A Rebelião dos Juízes

Renato Luiz Mello Varoto*

No cruzar de lanças que representou o debate para garantir uma previdência diferenciada a magistrados e ministério público, e enquanto permanece totalmente lacrada a “caixa-preta” do Poder Judiciário, denunciada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, pululam em meio ao povo dono legítimo do poder dúvidas, e graves, sobre qual afinal o papel e o custo- benefício de tais agentes do Direito. Serão eles compatíveis, e até mesmo necessários, em uma sociedade, onde se luta para tentar garantir o pão de cada dia e o cidadão é o “lixo” do Estado? Onde se mandam inocentes para as cadeias a custos superiores a oitocentos reais, enquanto o trabalhador ganha duzentos e quarenta por mês, após oito horas de trabalho?

Não se quer, tampouco permite o espaço, amplo questionamento da matéria. Nenhuma dúvida sobre a necessidade de juízes em um Estado Democrático. O que se questiona é o atuar de alguns. Por terem a liberdade do julgar, os juízes, têm, por unidade umbilical, o compromisso ético da Verdade, da Justiça e do Direito. Elementos, aliás, que adquirem perigosa fragilidade nas figuras de procuradores e promotores, livres em seus vôos acusatórios. Alguns, poucos é verdade, fazendo-o festiva e feericamente.

O de que aqui se pretende falar é qual Juiz quer e precisa a sociedade brasileira. Constatando a falta de eficiência do Poder Judiciário o ministro Sepúlveda Pertence, presidente do Tribunal Superior Eleitoral reconhece o “assustador decréscimo de credibilidade na Justiça”. Acentuado: “tenho insistido, reiteradamente, na evidência palmar de que, muito mais do que os outros poderes do Estado democrático, o Judiciário cujos agentes não derivam sua investidura do voto popular e periódico e nem devem depender dele tem sua legitimidade condicionada à credibilidade social de que seja titular”. 1

O Brasil, praticamente de joelhos, clama por um Judiciário forte, independente, justo e, sobretudo, real e humano.

As indagações são muitas e as respostas cada vez mais difíceis, diante de uma mídia que nos revela, e nos mais das vezes prova, Ministros de Tribunais Superiores envolvidos em venda de benesses jurídicas e até mesmo no pueril crime de assédio sexual, juízes vendendo sentenças, alvarás de liberação de bens e créditos, homologação de cálculos milionários, homologação de flagrantes desprovidos dos mais elementares requisitos de legalidade, afora outros pecadilhos, quem sabe de menor porte. Como dito, ficam aqui excluídos, – quem sabe tema de outro trabalho os orgasmos acusatórios de certos agentes do MP, sempre sob o argumento canalha do “quem não deve não teme”, e vão entupindo nossas prisões, sem ofertar qualquer alternativa, no mínimo, ética, para a situação que criam. E o fazem conscientes, plenamente conscientes, da atividade desagregadora, anti-social, anti-jurídica e anti-moral que praticam. Mas, como dito, o MP não é, aqui, o tema.

Afinal que Juiz pede o povo brasileiro? Aquele povo que os paga e que apenas quer que se cumpram as leis, garantindo a cada cidadão os seus próprios direitos. O povo quer um Juiz que lhe garanta a prestação jurisdicional que lhe é devida.

Mas que juiz?

Será aquele Julgador que antes de ditar sua sentença quer saber o que publicará a mídia? Em outras palavras, aquele atua para ser espaço na imprensa, ainda que seja a imprensa marrom! Qualquer observador atento poderá, em muitos casos, antever a decisão judicial apenas acompanhando o noticiário, especialmente o das televisões. Alguns juizes deitam seus pensamentos sobre o da imprensa. A imprensa decide, eles assinam.

Será aquele Magistrado cujas manifestações são do tipo “acolho a manifestação do MP”, “como requer o MP”, “nos termos da promoção retro” e outras tantas fórmulas do gênero? Fórmula que, por não conterem precisão Matemática, conseguem resultados tão desastrosos, quanto desprovidos de sustentação jurídica. Revelando, com lamentável freqüência, pecaminosa submissão aos interesses do MP.

Será aquele Juiz que mantém suas decisões “por seu próprios fundamentos”? Ora por que tem medo de rever o que disse, ora porque a decisão é de um estagiário e não sabe como explicá-la. Ora, por final, para não cair na tentação de, humildemente, afastar-se da auto-imposta condição de misto de super-homem e Deus.

Será aquele Julgador que publica sentenças paridas no berçário do conhecimento jurídico que representam alguns estagiários a quem, como se sabe, é conferido o divino poder de decidir? Sentenças que vão produzir efeitos, muitos dos quais causadores de danos irreparáveis no mundo jurídico que, embora muitos esqueçam, integra o mundo dos fatos e, por conseqüência o mundo dos homens?

Será aquele Juiz-Pilatos que desprovido de qualquer humanidade limita-se a “lavar as mãos”. Pensa isentar-se, de culpa, mas acaba pecando, no mínimo, em dolo eventual.

Será como repreende o Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Correa, ao gizar: “o Judiciário tem diversos defeitos, como a juizite, doença que acomete principalmente os magistrados mais novos. Eles chegam cheios de vontade, achando-se super-homens. Muitas vezes tomam decisões exóticas, que acabam reformadas”. 2

Não definitivamente não é desse tipo de julgadores que estamos falando. É verdade, que embora sendo uma minoria, conseguem fazer muito barulho, destruir famílias inteiras e, repita-se, causar danos absolutamente irreparáveis.

O que de aqui se fala, por certo, é daquele Magistrado que tem poder de decidir, mas não se vê como Deus. E, por isso mesmo, pode errar, pode equivocar-se, pode falhar, mas não pode ser injusto, imoral, perverso, ilegal e desumano. Não pode ser negligente, imprudente ou imperito. A ele não se permite a culpa. Intolerável o dolo.

Aliás, como bem alerta o arcebispo de Porto Alegre, dom Dadeus Grings: “o Judiciário, como está estruturado peã por falta de humildade ao não reconhecer que também ele está cercado de fragilidade. Diz-se, à boca pequena, que o juiz, ao assumir o cargo, tem consciência de ser o próprio Deus. Ninguém pode interferir no seu campo de ação”. E logo acrescenta: “É preciso poder, num regime democrático, substituir também juízes, que se revelam, no seu labor cotidiano, ou incompetentes ou ideologicamente comprometidos. Esse controle externo não deveria nem ser feito pelo Judiciário, mas por entidade neutra, sem se aventurar em dar sentenças, quanto ao conteúdo dos processos, cuja competência é exclusiva do próprio judiciário”. 3

O agir com dolo, inclusive o eventual, é prática inaceitável em quem admitiu usar a toga e dela fazer não apenas um mecanismo de controle social, mas a garantia de uma sociedade democrática, justa e humana, onde os homens não sejam, como vem acontecendo, em crescimento geométrico, tratados como pestilentos animais e não cidadãos. O dolo permitindo esquecer que num Estado Democrático de Direito só há um dono do poder: o povo. É crime, ainda que não tipificado, hediondo e sujeito à revolta da sociedade, transformar o povo em razão de desprezo, escárnio e repúdio.

Mas voltando a pergunta; afinal que julgador quer o povo brasileiro?

A resposta não é simples, mesmo não pretendendo ultrapassar limites jornalísticos. Somente se traduzirá, aqui, o medo e a angústia que fazem com que o povo tema o Poder Judiciário e o Ministério Público, tomando-os como inimigos com alto poder destrutivo. E não pode ser assim. Um e outro têm de ser vistos como garantias dos princípios constitucionais e, portanto, do Estado que, em Assembléia Nacional Constituinte foi definido através da Constituição de 1988.

Assim sendo, ainda na tentativa de encontrar uma resposta, importa salientar que o presente registro não tem pretensões filosóficos ou doutrinárias.

Um Juiz precisa antes, e acima de tudo, estar axiologicamente alicerçado em valores onde não haja espaço para sentimentos menores ou arroubos de autoritarismo; para a mesquinhez da vingança ou do proveito pessoal ou de grupos; para a covardia representada pelo medo de enfrentar os fortes ou da maldade de atacar os fracos. A lista é longa, mas pode ser sintetizada na necessidade de ser o Julgador dono de uma consciência limpa, soberana, independente e com uma escala de valores ético-morais-jurídicos adequados a seu tempo-espaço.

Uma boa resposta pode ser encontrada na indignada manifestação do advogado e professor em Ribeirão Preto, CÉSAR AUGUSTO MOREIRA, contra a formatação policialesca que vem tomando o Judiciário Brasileiro. É dele: “a coragem deixou de ser uma marca indelével dos nossos juízes. Há algum tempo os juízes têm medo de dar a cada um o que é seu. Medo de condenar quando tiver que fazê-lo. Medo de, acima de tudo, absolver quando tiver de ser feito” ( grifo nosso). 4

As vinhas da ira jamais podem, como freqüentemente ocorre, nutrir o processo de julgamento e sentença. Ao revés, é preciso não esquecer que a pena existe para atender fins sociais, dirigindo-se ao bem comum, mas sempre respeitando o homem em sua sócio-individualidade. O bom Juiz não faz da aplicação implacável da lei, inclusive com o desconhecimento do princípio da proporcionalidade, mero escovão de longos fios a varrer o mundo, dele excluindo, sem qualquer princípio de equidade, desviantes, desviados e delinqüentes, como se vinhos da mesma pipa fossem. Misturam joio e trigo; azeite e vinagre; açúcar e sal.

O Julgador íntegro não perde a humildade em reconhecer o erro da sociedade para poder entender o comportamento do acusado, aliás, inúmeras vezes irresponsavelmente agredidos.

O Magistrado que o Brasil quer hoje deve ter a mesma grandeza que, em 27 de setembro de 1979, teve o eminente magistrado Moacir Danilo Rodrigues para assim decidir:

“Marco Antonio, apesar da importância do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino dos Céus. A lei é injusta. Claro que é, mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não é. Por isso: determino o arquivamento do processo deste inquérito”.

A questão, portanto, exige objetividade: precisamos de julgadores que não se vendam e que não se comprem. E os há, basta que todos os juízes sejam de tal matiz.

No dizer do bom e velho gaúcho: é preciso fincar o facão no toco e garantir que nossos juízes apreendam a conviver com um universo em mutação. Basta ser livre, competente, corajoso e humano.

Rebelem-se, sendo humanos e não deuses, afinal os cidadãos querem apenas respeito.

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1 Diário Popular, Pelotas, 18 de agosto de 2003, p. 13.
2 VEJA. Ed. Abril, Ano 36, número 1818, 03 de setembro de 2003, p. 12.
3 Zero Hora, Porto Alegre, 02 de setembro de 2003, ed. 13891, on line.
4 MOREIRA, César Augusto. Para ser Juiz é Preciso Ter Coragem…, Boletim do IBCCrim, ano 11, nº 125, abril, 2003, p.12 .

* Advogado e jornalista

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