenções[1], ratificado este por lei de cada ente federado[2], exceto se o ente da federação, antes de subscrever o protocolo de intenções, disciplinar por lei a sua participação no (determinado) consórcio público[3].
Vigentes as referidas leis, o consórcio público adquire personalidade jurídica de Direito Público, no caso de constituir-se por associação pública; de outro modo, só adquire personalidade jurídica de Direito Privado por inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas[4].
Analisadas as categorias do artigo 44 do CC/2002, tal consórcio não poderia ser “sociedade”[5] nem Eireli[6], porque não tem finalidade econômica (lucrativa); e, a toda evidência, não é organização religiosa nem partido político. Também não é fundação, porque os objetivos do consórcio público podem ser diferentes daqueles do parágrafo único do artigo 62 do CC/2002 e, além disso, o consórcio público, como pessoa jurídica de Direito Privado, é mais que mera dotação especial de bens livres destinados a uma finalidade específica (caput do artigo 62 do CC/2002).
Os consórcios públicos dotados de personalidade jurídica de Direito Privado enquadram-se na categoria das associações, do inciso I do artigo 44 do CC/2002, considerado ainda o seu artigo 53: “Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”[7].
Entretanto, não é associação civil plena. As liberdades do regime jurídico de Direito Privado são limitadas no âmbito do consórcio público, em razão do artigo 15 da Lei 11.107/05: “No que não contrariar esta lei, a organização e funcionamento dos consórcios públicos serão disciplinados pela legislação que rege as associações civis”.
É inaplicável aos consórcios públicos de personalidade jurídica privada o próprio parágrafo único do artigo 53 do CC/2002, que prescreve que não há,entre os associados, direitos e obrigações recíprocos, pois contraria normas que prescrevem obrigações recíprocas entre os próprios entes federados que constituem o consórcio público (seja com personalidade jurídica de Direito Público ou Privado), como se colhe da Lei 11.107/05, artigos 3º, 4º, XII, 5º e 13.
A associação civil pela qual o consórcio público é formado (em sendo constituído como pessoa jurídica de Direito Privado) é, na verdade, de regime jurídico híbrido, ou associação civil anômala. O que, aliás, é evidenciado pela redação do parágrafo 2º do artigo 6º da Lei 11.107/05, in verbis: “No caso de se revestir de personalidade jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT”.
O artigo 15 da Lei 11.107/05 aplica-se também aos consórcios públicos constituídos sob personalidade jurídica de Direito Público[8]. Ainda que as associações públicas sejam autarquias, dada a redação do inciso IV do artigo 41 do CC/2002 pelo artigo 16 da Lei 11.107/05[9], é sabido que o regime jurídico de Direito Privado se aplica, em inúmeras situações, às pessoas jurídicas de Direito Público, supletivamente, no que couber. Como exemplo, o artigo 54 da Lei 8.666/93.
O artigo 15 da Lei 11.107/05 tem a função de duplamente caracterizar o regime jurídico híbrido dos consórcios públicos, por fazê-lo tanto em relação às associações públicas como em relação às associações civis pelas quais tais consórcios públicos se constituam. A diferença está na ênfase em normas de Direito Público, maior na associação pública.
Diante do parágrafo 1º do artigo 6º da Lei 11.107/05, que dispõe que o consórcio público com personalidade jurídica de Direito Público (associação pública) integra a administração indireta de todos os entes federados consorciados, surge a questão sobre a inserção institucional da associação civil de consórcio público. Carvalho Filho afirma que “os consórcios, formados que são por entes federativos no exercício da atividade administrativa, não podem ser inseridos senão no sistema da administração indireta, seja qual for a natureza jurídica de que se revestem”, sendo que “andou mal o legislador nesse aspecto, dizendo menos do que deveria dizer”[10]. Por sua vez, Medauar e Oliveira entendem que “os consórcios dotados de personalidade jurídica privada não integram a administração indireta dos consorciados, não tendo, portanto, inserção institucional pública”[11].
O Decreto-lei 200/1967 estabelece (artigo 4º) que a administração federal compreende a administração direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos ministérios e a administração indireta, que compreende as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações, conforme Lei 7.596/87. A CF/88, por sua vez, considerada a EC 19/98, no inciso XIX do artigo 37 faz menção apenas às categorias já previstas no DL 200/67.
Não houve omissão do legislador, por não haver elencado a associação civil consorcial pública no artigo 6º, parágrafo 1º, da Lei 11.107/05, inclusive porque o artigo 16 desta mesma lei alterou o inciso IV do artigo 41 do CC/2002 para cuidar somente da figura da “associação pública”, elencando-a como espécie de autarquia, o que só foi possível em razão da sua própria natureza jurídica. Como ensinado por Celso A. Bandeira de Mello, “a taxinomia jurídica, como outra qualquer, só tem o préstimo de fornecer rotulação para objetos símiles”[12]. Assim, o legislador, em silêncio eloquente (não por omissão!), deixou clara sua intenção de não integrar a associação civil à administração pública indireta dos entes federados reunidos em consórcio público. E, possivelmente, nem poderia fazê-lo por lei ordinária. Renata Castanheira de Barros Waller, em frase ímpar, afirmou que “com essa ‘inclusão’ das associações públicas entre as autarquias,evitou-se mais uma emenda constitucional”[13]. Por outro lado, entendo que não seria possível inserir a associação civil de consórcio público nas categorias existentes no inciso XIX do artigo 37 da CF/88.
Considero que a associação civil de consórcio público é pessoa jurídica de Direito Privado sem fins econômicos, associação civil anômala que necessariamente possui obrigações recíprocas estabelecidas entre os associados, submetida parcialmente a regime jurídico de Direito Público, que não integra a administração pública direta ou indireta dos entes federados consorciados e que se caracteriza como entidade paraestatalcriada por estes.
Mesmo que consórcio público por associação civil esteja submetido às regras de Direito Público previstas no parágrafo 2º do artigo 6º da Lei 11.107/05 (o que não desnatura sua qualidade de pessoa jurídica de Direito Privado, a exemplo do que já ocorre com empresas públicas e sociedades de economia mista, também submetidas a parcial regime de Direito Público, inclusive por força das normas constitucionais, por exemplo, artigo 173 e parágrafos da CF/88), é evidente que uma entidade paraestatal de Direito Privado está submetida a regime jurídico mais maleável que uma autarquia, daí exsurgindo várias diferenças de ordem prática na governança da “associação pública” ou da “associação civil”.
Abordo, abaixo, um exemplo, observando que, caso não se concorde com o mesmo, nem por isso deixarão de existir outros exemplos de diferenças na governança entre as duas modalidades de consórcios públicos.
O artigo 39 do Decreto Presidencial 6.017/2007 trouxe regra de que a partir de 1º/1/2008 a União somente celebraria convênios com consórcios públicos constituídos sob a forma de associação pública ou que para essa forma tivessem se convertido, apesar do permissivo contido no art. 14 da Lei nº 11.107/05 não ter feito distinção entre “associação pública” e “associação civil”[14]. De todo modo, ficou livre a celebração de convênios, pelos demais entes federados, com a associação civil de consórcio púbico, como permitido pelo inciso I do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 11.107/05 (“firmar convênios…”).
Parece-me que a vedação do artigo 39 do citado decreto não abrange os instrumentos de parceria da Lei 13.019/14, já que estes diferem da figura do “convênio”, como se vê do artigo 84-A c/c inciso I do parágrafo único do artigo 84 da própria Lei Federal 13.019/14, com redação da recente Lei 13.204, de 14/12/2015, do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC)[15]. Soma-se a isso que o mencionado inciso I do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 11.107/05 permite que a associação civil de consórcio público firme as parcerias do artigo 42 do MROSC, por deferir aos consórcios públicos poderes de “firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo”.
A propósito, a atual redação do inciso X do artigo 3º do MROSC prevê a não aplicação das exigências deste diploma legal às parcerias entre a administração pública e os serviços sociais autônomos, mas nada há, neste sentido, sobre parcerias entre a administração pública e as associações civis de consórcios públicos[16].
O parágrafo 2º do artigo 6º da Lei 11.107/05 jamais obrigou a associação civil de consórcio público a seguir exatamente a Lei 8.666/93, mas “as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos”. Ora, as associações civis de consórcios públicos poderão firmar as parcerias de que trata o atual artigo 42 da Lei 13.019/14, por “termo de colaboração” (artigo 16) ou “termo de fomento” (artigo 17), que envolvem transferências de recursos financeiros[17] e fazer as compras e contratações com base no sistema eletrônico de que trata o artigo 80 da mesma, tudo com redação da Lei 13.204/15, dado que tais também são normas de direito público[18]. Ao contrário, as associações públicas, como autarquias que são, cumprirão a Lei 8.666/93 e outras leis de licitações e contratos e suas formalidades mais rigorosas.
Quando o MROSC se refere, na atual redação, a Organizações da Sociedade Civil, não exige que tais tenham nascido no seio da sociedade civil, mas que se destinem a atender a sociedade civil. Tal está claro, por exemplo, na parte final da alínea “b” do inciso I do seu artigo 2º, ao considerar como Organizações da Sociedade Civil as entidades privadas que estejam “capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social”. Ademais, os objetivos listados nos incisos do artigo 5º do MROSC podem perfeitamente coincidir com um ou mais propósitos (objeto social) da associação civil de consórcio público.
Assim, as associações civis de consórcios públicos, já que possuem personalidade jurídica de Direito Privado sem finalidade econômica e, ainda, por tudo quanto antes aqui afirmado, podem ser enquadradas como Organizações da Sociedade Civil, para as finalidades da Lei 13.019/14, inclusive, mesmo que sejam criadas pelo poder público (entes federados). Não se pode dizer o mesmo para os consórcios públicos constituídos como associações públicas.
Autor: Thiago Cássio D’Ávila Araújo é procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).