A Questão do Desarmamento

Damásio de Jesus

O Governo Federal, em 1997, com o objetivo de reduzir a delinqüência urbana, a chamada “criminalidade de massa”, fez entrar em vigor a Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro – hoje revogada –, criando o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), transformando a contravenção de porte ilegal de arma de fogo em crime, regulando sua aquisição e posse, e dando outras providências, medida que reclamávamos desde 1995.

A Lei n. 9.437/97, a chamada “Lei das Armas de Fogo”, entretanto, continha inúmeros erros. O legislador, por essa razão, criou a Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento), já em vigor, outra vez dispondo sobre o registro, porte e comercialização de armas de fogo, definindo delitos e disciplinando o Sinarm.

O Estatuto, sintomaticamente denominado “do Desarmamento”, praticamente extingue o direito de o cidadão possuir arma de fogo, salvo raríssimas exceções.

O registro obrigatório da arma, que concede o direito ao seu proprietário de mantê-la exclusivamente dentro de sua residência (art. 5.º, caput), exige tantos requisitos que a sua obtenção se torna impossível para a grande maioria da população. Requer:

1.º – demonstração de efetiva necessidade (art. 4.º, caput);

2.º – “comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral (…)” (art. 4.º, I);

3.º – demonstração de que não está sendo objeto de inquérito policial ou processado criminalmente (art. 4.º, I);

4.º – “apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa” (art. 4.º, II);

5.º – “comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo (…)” (art. 4.º, III).

Além disso, o certificado de registro, a ser expedido pela Polícia Federal, deve ser “(…) precedido de autorização do Sinarm” (art. 5.º, § 1.º), exigindo-se, em relação a alguns requisitos, renovação periódica (art. 5.º, § 2.º).

O porte de arma de fogo é proibido (art. 6.º, caput), salvo raras exceções, atendendo-se à natureza de certas funções públicas e atividades privadas (incisos do art. 6.º).

A burocracia vai tornar a obtenção do registro tão trabalhosa que afastará a pretensão do cidadão comum de possuir arma de fogo, o que certamente está na mira do legislador. Desarmar a população civil, a ordeira e a criminosa, é preocupação de todos os povos. As Nações Unidas têm insistido nas “campanhas de sensibilização pública sobre o controle de armas de fogo” (Public awareness campaigns on firearms regulations), conforme se verificou no 5.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, realizado em Viena, Áustria, em maio de 1996 [1] . E no 7.º Período de Sessões, também realizado em Viena, Áustria, em abril/maio de 1998, a Organização das Nações Unidas (ONU) voltou a ressaltar a importância das campanhas de desarmamento e dos controles do comércio e do uso de armas de fogo [2] . Nesse evento, fomos agraciados pelo Canadá com um pergaminho de agradecimento pela nossa participação na elaboração de um Projeto de Resolução, de autoria do Japão, Brasil e Canadá, visando à instituição de medidas sobre comércio, posse e porte de armas de fogo [3] . Durante os debates, entretanto, em momento algum, foi esquecida a necessidade de, desarmando-se a população civil, dar à Polícia meios reais de prevenir a criminalidade.

Não devemos nos iludir com o milagre do Estatuto solitário. A lei é o instrumento de que se vale o Estado para impor as suas determinações. Isolada, porém, não produz a eficácia desejada. Nesse campo, não adianta ter boas idéias nem boas leis. É preciso concretizá-las, executá-las com seriedade, eficiência e responsabilidade. O desarmamento popular só pode ser imposto quando se tem uma Polícia apta a garantir a segurança social. Ao lado do “Estatuto do Desarmamento”, deveria existir o “Estatuto da Polícia”, para conceder a esse órgão instrumentos reais e capazes de concretizar a sua missão de prevenir a criminalidade.

É necessário tornar rígida a fabricação, o comércio, a aquisição, a posse e o porte de armas de fogo, finalidade da Lei n. 10.826/2003. O simples desarmamento popular, porém, sem uma Polícia preventiva efetiva, é inócuo e pouco contribui para a redução da criminalidade. Se o legislador pretende que ninguém possua arma de fogo, a não ser os titulares de determinadas funções públicas e atividades privadas, é necessário que garanta a segurança pública. É preciso desarmar a população ordeira e, ao mesmo tempo, dotar os órgãos de prevenção de instrumentos hábeis para a proteção dos cidadãos. Desarme-se o povo, mas arme-se a Polícia de meios suficientes para a concretização de sua missão constitucional. Só desarmar a população, sem garantir a sua segurança, é armar o lobo e desarmar o cordeiro.

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[1] Nações Unidas, doc. E/CN. 15/1996/14, 16.4.1996; Report on the Fifth Session, United Nations, Commission on Crime Prevention and Criminal Justice, New York, 1996, Suplemento n. 10, p. 26 e 58.

[2] Report, cit., p. 27, n. 8.

[3] Criminal Justice Reform and Strengthening of Legal Institutions: Measures to Regulate Firearms, Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal, Viena, 16.4.1996.

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