A receita federal e seus cartórios cibernéticos

Eduardo Piza Gomes de Mello

O presente trabalho tem por finalidade analisar e discorrer acerca da regularidade jurídica da instituição de Certificados Eletrônicos da Secretaria da Receita Federal e do credenciamento de Autoridades Certificadoras para sua emissão, através da Instrução Normativa SRF no. 156 de 22.12.1999.

Na prática, esta instrução normativa institui Cartórios Cibernéticos para conferir validade jurídica – através da emissão de Certificados Eletrônicos – às declarações anuais de imposto de renda enviadas pela rede mundial de computadores – internet.

Isto posto, impõe-se preliminarmente um breve comentário da Instrução Normativa expedida pelo titular da Secretaria da Receita Federal e a verificação do atendimento aos requisitos legais de validade da norma. Passo posterior é o de apreciar as imbricações da norma sob exame com outras disposições administrativas ou diplomas legais de superior hierarquia, haja vista que a matéria regulada pela instrução normativa, além de ter residência no Direito Administrativo, espraia-se pela seara da Informática Jurídica e do Direito Notarial, dentre outras.

Aliás, a Informática Jurídica ainda dá seus primeiros passos no direito positivo brasileiro, de modo que qualquer ato ou análise estão indelevelmente marcados pela sua provisoriedade e transitoriedade, até que haja melhor e maior definição de conceitos e conformação dos institutos jurídicos daquela especialidade. Por ora, é certo, os fato hão que ser apreciados á luz do que as normas em vigor oferecem.

I.- Das disposições da Instrução Normativa 156/99
A Instrução Normativa no. 156, de 22.12.1999, publicada no Diário Oficial de 27.12.1999 e expedida pelo Senhor Secretário da Receita Federal institui Certificados Eletrônicos para serem usados por pessoas físicas (e-CPF) e por pessoas jurídicas (e-CNPJ), no relacionamento por meios eletrônicos destes com a Secretaria da Receita Federal – SRF (artigo 1o.). Doravante, os serviços desenvolvidos pela SRF para a Internet serão priorizados àqueles que possuem Certificados Eletrônicos (artigo 5o). Vale aqui ressaltar que as declarações anuais de ajuste de imposto de renda por pessoas física e jurídica pela via de Internet, que têm obtido enorme adesão dos contribuintes ano a ano, são típicas relações por meio eletrônico entre contribuinte e SRF.

Segundo definição da IN 165/99 o Certificado Eletrônico dá autenticidade aos emissores e destinatários – usuários e SRF – dos documentos eletrônicos, com privacidade e inviolabilidade (art. 2o., inciso II), e serão expedidos por Autoridade Certificadora (art. 2o., inciso III), a qual recebe este credenciamento pela SRF (art. 2o., inciso IV).

A identificação e autenticação das pessoas que assinam os documentos eletrônicos serão feitas pela Autoridade Certificadora, através do sistema cifrado de comunicação assimétrico – ou seja: utilização de duas chaves, uma pública e outra privada. Tais chaves são fornecidas pela Autoridade Certificadora (art. 2o., incisos VII, VIII, IX e X). Vale dizer que a figura da Autoridade Certificadora passa a intermediar a relação usuários – SRF. A assinatura digital (artigo 2o., inciso X) permite ao usuário declarar sua autoria no documento.

Os artigos 3o. e 4o. da IN SRF 156/99 estabelecem que os documentos eletrônicos autenticados através da Autoridade Certificadora – sejam estes do usuário ou da SRF – têm validade jurídica e de prova, como que se fossem originais, emitidos em papel e firmados por meios convencionais. Perdem o valor legal aqueles documentos eletrônicos assinados digitalmente por usuários com Certificado Eletrônico revogado ou com data de validade vencida.

Os artigos 7o. a 10 regulam as condições do credenciamento da Autoridade Certificadora, que pode ser pessoa jurídica de direito público e privado (artigo 2o. inciso III), com corpo técnico de comprovada experiência na área de segurança de dados e informações (artigo 8o., inciso III), idoneidade fiscal, financeira e profissional (artigo 8o., inciso iv), e dispor de instalações adequadas (artigo 8o., inciso V).

A habilitação para obtenção do credenciamento e o seu pedido de renovação deverão seguir os procedimentos dispostos no anexo I da Instrução Normativa (artigos 7o. e 9o.). O prazo do credenciamento é de quatro (4) anos (artigo 7o.)

Dentre as atribuições da Autoridade Certificadora (artigo 11) está a de emitir e revogar de ofício ou a pedido os certificados, oferecer condições para os usuários terem acesso e conhecimento dos procedimentos de certificação e informações de certificados emitidos e revogados (incisos I, II, V, IX) .

Cabe também à Autoridade Certificadora arquivar por 10 (dez) anos a documentação referente à administração dos certificados, contratar auditoria independente para verificar seus próprios serviços, permitir acesso de Auditores da SRF, disponibilizando-lhe documentação, para auditorias e se manter atualizado com os recursos de informática oferecidos no mercado internacional, (incisos X, XII, XI e XIII)

Relativamente às obrigações da Autoridade Certificadora em relação à segurança da transmissão e confidencialidade dos dados, compete-lhe: em caso de comprometimento de segurança de sua chave privada solicitar revogação do certificado de credenciamento (inciso IV) e restringir a solicitação de informações aos usuários de dados necessários para o processo de certificação (inciso VI).

Vale também ressaltar que dentre as condições para a obtenção do credenciamento (artigo 8o., inciso VIII), para Autoridade Certificadora a pessoa jurídica habilitante deve disponibilizar, nos equipamentos servidores, somente serviços indispensáveis à operação de certificação, de modo a reduzir vulnerabilidades dos sistemas.

Por fim, no artigo 23, a IN SRF 156 determina como foro judicial o local onde está estabelecida a Autoridade Certificadora para dirimir controvérsias com os usuários dos Certificados. A instrução normativa entrou em vigor a partir da sua publicação, em 27.12.1999 (artigo 24).

II.- Da validade da norma administrativa
A fundamentação legal que confere competência ao Secretário da Receita Federal para expedir esta Instrução Normativa é o artigo 190, incisos III e IV do Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal, Portaria no. 227 de 03.09.1998, expedida pelo Sr. Ministro da Fazenda, a saber:

Art. 190. Ao Secretário da Receita Federal incumbe:
III – expedir atos administrativos de caráter normativo sobre assuntos de sua competência;
IV – promover a modernização da SRF;

Pelo exposto, é incontroverso que a implantação de sistemas informatizados e serviços através da Internet significam a promoção da modernização na SRF, dada a facilidade de acesso por estes meios eletrônicos. Igualmente, a expedição de atos administrativos – tais como instrução normativa – oferece, “prima fatie”, legalidade ao ato expedido, impondo-se, neste caminho lógico, perquirir como questão de fundo se a matéria regulamentada é assunto de competência do Secretário da Receita Federal.

O que a IN SRF 156/99 regulamenta é: a) a instituição dos Certificados Eletrônicos, que confere validade jurídica de prova a documentos assinados eletronicamente como se fossem documentos originais, em papel e firmados pelos meios convencionais e b) a delegação da competência a Autoridades Certificadoras para emitirem e administrarem certificados eletrônicos.

Portanto, impõe-se que haja previsão legal para que o Secretário da Receita Federal tenha no rol de assuntos sobre sua competência as matérias que regulou na citada IN SRF 156/99. Em nova análise do artigo 190 do Regulamento da Receita Federal, Portaria MF no. 227/98 pode-se aferir que no inciso VII compete àquela autoridade:

“VII.- aprovar acordos, ajustes, convênios e contratos para realização de estudos, pesquisas, serviços, compras e obras de interesse exclusivo da SRF a serem celebrados pelo Coordenador-Geral da COPOL, pelos Superintendentes da Receita Federal ou pelos Delegados da Receita Federal de Julgamento, bem assim ratificar os atos de dispensa e de reconhecimento de situação de inexigibilidade de licitação praticados por essas autoridades”

Assim também, no artigo 1o. do mesmo Decreto 227/98, incisos I, IV, XI e XIII estão previstas dentre as competências da Secretaria da Receita Federal, cujo Secretário é o seu titular, o que segue:

Art. 1º A Secretaria da Receita Federal, órgão específico singular, diretamente subordinado ao Ministro de Estado da Fazenda, tem por finalidade:
II – propor medidas de aperfeiçoamento e regulamentação e a consolidação da legislação tributária federal;
IV – estabelecer obrigações tributárias acessórias, inclusive disciplinar a entrega de declarações;
XI – promover atividades de integração entre o fisco e o contribuinte e de educação tributária, bem assim preparar, orientar e divulgar informações tributárias;
XIII – celebrar convênios com órgãos e entidades da Administração Pública Federal e entidades de direito público ou privado, para permuta de informações, racionalização de atividades e realização de operações conjuntas;

Em análise menos atenta pode-se inferir que a IN SRF 156/99 estaria respaldada pelos enunciados normativos acima, vez que foram contemplados: a modernização da SRF, os contratos com pessoas jurídicas de direito privado e público para racionalização de atividades; a integração entre o Fisco e o Contribuinte e o disciplinamento da entrega de declarações, entre outros.

Mas, como acima já referido, a IN SRF 156/99 adentra por outras áreas do direito para regular outras relações que aquelas restritas à administração de órgão público. Concluir-se pela legalidade da IN seria demasiado prematuro e plenamente equivocado sem que igualmente se apreciasse por onde os seus desdobramentos se estendem.

III.- A IN SRF 156/99 e o Princípio da Legalidade
A Administração Pública rege-se pelos princípios enunciados no art. 37 da Constituição Federal, cuja redação, de acordo com as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional no. 19, de 04 de junho de 1998, é a seguinte:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

No que respeita ao princípio da legalidade, o magistério de Celso Ribeiro Bastos, diz que: “representa um marco avançado do Estado de Direito, que procura jugular os comportamentos, quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. … No fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe são impostas por uma outra via que não seja a da lei.” (Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva, 13a. Edição, pagina 172).

José Afonso da Silva, in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros, 8a. Edição Revista, página 372, confirma os limites da regulamentação: “O princípio é o de que o poder regulamentar consiste num poder administrativo no exercício de função normativa subordinada, qualquer que seja seu objeto. Significa dizer que se trata de poder limitado. Não é poder legislativo; não pode pois criar normatividade que inove a ordem jurídica.

Por tais conclusões doutrinárias, não se admite, neste caso, que a IN SRF 156/99 possa contrariar qualquer norma em vigência, de hierarquia superior, sob pena de estar maculando o Princípio da estrita Legalidade, o qual a Administração Pública deve observar por preceito constitucional.

Mas, a realidade se mostra outra. Partindo-se para a análise dos artigos 3o. e 4o. da IN SRF 156/99, é de fácil entendimento que os documentos por ela criados – Documentos Eletrônicos – são considerados “originais e têm o mesmo valor comprobatório daqueles emitidos em papel e firmados pelos meios convencionais”. Seria de se supor que estando a IN de acordo com as normas legais, teria poderes para criar documentos e lhes dar valor de prova como se originais fossem. Todavia, esta suposição é errônea!

A Constituição Federal, em seu artigo 236, regula os serviços notariais, os quais são exercidos em caráter privado e por delegação do poder público, “in verbis”:

Art.236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público.
§ 1º – Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º – Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º – O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

A Lei no. 8.935 de 18.11.1994, que regula as atividades dos notários, dá função exclusiva aos Tabeliões de Notas para autenticar documentos e reconhecer assinaturas, “in verbis”:

Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade:
IV – reconhecer firmas;
V – autenticar cópias.

Ou seja, a mais ninguém – segundo a Lei – é permitido autenticar documentos e reconhecer firmas.

Surge, então, uma questão de conceito: o documento eletrônico é igualável ao documento emitido em papel e firmado pelos meios convencionais, como estabelecido no artigo 3o. da IN SRF 156/99?
Embora, como já dito, não se tenha ainda definições e contornos claros sobre o assunto, há um acórdão do TRF da 2a. Região que entende ser favorável a concessão de imunidade ao CD ROM, a exemplo do que ocorre com o livro impresso, reconhecendo uma equiparação do documento eletrônico ao documento impresso em papel:

Origem: TRIBUNAL: TRF2
Decisão: 18-03-1998
PROC: REO NUM: 0202873 ANO: 1998 UF: RJ TURMA:4
REMESSA EX OFFICIO
Data da Publicação 18- 03-999 – DJ PG: 120
Relator: – JUIZ ROGERIO CARVALHO
Decisão:A Turma, por unanimidade, negou provimento a remessa necessária, nos termos do voto do (a) Relator (a).
Ementa: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. CD -ROM. LIVROS IMPRESSOS EM PAPEL, OU EM CD – ROM, SÃO ALCANÇADOS PELA IMUNIDADE DA ALÍNEA “D” DO INCISO VI DO ART. 150 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A PORTARIA MF 181/89 – NA QUAL SE PRETENDE AMPARADO O ATO IMPUGNADO – NÃO DETERMINA A INCIDÊNCIA DE IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO E IPI SOBRE DISQUETES, CD – ROM, NOS QUAIS TENHA SIDO IMPRESSO LIVROS, JORNAIS OU PERIÓDICOS. REMESSA NECESSÁRIA IMPROVIDA.

Por outro lado, já no brilhante artigo A ASSINATURA DIGITAL de Ângela Bittencourt Brasil, Membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, acessível no site JUS NAVIGANDI – www.jus.com.br/doutrina/assidigi.html -, suas ponderações são no sentido de tratá-los como entes assemelhados, destacando a necessidade da criação da figura do Cibernotário para dar autenticidade aos documentos eletrônicos, a exemplo do que já ocorre com os documentos convencionais. Para a autora, o documento eletrônico é o registro de um fato:

“Partindo-se do conceito conhecido de que o documento é uma coisa representativa de um fato, no ensinamento de Moacyr Amaral Santos, não se pode dizer que o documento eletrônico é um Documento, porque ele não é uma coisa e portanto não pode ser representativa de um fato. Mas se olharmos pelo prisma do registro do fato, veremos que ele se adequa perfeitamente a este conceito, porque como uma sequência de bits ele pode ser traduzido por meio de programas de informática que vai revelar o pensamento ou à vontade daquele que o formulou, exigindo do intérprete uma concepção abstrata para compreendê-lo …………..
Evidentemente que ele pode ser reproduzido por uma série de processos, sendo o mais usual o CD que armazena dados retirados dos computadores e são guardados fora do disco rígido. A única diferença existente nesse aspecto é que não podemos falar em Original e Cópia entre os dois se não houver uma identificação pessoal do seu autor, porque num programa de computador, os dados ali existentes são sempre os mesmos, não se podendo dizer nunca qual é a fonte original deles sem a necessária autenticação. Não se pode fazer, por exemplo, um exame grafotécnico para conferir à determinada pessoa a autoria de um texto.
Por isso que se, por acaso, houver um descompasso entre o material apresentado e o que foi registrado no Computador, o documento eletrônico então terá que ser analisado e a assinatura do seu autor pode e deve ser reconhecida pela figura de um Cibernotário.
Diante dessas colocações temos que o documento eletrônico é a representação de um fato concretizado por meio de um computador e armazenado em programa específico capaz de traduzir uma seqüência da unidade internacional conhecida como bits.”

Ainda que se trate, tão somente, da representação de um fato, pode-se argumentar que o documento eletrônico estaria sujeito às determinações e regulamentações da Lei no. 8.935 de 18.11.1994, atividades dos notários, pois em seu artigo 6o., está expressamente consignado que:

Art. 6º Aos notários compete:
III – autenticar fatos.

Seja qual for o entendimento acerca da natureza do documento eletrônico:

(i) o documento eletrônico é igual ao documento em papel, e neste caso, já há Lei Ordinária estabelecendo a competência exclusiva da pessoa que pode dar-lhe autenticidade (Lei no. 8.935 de 18.11.1994) e a IN SRF 156/99 está a contrariá-la,

Ou

(ii) o documento eletrônico não é igual ao documento em papel e não há lei que regulamente a sua existência e validade, o que impede a IN SRF 156/99 de fazê-lo, pois não teria respaldo no Princípio da Legalidade.

Para ambas circunstâncias a norma administrativa é irregular do ponto de vista de sua legalidade.

Os argumentos acima autorizam o entendimento de que a IN SRF 156/99 está a invadir competência legislativa que não lhe cabe, sendo uma norma de estirpe inferior, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, in “curso de Direito Administrativo”, 12a. Edição, Malheiros, página 322, que no texto abaixo acaba por sepultar a sua legalidade:

“Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão faze-los instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderá faze-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas, nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta.”

A Instrução Normativa SRF 156/99 define no seu artigo 2o., inciso II que Certificado Eletrônico é a identificação emitida pela Autoridade Certificadora que garante autenticidade dos emissores e dos destinatários dos documentos e dos dados que trafegam numa rede de comunicação.

Segundo o artigo 1o. da mesma IN SRF os Certificados Eletrônicos são utilizados no relacionamento por meios eletrônicos entre pessoas jurídicas e físicas com a Receita Federal. Portanto, a Autoridade Certificadora identifica duas partes distintas: emissores e destinatários, que são pessoas jurídicas ou pessoas físicas de um lado e a SRF do outro, respectivamente e vice-versa. É a Autoridade Certificadora quem diz que a Receita Federal, e seus documentos, merecem credibilidade e autenticidade. A Autoridade Certificadora identifica a SRF.

A Receita Federal (que é um órgão da Administração Pública Direta Federal e tem fé pública) ao credenciar uma terceira pessoa – Autoridade Certificadora – para praticar atos de identificação, confere a esta pessoa – ao menos para os documentos e a identidade da SRF – poderes para praticar atos de fé pública. Só uma pessoa que tem fé pública pode identificar e autenticar documentos de outra pessoa que tem fé pública.

Outro argumento inequívoco de que os atos praticados pela Autoridade Certificadora têm natureza e cunho de fé pública vem do artigo 3o. da IN SRF 156/99 ao considerar os documentos eletrônicos (inclusive os assinados pela SRF, com utilização de Certificado Eletrônico) com a mesma validade jurídica e de validade de prova que aqueles em papel, firmados pelos meios convencionais.

A digressão é simples:

· A IN SRF 156/99 equipara a validade jurídica e de prova dos documentos eletrônicos (autenticados pela Autoridade Certificadora) aos documentos em papel e firmados pelos meios convencionais.

· Os documentos em papel e firmados pelos meios convencionais têm a identificação dos seus emitentes através de reconhecimento de assinatura e a certificação da autenticidade dos documentos através da autenticação por selo de cartório. Tanto o reconhecimento da firma como a autenticação do documento são atos notariais e têm fé pública. (artigo 3o. da Lei no. 8.935/94).

· Se os documentos eletrônicos têm a mesma validade jurídica que os documentos em papel, e a autenticação em papel dá-se com fé pública, a autenticação eletrônica também haveria de ser por fé pública – ao menos para que o artigo 3o. tenha validade.

A iniciativa de regulamentar a autenticação de documentos eletrônicos nas relações entre os usuários e a Receita Federal, inobstante arrojada, é ilegal e, por tal razão, deve ser extirpada do conjunto de normas.

Vale registrar alguns exemplos que comprovam que, sempre, a novidade tecnológica tem que se curvar ao Estado de Direito, para que seja recebida por ele. Ao instituir a microfilmagem de documentos na administração pública, impôs-se primeiramente a edição da Lei no. 5.433 de 08.05.1968, (posteriormente regulamentada Decreto no. 64.398) para que se conferisse validade legal aos microfilmes como se fossem documentos originais.

Art . 1º É autorizada, em todo o território nacional, a microfilmagem de documentos particulares e oficiais arquivados, estes de órgãos federais, estaduais e municipais.
§ 1º Os microfilmes de que trata esta Lei, assim como as certidões, os traslados e as cópias fotográficas obtidas diretamente dos filmes produzirão os mesmos efeitos legais dos documentos originais em juízo ou fora dele.

Igualmente, para a utilização de processamento eletrônico de dados nos serviços eleitorais e no alistamento e revisão eleitoral o Congresso Nacional votou e aprovou a Lei Ordinária no. 7.444 de 20.12.1985 e a Lei Ordinária no. 6.996 de 07.06.1982. Por fim, recentemente, a Lei no. 9.800 de 26.05.1999 autoriza às partes em processo judicial a se valerem de meios de transmissão de dados e de imagem do tipo de fac-símile para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita.

Conclui-se que (i) o Secretário da Receita Federal não tem competência para instituir documento eletrônico e conferir-lhe validade jurídica de prova, equiparando-o ao documento escrito em papel; (ii) a INS SRF 156/99 não é o instrumento normativo adequado nem legalmente admissível para alterar a Lei no. 8.935/94 e retirar o caráter de competência exclusiva dos tabeliões de notas para alguns serviços notariais; (iii) a recente história das leis demonstra que o país não está insensível às modernidades tecnológicas, mas, antes porém, exige o respeito à hierarquia das normas e à independência dos Poderes.

IV.- A IN SRF 156/99 e o Princípio da Impessoalidade
Outra inconstitucionalidade que se aponta nesta análise superficial é a da ofensa ao Princípio da Impessoalidade, assegurado no artigo 37 da Constituição Federal. E isto em razão do parágrafo único do artigo 5o. da IN que define como prioritários os usuários de Certificados Eletrônicos nos serviços oferecidos pela SRF por meio da Internet. Vale dizer que para acessar os serviços da SRF os usuários de Certificados Eletrônicos terão melhor atendimento que os demais ou, “contrario sensu”, aqueles que não desejarem Certificados Eletrônicos para suas relações com a SRF não terão os mesmos serviços que os outros usuários que possuem os Certificados Eletrônicos terão.

A utilização da assinatura digital é um mecanismo de segurança na transmissão e recepção de dados, para que se evite a fraude da falsificação documental ou ideológica. Os Certificados Eletrônicos identificam os emissores dos documentos.

Os documentos em papel também encontram os mesmos problemas de fraude e falsificação. O reconhecimento de assinatura em cartório identifica aquele que assinou o documento. No entanto, para estes, não há obrigatoriedade de se autenticar documentos ou reconhecer assinaturas quando são apresentados e entregues na SRF. O Decreto Presidencial no. 63.166 de 28.08.1968 dispensa a ”exigência de reconhecimento de firma em qualquer documento produzido do País quando apresentado para fazer prova perante repartições e entidades públicas federais da administração direta e indireta.

O preâmbulo do Decreto merece reprodução, dada sua eficiente simplicidade lógica :

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o artigo 83, item II, da Constituição e tendo em vista o disposto no Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967;
CONSIDERANDO a necessidade de racionalizar o funcionamento do serviço público dispensando exigências puramente formais;
CONSIDERANDO que a falsidade documental e o estelionato, em todos seus aspectos, constituem crime de ação pública punível na forma do Código Penal; pelo que se torna dispensável qualquer precaução administrativa que, a seu turno, não elide a ação penal,

Para tanto, vale o esclarecimento de Gustavo Testa Correa, em seu artigo “Responsabilidade na Internet’, publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 26.12.1998 – http://cf6.uol.com.br/consultor/arti.cfm?numero=903 – quando discorre sobre o crime de pedofilia cometido na Internet:

No caso em tela não há dúvida de que houve crime, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 241 nos ensina, “(…) fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.
O usuário utilizou o provedor de Internet como um meio para que consumasse a conduta acima tipificada, da mesma forma que um homicida pode se utilizar de um revólver para consumar o delito.
Estamos diante de um crime digital, caracterizado pela utilização de computadores para ajuda em atividades ilegais, como a quebra da segurança de sistemas, a utilização da Internet ou redes bancárias de maneira ilícita, o crime de “hacking”, …, etc., onde determinado agente, agraciado pelo anonimato e as técnicas de criptografia proporcionadas pela Internet, disseminou material pedófilo dentro de uma comunidade virtual, que não tinha relação alguma com o provedor de Internet.
A maioria dos crimes digitais, como o acima citado, encontra-se positivada em nossa legislação. O furto de componentes de computador, não deixa de ser furto. A lavagem de dinheiro, não deixa de ser um crime. Fraude é fraude. Extorsão é extorsão. Sejam esses crimes cometidos através da Internet, ou de outros mecanismos tradicionais, são eles crimes previstos na “lege”.

Os mesmos mecanismos legais para reprimir os crimes cometidos com documentos em papel podem ser aproveitados para os crimes eletrônicos. Do fato da desoneração legal, por via de Decreto Presidencial, da obrigação de reconhecimento de firma, em documentos apresentados em repartições públicas, e da utilização de Certificados Eletrônicos expressamente vir a privilegiar usuários dos serviços da Receita Federal na Internet, configura-se uma situação de diferenciação entre usuários, com requintes da IN SRF 156/99 contrariar expressamente o Decreto Presidencial.

É de se esperar da SRF que somente usuários com Declaração de Autenticidade possam doravante declarar imposto pela Internet e, neste ponto, vale trazer a baila à informação relevante do público a ser atingido por esta IN, publicada na Revista Veja, Edição Especial Veja Digital, Editora Abril, de dezembro de 1999, na matéria “Brasil em Dois Tempos”, de Christian Schwartz, página 52: “Em 1997 tudo começou a mudar. Foi quando a Receita passou a aceitar a remessa das declarações via internet. O resultado no primeiro ano surpreendeu: os usuários do novo sistema ultrapassaram os 700 000. Os responsáveis pelo Leão on line não previram o que os aguardava nos dois anos seguintes. Em 1998, 4,5 milhões de contribuintes mandaram a declaração eletronicamente. Neste ano, mais de 11 milhões de declarações seguiram via internet, o equivalente a 62% do total.” Trata-se de um potencial mercado contratante para empresas privadas com Autoridade Certificadora.

Esta diferenciação é o cerne da ofensa ao princípio da Impessoalidade. Entende-se por Impessoalidade, no saber de Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 17a. edição, página 86, Malheiros, o objetivo certo e inafastável do interesse público:

“Impessoalidade – …princípio da finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á a invalidação por desvio de finalidade, que a nossa lei de Ação Popular conceituou como fim diverso daquele previsto, explicita ou implicitamente, na regra de competência do agente.
……. Pode, entretanto, o interesse público coincidir com o de particulares, como ocorre normalmente nos atos administrativos negociais e nos contratos públicos, caso em que é lícito conjugar a pretensão do particular com o interesse coletivo.
O que o princípio da finalidade veda é a prática de ato administrativo sem interesse público…. ”.

Celso Antonio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, 12a. edição, Malheiros, página 84, é menos contido ao definir tal princípio em sua admirável explanação:

“Nele se traduz a idéia de que a administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos, nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio Princípio da Igualdade ou isonomia.”

V.- A Moralidade “versus” a Modernidade
O parágrafo terceiro do artigo 236 da Constituição Federal, acima reproduzido, expressamente determina que “o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos”. A Autoridade Certificadora da IN SRF 156/99 não é nada mais do que um Notário Cibernético ou Cibernotário, como apontado por Ângela Bittencourt Brasil, na reprodução acima de trecho de seu artigo.

Do fato da IN SRF 156/99 dar valor jurídico aos documentos eletrônicos equivalente daqueles em papel, artigo 3o., extrai-se um reconhecimento tácito de que a Autoridade Certificadora exerce atividades notariais, com a diferença de não se ver obrigada a ser submetida a Concurso Público para prestar serviços de autenticação de documentos à SRF. As responsabilidades de autenticação de documentos e assinatura, independentemente do meio material que se realize, impõe ao seu responsável que seja pessoa idônea e competente. Impõe também que dentre todos aqueles que se habilitaram sejam escolhidas as melhores pessoas, por um certame idôneo.

Note-se, a guisa de exemplo, que na Lei no. 7.444 de 20.12.1985, que trata de regulamentar o uso de processamento eletrônico de dados no alistamento eleitoral, a contratação dos serviços, contratos e convênios fica restrita a entes estatais ou de capital exclusivamente nacional (artigo 7o.).

“Art . 7 º – A Justiça Eleitoral executará os serviços previstos nesta Lei, atendidas as condições e peculiaridades locais, diretamente ou mediante convênio ou contrato.
Parágrafo único – Os convênios ou contratos de que cuida este artigo somente poderão ser ajustados com entidades da Administração Direta ou Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou com empresas cujo capital seja exclusivamente nacional.

Obviamente que não se trata de um debate xenófobo, mas, nas condições da IN SRF 156/99 é possível a qualquer empresa no Brasil, com controle de capital nacional ou estrangeir

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