por Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda
O lúcido ministro do Colendo Supremo Tribunal Federal, Antonio Cezar Peluso, manifestou sua abalizada opinião na revista Diálogos & Debates, da Escola Paulista da Magistratura (revista nº 4, ano 5, páginas 7/11), a respeito de alguns pontos importantes da reforma do Judiciário revelando, com isso, a sua posição política sobre o tema.
Ao responder a duas perguntas sobre o Conselho Nacional de Justiça, uma, no entender do entrevistador, sobre “o absurdo de um soldado poder julgar um general” e, outra, sobre a opinião de juristas a respeito do CNJ não resolver o problema do Poder Judiciário, manifestou-se o senhor ministro quanto à primeira:
“Há aí um excesso de suscetibilidade. Os juízes têm de se desarmar, fazer a sua catarse, para poder progredir. É exatamente isso: ficamos preocupados demais com o que pode ferir a sensibilidade do outro e às vezes perdemos a visão do conjunto, o que aquilo afeta todo o sistema. O fato de ter um juiz de 1º grau participando da decisão de um grupo de quinze: mas ele é apenas um voto no meio de quinze!” (… omissis).
Quanto à segunda: “Eu mesmo fiz críticas como essa. Essa censura que me fazem, dizendo que mudei de ponto de vista, é injusta. Sempre fui claro. Examinando a crise do Judiciário, eu achava que a criação do Conselho era um instrumento válido, mas não o principal para resolvê-lo” (Revista cit. N.4/05-p. 8/9).
No que se refere à composição mista do órgão especial dos tribunais, metade por antiguidade e outra eleita, respondeu que a implantação “dependerá da regularização do Estatuto da Magistratura, porque não dá para funcionar sem uma regulamentação legal” (Rev.cit. p.9).
Está claro que o senhor Ministro vê o judiciário funcionando como um sistema fechado e o CNJ como um “instrumento válido” para administrar de cima o funcionamento desse sistema, com o objetivo de superar a morosidade da Justiça e ampliar o acesso a esta das camadas sociais mais baixas, ou seja, uma Justiça que não funcione somente para “a classe média e para um grupo de empresas” (Rev.cit. P.9) ainda que, no seu entender, não seja o CNJ o único instrumento para cumprir esses objetivos.
O mesmo pensamento político uniformizador também está presente quando o senhor Ministro defende a tese da necessidade de lei complementar federal (Estatuto da Magistratura) para regular o processo político administrativo interno dos tribunais do País.
Parece-me, pois, exato concluir que o senhor Ministro expressa um ideário político uniforme para a Justiça brasileira de maneira que esta venha a funcionar de norte a sul do País célere e eficiente, ou seja, ordenadamente progressista posto que recomenda, por exemplo, que os juizes “têm de se desarmar, de fazer sua catarse, para poder progredir” (trecho reproduzido acima). En passant: curiosa coincidência uma vez que este ideário é o mesmo que remonta ao ideário republicano positivista (filosofia) na direção de se considerar o Estado como um ente essencialmente prestador de serviço público.
Concordo com o senhor Ministro quando fala da necessidade do judiciário ser mais ágil, mas discordo dos meios positivistas que ele defende para se alcançar a agilidade desejada. Por certo que imbuído do mais justo propósito e do mais alto espírito público, penso que o senhor Ministro possa não ter se dado conta de que essa uniformização de condutas político-administrativas por meio de órgãos públicos instrumentais, geralmente os célebres e oligárquicos “conselhos populares” ou de “luminares”, não importa, existentes nas repúblicas socialistas, visa, na prática, executar uma política totalizante de permanente fiscalização e de contínuo gerenciamento da atividade pública por meio de requisições de informações, de abertura de procedimentos administrativos investigatórios, de intimidações veladas, policialescas até, que não raro acabam caindo no puro autoritarismo maníaco obsessivo, do tipo de um Javer, de um Torquemade.
As delações motivadas por interesses pessoais revanchistas, por interesses políticos imediatistas, até por simples prazer denunciador, com certeza, tomarão a pauta do CNJ. Sabe o senhor Ministro, mais do que qualquer outro, que é da essência humana a liberdade e exatamente por isso, paradoxalmente, o próprio ser humano busca o poder totalitário unificador, poder este que termina sempre de maneira trágica pela transformação daquilo que seria um instrumento, um meio, num fim em si mesmo. A história é tomada por exemplos dessa espécie.
A presente discordância com o ilustre Ministro paulista, portanto, não é de fim, mas de meio. O ideário político positivista unificador, na minha opinião, é um fantástico retrocesso político que entra em rota de colisão com os princípios políticos democráticos fundamentais postos na nossa Constituição Federal: a) forma de Estado: republicano; b) forma de governo de Estado: democrático; c)regime político: federativo; e d)exercício político dos órgãos dos poderes constituídos: autogoverno. Custou muitas lágrimas e infâmias sofridas superar o pensamento positivista que praticamente dominou o cenário político brasileiro no século passado (vide o exemplo paulista de 32). Desde 22, com os tenentes, até 1988, a filosofia da ordem e progresso dominou.
A Constituição Federal social democrata de 1988 veio para impedir a continuidade dessa perversa filosofia da eficiência do serviço público, desmontando o sistema centralizador das decisões políticas e constituindo um sistema político nacional aberto e democrátrico. Ao considerar como princípios pétreos a autonomia e independência dos órgãos públicos políticos (órgãos do poder- legislativo, executivo e judiciário) e o regime federativo (Estados), o fez exatamente para impedir o retrocesso ao antigo sistema político fechado. O judiciário, assim como os dois outros poderes, são sistemas abertos porque se autogovernam.
Eis a diferença que faz diferença. A causa da morosidade da justiça é muito mais profunda e é a determinante do volume extraordinário de demandas. A criação do CNJ, missão do senhor Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, como ele próprio declarou em entrevista na Folha de São Paulo, não resolverá o crucial problema que afeta o sistema judiciário: falta de dinheiro e de uma política social do Executivo que elimine a miséria do povo brasileiro, deixando de se aplicar tanto nessa política econômica de superávits primários.
Para mim o CNJ, a pretexto de vir para democratizar o judiciário, veio, na realidade, para unificar e centralizar o poder administrativo sobre o judiciário brasileiro, na contra-mão da história. Já está fartamente demonstrado que essa unificação e centralização dos poderes administrativos no CNJ, que pretende regular até mesmo matérias de exclusivo interesse das magistraturas estaduais como, por exemplo, o regime jurídico das promoções na carreira, interessa muito mais ao FMI e ao Banco Mundial do que às classes mais baixas.
O CNJ, para mim, retoma o princípio do “sistema fechado” de funcionamento do judiciário. Tanto isso é verdade que o atual Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sessão pública, decidiu, por maioria de votos, aguardar a eventual manifestação da sua Excelência, o Ministro Nelson Jobim, DD. Presidente do Colendo Supremo Tribunal Federal e do Egrégio Conselho Nacional de Justiça, a respeito da convocação do Tribunal Pleno e da realização de eleições para o Órgão Especial, ou então esperar a edição da Lei Complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura.
A Constituição Federal prevê órgãos públicos constitucionais de controle e fiscalização democrática dos juízos e tribunais, assim como das condutas dos agentes públicos políticos, no caso, os juizes. O principal e mais importante órgão de controle e fiscalização é o próprio Ministério Público, de sorte que a criação do CNJ era absoluta e constitucionalmente dispensável. Confundindo a pessoa física do agente público político ( juiz) com o órgão público político (juízo) a idéia positivista de um órgão administrativo superior partiu da premissa que os agentes públicos políticos (juizes) são autoritários e antidemocráticos e não têm o necessário discernimento do que seja interesse público, muito menos senso de responsabilidade social.
De certa forma, com todo respeito, é uma coisa de paternalismo humilhante. Eis o retrocesso político republicano positivista e por que não, jacobino, posto que foi exatamente esse o pensamento da burguesia revolucionária francesa contra a magistratura do Ancien Régime.
De qualquer forma me pergunto: como irá ficar, por exemplo, uma arbitrária representação junto ao CNJ contra a política orçamentária, ou contra a organização administrativa do próprio Supremo Tribunal Federal, ou até mesmo contra a demora de suas decisões? Desculpe-me a franqueza, mas que ficção ideológica é essa que põe nas mãos de apenas quinze homens o controle administrativo supremo de todos os juízos e tribunais do País, incluindo o próprio Supremo Tribunal Federal?
Gostaria que alguém me esclarecesse de que autoridade ôntica estão investidos esses quinze homens, por mais dignos e impolutos que sejam (e que efetivamente são), para ditar as regras administrativas a serem seguidas por todos os órgãos públicos políticos jurisdicionais do País? Será que ninguém atinou para a perigosa concessão desses superpoderes administrativos para um órgão, de certa forma, solto no ordenamento jurídico, mas acima dos demais poderes do Estado? Por que será que os homens esquecem, quando em nome da história jamais poderia ser esquecido, que o poder é altamente inebriante, sempre transitório, fugaz, e muda de mãos? No próximo biênio quem serão os próximos a compor o CNJ?
Por outro lado, o mesmo pensamento positivista centralizador e unificador aparece na exigência de lei complementar federal para disciplinar a atividade administrativa interna dos tribunais, em especial, com respeito à questão da convocação do tribunal pleno dos tribunais e das eleições internas para o órgão especial. Para o senhor Ministro este disciplinamento virá no bojo do Estatuto da Magistratura.
Afigura-me esta opinião política, com todo respeito, decorrente da confusão referida acima entre a pessoa física do agente público político (juiz) com o órgão público político de Estado por ele ocupado ( juízo ) . Para aquele é necessário um Estatuto disciplinador de seus direitos e deveres, sem dúvida, mas para este, enquanto órgão público político autônomo e independente, o único estatuto a ser obedecido é o da Constituição Federal.
O agente público político (juiz) é vitalício e inamovível do cargo. O órgão público político é autônomo e independente, portanto, se autogoverna! Diante disso me pergunto: como pode uma lei complementar cujo objeto é regular direitos e deveres dos magistrados (Estatuto da Magistratura Nacional) dispor sobre o exercício da política interna administrativa dos tribunais do País? E as diferenças locais? E a federação? E a autonomia? E o princípio do autogoverno? Uma lei complementar nesse sentido, além de sair de seu objeto(estatuto da magistratura) permitirá que o legislativo e o executivo se intrometam na economia interna dos tribunais.
Não é, pois, temerário esse pensamento político unificador do senhor Ministro que alimenta a idéia daqueles que insistem em dizer que é preciso lei complementar para autorizar a convocação do tribunal pleno dos tribunais? Se fosse para aguardar a lei complementar, por que extinguiram tão rápido os Tribunais de Alçada e agora se impede, de fato, a convocação do Tribunal Pleno? É constitucional e democrático que se promova a unificação dos tribunais, instale-se o CNJ, mas não se permita aos novos integrantes dos tribunais de justiça estaduais de participarem, como é de direito constitucional, da administração pública do próprio tribunal?
Por derradeiro, penso, com todo respeito, que há um equívoco do senhor Ministro quando fala que há um excesso de suscetibilidade por parte dos juízes ao verificarem que entre os membros do CNJ existe um juiz de primeiro grau. Presumo que para os juizes não é esta a questão principal. Todos os membros do CNJ são merecedores do mais elevado respeito e consideração da Magistratura Nacional. O fato significativo e surpreendente é o poder que foi concedido aos quinze homens que compõem o CNJ.
Senhor Ministro Antonio Cezar Peluso, Vossa Excelência, além do excelso juiz que sempre foi e é, um líder, paulista, de uma grandeza de espírito e intelecto que muito dignifica a cultura de nosso Estado, a minha geração, que é a sua também, sofreu e muito com o autoritarismo, por isso, sinceramente desculpe-me pela divergência, mas é que temo, é medo mesmo de juiz, como alerta Hannah Arendt, a expansão do poder político (CNJ), em vez da expansão do corpo político (autonomia dos tribunais).
Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Revista Consultor Jurídico