Damásio de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS
Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno (Itália)
Diretor-Geral da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus
Membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo
Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Austral de Buenos Aires
Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Penal da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo
Professor convidado do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu – Especialização em Direito Penal – da Escola Paulista da Magistratura – São Paulo/SP
Professor convidado do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Estudos de Salerno
Conselheiro do Instituto O Direito por um planeta verde
A REINCIDÊNCIA COMO QUALIFICADORA DOS CRIMES DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E ANÁLOGOS NA REVOGADA LEI DAS ARMAS DE FOGO (LEI N. 9.437/97) E O ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI N. 10.826/2003): A QUESTÃO DA RETROATIVIDADE DA LEI POSTERIOR MAIS BENÉFICA
O art. 10, § 3.º, IV, da revogada Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 (Lei do Porte de Armas), previa a reincidência como qualificadora dos crimes descritos no art. 10, caput, e § 1.º, impondo pena de reclusão, de 2 a 4 anos, além de multa, o dobro do tipo simples (detenção, de 1 a 2 anos). A figura típica não definia crime autônomo, pois não possuía elementares próprias[1]. Descrevia, em local inadequado, uma qualificadora, tendo em vista que impunha, abstratamente, mínimo e máximo da pena[2]. Era muito estranho, já que os outros incisos do § 3.º retratavam delitos autônomos. Para a aplicação da agravação específica, era necessário que a sentença condenatória irrecorrível anterior tivesse reconhecido a prática de crimes contra a pessoa, contra o patrimônio ou o tráfico ilícito de drogas. Só exasperavam a pena as condenações com trânsito em julgado prolatadas na vigência da Lei n. 9.437/97.
Em nossas críticas, observávamos que o fato anterior, objeto da sentença condenatória transitada em julgado, podia não manter nenhuma relação com arma de fogo[3]. Imagine que o autor tivesse sido condenado irrecorrivelmente por estelionato. A Lei determinava a agravação obrigatória da pena. Não se mostrava justo que a reincidência, nesse caso, elevasse tão intensamente a sanção do crime posterior[4]. Além disso, fugia completamente do sistema criminal brasileiro a existência de uma circunstância agravante genérica, transformada em qualificadora de um delito especial, aumentando de tal forma a pena[5].
A Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, corrigindo o erro da norma anterior, não contém dispositivo semelhante contemplando a reincidência como qualificadora ou causa de aumento de pena dos crimes de porte de arma de fogo e correlatos. Apreciando as duas Leis – as de n. 9.437/97 e n. 10.826/2003 – verifica-se que a posterior é mais benéfica, uma vez que não prevê a qualificadora anteriormente tipificada. Trata-se de novatio legis in melius (art. 5.º, XL, da CF; art. 2.º, parágrafo único, do CP) com efeito retroativo incondicional, aplicando-se inclusive aos fatos definitivamente julgados (art. 2.º, parágrafo único, parte final, do CP)[6]. Suponha-se que um réu, autor de posse ilegal de arma, tenha sido irrecorrivelmente condenado a 2 anos de reclusão, além de multa, em face da reincidência, nos termos do art. 10, caput, e § 3.º, IV, da revogada Lei. n. 9.437/97. Com o advento da Lei nova mais benéfica, cumpre que seja reduzida a pena de acordo com os parâmetros punitivos impostos pelo art. 12 da Lei n. 10.826/2003, detenção, de 1 a 3 anos, e multa, subsistindo a reincidência como agravante genérica, ressalvada outra eventual circunstância exasperadora da pena reconhecida pela sentença anterior e não extinta pela Lei posterior.
Se o Juiz ou o Tribunal ainda não proferiu condenação, compete àquele ou ao órgão colegiado efetuar, na sentença ou acórdão condenatório, a adequação penal. Se, contudo, a sentença ou acórdão já transitou em julgado, a competência é do Juiz da execução, de acordo com o art. 66, I, da Lei de Execução Penal[7] (Súmula n. 611 do STF). Nesse caso, a competência não é do Tribunal, ao qual compete apreciar a espécie somente na hipótese de haver recurso da decisão do Juiz de Primeira Instância (art. 197 da LEP).
[1] Nesse sentido: TJRS, ACrim n. 700.0000.9563, rel. Des. Carlos Roberto Lafego Caníbal, RT 772/672.
[2] Nesse sentido: TJRS, ACrim n. 700.0000.9563, rel. Des. Carlos Roberto Lafego Caníbal, RT 772/672; TJSP, 3.ª Câm. Crim., ACrim n. 288.773, rel. Des. Gonçalves Nogueira, RT 778/586.
[3] JESUS, Damásio de. Crimes de porte de arma de fogo e assemelhados. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 74.
[4] Nesse sentido, tratando de estelionato e adotando nossa posição: STJ, 5.ª T., HC n. 14.917, rel. Min. Felix Fischer, DJU de 4.6.2002, p. 197, e RT 793/558.
[5] Nesse sentido: GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Porte de arma: inaplicabilidade do art. 10, § 3.º, da Lei n. 9.437/97. Boletim do IBCCrim, São Paulo, 70/6, set. 1998.
[6] Nesse sentido: RTJ 83/1003 e 95/814.
[7] Lei n. 7.210/84.