Autor: Marcelo Mattos Trapnell (*)
Visitando o site da Uber, notável as frases de efeito e massiva propaganda singela que enaltece a possibilidade de ganhar dinheiro, de trabalhar sem patrão, de usufruir de uma liberdade de horários, convocando a massa de desempregados: “Pronto para ganhar dinheiro?” “Ganhe mais em qualquer lugar”.
O sujeito se empolga ante a atual crise econômica, desempregado, decide aderir ao trabalho ofertado, afinal, já ouviu histórias de que um primo do amigo da sua vizinha estaria faturando mais de R$ 7 mil ao mês, ou que, fulano largou o emprego para se dedicar ao Uber.
A empresa alega que você será um parceiro autônomo, desde que concorde com todas as exigências relacionadas no pré-contrato unilateral proposto. À princípio, seriam simples exigências, especificado pelo contratante que o trabalhador deve ter carro de 4 portas e 5 lugares com ar condicionado, com data de fabricação superior a 2008. Não serão aceitos adesivos, placa vermelha (ou seja, próprio motorista profissional autônomo não pode aderir ao sistema de contratação da Uber). Pick-ups, vans e caminhonetes também não são aceitos.
Exigem que seja adicionado o termo “EAR” à sua CNH, ou seja, o candidato à vaga deve alterar seu cadastro no Detran para fazer incluir que exerce atividade remunerada como motorista.
Feito isso, o candidato encaminha uma ficha de registro, fotografia, CNH e outras informações para prévia avaliação do empregador e final decisão sobre a contratação.
Caso acolhido na “benévola” empresa, o motorista deve sujeitar-se agora à tabela de preços e descontos sobre cada corrida. Sim, não há como negociar o frete, a corrida. O passageiro, ao solicitar o transporte, já recebe com antecedência o valor da corrida, podendo, este sim, decidir se aceita o valor antes de fechar a corrida, oportunidade que não é oferecida ao motorista.
Tem-se aí um dos principais elementos caracterizadores da relação de emprego, sendo fácil ilustrar. Qualquer pessoal ao tentar contratar um trabalhador autônomo, por exemplo, um pintor de paredes, existirá uma prévia negociação de valores. O profissional estabelece seu valor de acordo com suas necessidades, expectativas, tamanho do imóvel, dias/horas de trabalho, etc, fornecendo orçamento prévio para aprovação ou para contraproposta do contratante, tanto que, é comum consultar 3 ou demais profissionais. Ou seja, o profissional autônomo se oferece no mercado, negocia o serviço, valores e forma de pagamentos, podendo, inclusive, se valer de auxiliares. O empregado não, o empregado adere ao contrato de trabalho proposto pela empregadora, sendo certo que a empregadora tem o poder de selecionar e escolher seus empregados.
A empresa Uber não negocia nada, estabelece as bases e formas, inclusive, quanto vai pagar, o motorista nada negocia, adere ou não. Se escolher não aderir, não trabalha.
Em defesa, aduz que a Uber seria um mero aplicativo e o motorista seu usuário do serviço, que pagaria uma taxa, comissão ou assemelhado, o que também não é verdade.
Em primeiro aspecto, aplicativo é qualquer programa de informática disponibilizado na internet, notadamente para os telefones celulares mais modernos e poderosos, os conhecidos “smartphones”, aliás, o motorista, além do automóvel, será obrigado a adquirir um aparelho celular moderno, potente, e a pagar acesso à internet em banda larga à prova de falhas.
No mundo moderno atual, surgiram lojas virtuais, programas diversos de computadores, o teletrabalho, em domicílio (empregado que exerce sua atividade em sua própria residência), não obstante, as relações de emprego não foram extintas.
Se existe um aplicativo de comércio eletrônico, este está sujeito às normas de consumo, é uma loja virtual. Um aplicativo de reserva de vagas em hotéis e passagens aéreas não deixa de ser uma agência de viagens virtual. Muitos bancos hoje oferecem aplicativos para acesso às contas bancárias, pagamentos e investimentos, o que não descaracteriza o banco.
Há de se avaliar, portanto, a natureza da atividade ofertada, que, no caso, é a exploração de um segmento no ramo de transportes em que somente a Uber estabelece as bases, preços e condições, sendo certo que 100% de seu faturamento é proveniente do transporte realizado.
A Uber é, sim, uma transportadora que não possui carros próprios, motoristas, não assume os custos de manutenção de frota, abastecimentos, seguros e demais, configurando verdadeira concorrência desleal, e esta vem sendo avaliada constantemente pela prática de dumping e pelos Ministérios Públicos do Trabalho (clique aqui para ver um exemplo).
Uber não é uma cooperativa de profissionais autônomos e não se confunde com outros aplicativos de táxi. Uma cooperativa é formada por profissionais do mesmo ramo para explorar em conjunto um determinado segmento econômico. Um aplicativo de taxistas (tais como EasyTaxi ou 99), agenciam o profissional motorista, o taxista e o usuário. Se o taxista desejar, pode se descredenciar que continuará a trabalhar como taxista ou optar por se juntar a uma cooperativa de rádio táxi ou mesmo formar um ponto de táxi com demais colegas.
O motorista Uber não, não é um profissional motorista, notório que a grande massa dos motoristas são profissionais de outras áreas que estão fora do mercado de trabalho, aliás, a empresa exige que o candidato à vaga não utilize automóveis com placas vermelhas e, sem o uso do “aplicativo”, não terá trabalho algum de motorista pois, ao contrário do taxista, não pode captar passageiros aleatoriamente na rua, logo, ele é dependente do sistema Uber para poder trabalhar.
O mesmo se diz com relação à subordinação. Inegável que a Uber faz exigências quanto às atitudes dos motoristas, higiene do automóvel e motorista, oferta de água, balas, revistas, pois a ela interessa a manutenção do seu bom nome, de sua marca no mercado, tanto que, no início das atividades da Uber, os comentários correntes eram sobre os preços reduzidos, limpeza, educação, agilidade na prestação dos serviços, balinhas disponíveis, elementos caracterizadores da marca Uber impostos pela empregadora.
Fiscalizado, o motorista sofre repreensões e pode ser descredenciado sumariamente do sistema exploratório. A cada corrida, os passageiros encaminham obrigatoriamente um relatório sobre o motorista, o carro e a forma de atendimento.
Não pode, reiteradamente, recusar corridas sob pena de sanções variadas e, se o motorista se atrever a não acionar o “aplicativo”, receberá comunicados solicitando atividade, culminando com o descredenciamento do motorista pela empresa.
A contratação é pessoal. O taxista profissional pode se valer de credenciados pelos órgãos municipais, como prepostos, para dirigirem seu carro. Em alguns casos, mais de um motorista podem ser sócios do mesmo carro ou alvará.
O candidato à vaga na Uber passa por avaliação pessoal específica. Em inquérito pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, IC 001417.2016.01.000/6, um Coordenador de Operações da Uber esclareceu que o processo de contratação dos motoristas inclui, além da apresentação de inúmeros documentos, testes psicológicos e avaliação dos antecedentes civis e criminais do candidato.
Logo, o empregado Uber não pode se fazer substituir. O tal aplicativo apresenta ao usuário, no momento da solicitação de qualquer corrida, a fotografia e nome do motorista e, caso ouse passar o carro para outro, em razão de algum impedimento, será fatalmente descredenciado.
Com efeito, a relação Uber e motorista não se confunde com a contratação do carro, ou do aluguel de um veículo, mas, de pura contratação pessoal do motorista que passa por avaliação, entrevista e testes no período de seleção da vaga.
E não se pode hoje falar em jornada flexível como característica de relação de emprego. Como comentado anteriormente, nos tempos atuais, a legislação é interpretada de acordo com a realidade atual, onde inúmeras outras profissões e empregos não exigem mais um horário fixo mínimo ou máximo de horas a trabalhar, muito menos se exige o comparecimento do trabalhador ao escritório ou postos fixos de trabalho.
O fato é que, para cobrir os custos de manutenção do veículo, celular e demais, o motorista Uber trabalha entre 12 e 15 horas, diariamente, para obter alguma remuneração excedente, o que caracteriza salário por produção (modalidade aceita na CLT), determinado e regulado, unilateralmente, pela Uber, que retém seu percentual e remunera o motorista semanalmente.
A empresa oferece prêmios, se alcançadas metas e, caso objetive expandir serviços em determinada área, pagará um valor mínimo para o motorista à disposição naquela região, mesmo sem corridas, chegando a pagar, inclusive, valores mínimos para o trabalho em determinados horários ou em períodos de promoções, para captar público em que oferece corridas grátis ou com grandes descontos.
A discussão não é apenas brasileira. Recentemente foram expedidas decisões que reconhecem a relação de emprego. A primeira, proferida na Califórnia (EUA), Londres (UK); e até na Suíça.
Recentemente, foi proferida sentença da lavra do Juiz da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Márcio Toledo Gonçalves avaliando todos os elementos brilhantemente demonstrados pelos advogados do reclamante no processo 0011359-34.2016.5.03.0112, reconhecendo a inevitável relação de emprego através de fundamentada decisão em 46 páginas em que aponta os elementos de certeza, citando as provas coletadas, doutrinadores e farta jurisprudência atual sobre a moderna relação de emprego na era da internet, aplicando o princípio da primazia da realidade, utilizando o termo “Uberização”.
Até então, o termo “PeJotização”, em que as empregadoras contratam profissionais, pessoas físicas, com empresas próprias (pessoas jurídicas – PJs) que trabalham e recebem seus salários mediante emissão de nota fiscal, era o mais conhecido diante da prática adotada indiscriminadamente como forma de reduzir custos especialmente na contratação de profissionais com alta remuneração.
Conclui-se que, o motorista é empregado, não atua com liberdade e autonomia, argumentos estes que Uber se utiliza como artifícios para fraudar uma relação de emprego e deixar de pagar encargos sociais e trabalhistas, refletindo, assim, em seus preços e valores de corridas praticados, que poucos concorrentes conseguem acompanhar continuamente, cabendo, nesse sentido, ser avaliada de forma a caracterizar um verdadeiro dumping social.
Ao motorista, enquanto ainda não existirem decisões coletivas determinando o registro dos contratos de trabalho, resta propor reclamação trabalhista para ter reconhecido seus direitos mais elementares, além de horas extras, adicional noturno e reembolso de despesas e custos com abastecimento, manutenção do veículo, balas, águas e demais, uma vez que não poderia a empregadora repassar os custos do negócio aos seus empregados.
Autor: Marcelo Mattos Trapnell é advogado militante sócio de Porto e Inglese Advogados Associados.