"A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida."

por J. A. Almeida Paiva

O art. 2º do novo Código Civil reproduziu ipsis litteris o art. 4º do Código revogado (de 1916): “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

Temos aí dois temas a serem analisados: o conceito de nascituro e o dies a quo que fixa ao começo da personalidade humana.

O atributo jurídico da pessoa passa a existir a partir do momento em que o feto sai do ventre da mãe, quer por parto natural, induzido ou artificial, e tenha vida. É a vida que dá a personalidade jurídica da pessoa.

Até então, desde a concepção até o nascimento com vida, o embrião é um nascituro, gerado e concebido com existência no ventre materno; nem por isto pode ser considerado como pessoa. “A lei protege os interesses de um ser humano já concebido (óvulo fecundado), ordenando o respeito pelas expectativas daqueles direitos que esse ser humano virá a adquirir, se chegar a ser pessoa” , o que acontecerá, repetimos, somente após o nascimento com vida.

Lembramos que o nascituro, cuja existência é intra-uterina, não deve ser confundido com outra figura, a do natimorto que é a criança que nasceu morta. Ou seja, todo natimorto foi antes um nascituro, mas nem todo nascituro será um natimorto.

Vê-se então a diferença entre o nascituro, que foi gerado e concebido mas só existe no ventre materno, e a criança que já passou pelo nascimento com vida, já se consumou como pessoa. Esta segunda tem personalidade jurídica; o primeiro é apenas um nascituro com expectativa de direitos.

Não entramos aqui em questão religiosa, sociológica ou filosófica sobre a existência de vida uterina como ser humano, como pessoa. Nossa análise cinge-se ao direito material brasileiro. Como na lei civil, o marco inicial da personalidade humana é fixado pelo começo da vida, é importante fixar-se o conceito de nascituro.

Como diz Santoro-Passarelli , por efeito da instituição do nascituro, forma-se um centro autônomo de relações jurídicas, a aguardar o nascimento do concebido ou procriado, da criatura que provenha de mulher.

O professor Washington de Barros Monteiro, com a experiência de um grande civilista esclarece: “Discute-se se o nascituro é pessoa virtual, cidadão em germe, homem in spem. Seja qual for a conceituação, há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos. Mas para que estes se adquiram, preciso é que ocorra o nascimento com vida. Por assim dizer, nascituro é pessoa condicional; a aquisição da personalidade acha-se sob a dependência de condição suspensiva, o nascimento com vida. A esta situação toda especial chama Planiol de antecipação da personalidade”.

Para Goffredo Telles Jr, “os direitos da personalidade são os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, a autoria etc. Por outras palavras, os direitos da personalidade são direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta”

Caio Mario doutrina que liga-se à pessoa a idéia de personalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações , enquanto Haroldo Valadão esclarece que a personalidade é o conceito básico da ordem jurídica, que a estende a todos os homens, consagrando-a na legislação civil e nos direitos constitucionais de vida, liberdade e igualdade.

A personalidade deriva, portanto, da pessoa, razão pela qual Maria Helena Diniz nos ensina que, “primeiramente, imprescindível se torna verificar qual é a acepção jurídica do termo “pessoa” e ela mesma esclarece chamando a doutrina de Diego Espín Cánovas: “para a doutrina tradicional “pessoa” é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito. Sujeito de direito é aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer, através de uma ação, o não-cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na produção da decisão judicial”.

Vê-se, portanto, que a medida da personalidade é a capacidade. E não tratamos aqui de outros aspetos interessantes como os relativos às técnicas de fertilidade in vitro e do congelamento de embriões humanos, assim como dos conceitos relativos ao início da personalidade natural no direito comparado, que para certos sistemas jurídicos, como o húngaro, a concepção já dá origem à personalidade humana.

Muito embora existam duas correntes doutrinárias sobre o início da personalidade humana, a natalista e a concepcionista, o sistema positivo nacional adotou a primeira, que “reconhece o início da personalidade no nascimento com vida, reservada para o nascituro uma expectativa de direito”. No mesmo sentido é a doutrina de outros juristas de renome.

No sistema positivo brasileiro, reiteramos, a personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida, desde o momento em que o recém-nascido completou o nascimento e adquiriu vida autônoma, capaz de respirar independentemente da participação materna; todavia, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, isto é daquele que está para nascer, embora concebido, mas que ainda não é uma pessoa.

Objetiva foi Maria Helena Diniz ao doutrinar à luz do direito positivo brasileiro, com bastante propriedade, que “conquanto comece do nascimento com vida a personalidade civil do homem, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (arts. 353, 357, parágrafo único, 372, 377, 458, 462, 1718) , que permanecem em estado potencial. Se nascer com vida adquire personalidade, mas se tal não ocorrer nenhum direito terá.”

No direito sucessório, o art. 1.718 norma que “são absolutamente incapazes de adquirir por testamento o indivíduo não concebido”; mas, faz uma ressalva para “a prole eventual de pessoas designadas pelo testador e existentes ao abrir a sucessão (art. 1.718, in fine)”.

Diz a lei em seu art. 1.798, que “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” e o art. 1.799, I, norma que “na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder, os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir a sucessão”.

Temos duas situações distintas: na hipótese do art. 1.798, tanto na sucessão legítima como na testamentária os nascituros são aptos a suceder, tanto quanto as pessoas já nascidas.

Isto é, doutrina Giselda Maria Fernandes Novaes Hironka que “tanto podem ser herdeiros legítimos, testamentários ou mesmo legatários os indivíduos que já tivessem nascido quando no momento exato do falecimento do de cujus, bem assim todos os que já estivessem concebidos no mesmo momento”.

Se o feto nasce morto, não chega a adquirir vida. E como doutrina Giselda, sem vida autônoma “não irão tornar titulares de personalidade jurídica, falecendo-lhes a condição para adquirir a herança ou o legado que a lei lhes vinha protegendo”.

O feto, o embrião, o nascituro, tendo somente expectativa de direito, só poderá ser herdeiro se nascer com vida.

Questão interessante de direito é saber se com o falecimento do autor da herança, o nascituro herda de imediato, só pelo fato de estar concebido, recebendo a propriedade e a posse da herança.

Entendemos que isto não é possível por força do art. 2º do CC, segundo o qual, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”.

Por a salvo o direito do nascituro como previsto na norma ora comentada, quer dizer resguardar seus direitos se vier a nascer com vida.

Aberto o inventário, havendo capacidade sucessória de nascituro, sua legítima deverá ser preservada aguardando o nascimento com vida; se isto não ocorrer, os bens reservados irão para o monte; se o inventário terminar antes do seu nascimento com vida, e esta inexistir, far-se-á a respectiva sobrepartilha.

Com relação ao inciso I, do art. 1799, o ordenamento jurídico permite ao testador beneficiar o filho ou filhos, pouco importa se seja um ou mais, “ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”.

Exemplificando: se o testador “a” tem um amigo “b”, e este não tem filho(s) e sequer é casado, como também pode sê-lo, e na época do falecimento de “a”, “b” era vivo e depois teve filho (s) este(s) serão chamados à sucessão, desde que tenham nascido com vida; este parece ser o espírito da lei.

Em resumo, o nascituro tem direitos, pode ser contemplado em testamento e ter sua legítima garantida quando no ventre materno, mas só receberá a herança se nascer com vida.

Revista Consultor Jurídico

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