A questão da imunidade parlamentar

Os escândalos de corrupção e pagamento de propinas que envolvem os partidos políticos que compõem a base aliada do Governo Federal no Congresso Nacional a partir da semana passada vêm tomando contornos “quase surreais”.

Como se já não bastasse a gravidade dos fatos que estão sendo apurados pelas CPIs estamos a ver estarrecidos e perplexos deputados e senadores comparecerem às CPIs e outros órgãos de investigação do Congresso Nacional como se estivessem a participar de um ensaio de uma comédia teatral.

Isso aconteceu no depoimento do ex-ministro da Casa Civil, o Deputado Federal José Dirceu, ao Conselho de Ética da Câmara (quarta-feira, dia 03/08), ao negar veementemente que teve qualquer contato com representantes da Portugal Telecom (maior operadora de telefonia fixa e móvel em Portugal). De um lado o Deputado denunciante, com larga experiência no Tribunal do Júri, no exercício de sua profissão como advogado criminalista, que denuncia de forma irônica, questiona sarcasticamente, atende ao telefone celular e lê jornal durante o depoimento de seu colega parlamentar. De outro o Deputado politicamente correto, que se mostra indignado com a postura de seu colega de tribuna, mas mente descaradamente ao Conselho de Ética e é desmascarado ainda durante o seu depoimento pelas declarações dadas por Marcos Valério após seu depoimento na Procuradoria-Geral da República. Há tempos vários segmentos da sociedade política brasileira vêm pugnando por uma revisão da imunidade parlamentar.

A chamada imunidade parlamentar é constituída por um conjunto de direitos atribuídos a parlamentares, estabelecido no art. 53 da Constituição Federal, que tem como objetivo principal e fundamental garantir aos titulares dos mandatos de deputado federal e senador a liberdade absoluta de expressão para o pleno desenvolvimento das funções que lhes são atribuídas pela Constituição.

Embora a imunidade parlamentar seja um direito fundamental do parlamentar e tenha seu objetivo mais nobre centrado num conjunto de direitos constitucionais que garantam aos representantes do povo brasileiro (deputados federais) e aos representantes dos estados da federação (senadores) condições indispensáveis à liberdade do exercício de seus mandatos, pode certamente ser instrumentalizado de modo negativo, ou seja, para garantir o direito ao deputado de faltar com a verdade impunemente perante um órgão investigativo do Congresso Nacional.

Enquanto alguns convocados pela CPI para deporem correram ao Supremo Tribunal Federal com pedidos de habeas corpus preventivos, com o intuito de serem ouvidos como investigados e não como testemunhas, para não correrem o risco de serem presos em flagrante; deputados mentem de forma descarada perante o órgão investigativo do Congresso Nacional sem qualquer preocupação de serem presos, ou no mínimo, processados criminalmente por suas declarações inverídicas.

Não obstante Deputados e Senadores sejam invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (art. 53, da Constituição Federal), no exercício de suas funções parlamentares, devemos observar que a inviolabilidade dos deputados se refere expressamente às vertentes da responsabilidade civil e penal, mas não à responsabilidade política a que estão sujeitos.

No caso de deputados e senadores que vêm faltando com a verdade perante às comissões parlamentares de inquérito, o que tem dificultado e obstaculizado sobremaneira os trabalhos de investigação das CPIs, cabe ao Congresso Nacional tomar as medidas jurídico-disciplinares cabíveis contra esses parlamentares, para definitivamente acabar com a idéia de impunidade que ultimamente paira sobre os membros dos órgãos de representação política do nosso país.

Se a Constituição Federal, em seu art. 53, garante a imunidade parlamentar e o foro privilegiado para Deputados e Senadores exercerem com absoluta liberdade de expressão, isenção e responsabilidade política seus deveres constitucionais é preciso que os parlamentares revejam, com os olhos voltados para Carta Magna, o real significado da palavra imunidade; isso porque, imunidade parlamentar de modo algum deve ser interpretada como impunidade parlamentar.

Observe-se aqui que o Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) somente ousou fazer as denuncias que desencadearam a maior investigação parlamentar, desde o impechement do ex-Presidente da República Fernando Collor de Mello (1992), em razão da imunidade parlamentar que possui.

Se por um lado a absoluta liberdade de expressão do parlamentar representa, nos termos da nossa Constituição, uma garantia constitucional para o exercício pleno das funções legislativas, não podendo o Deputado ou o Senador ser punido civil e criminalmente pelas opiniões, palavras ou votos pronunciados no âmbito de sua função constituição; por outro o legislador constituinte foi um tanto quanto paternalista ao estender os efeitos da imunidade aos crimes comuns praticados por Parlamentares. Não nos referimos aqui ao foro privilegiado, que também a nosso ver constitui uma garantia constitucional ao pleno exercício das funções legislativas, ou seja, um direito fundamental do parlamentar, mas sim, à impossibilidade de parlamentares serem presos por crimes comuns após terem sido diplomados (§ 2.º, art. 53 da Constituição Federal), à exceção de prisão em flagrante por crime inafiançável, como por exemplo crimes ambientais, e a possibilidade de ser suspensa a ação penal instaurada contra Deputado ou Senador, por crime comum praticado após a diplomação do parlamentar (§ 3.º, art. 53 da Constituição Federal).

Nesse sentido a revisão de alguns “direitos fundamentais do parlamentar” previstos no art. 53 e parágrafos da Constituição Federal se aproximariam um pouco mais da mens constitucionalis e do espírito do atual Estado Constitucional Democrático de Direito Brasileiro.

Omar Kadri
Advogado, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra – Portugal, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais – IBEC

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