* José Olavo Bueno dos Passos
Tenho pensado em certas correntes doutrinárias e suas implicações para a consecução da vida do homem em sociedades organizadas. Tais tendências do pensamento humano, sem sombra de dúvida, têm o condão de me causar extrema perplexidade.
Recentemente, em congresso criminal local, ouvi palestrante que, dentre tantas alusões, empreendeu enormes elogios a decisão judicial colegiada, oriunda de tribunal togado, na qual computou-se, como tempo de pena cumprido, o tempo de demora na tramitação do processo criminal correspondente a sua condenação – mesmo com o réu em liberdade provisória – tomando tal circunstância como atenuante genérica, art. 66, do Código Penal Brasileiro. Afirmou o expositor ser essa decisão um marco histórico. Sobre isso nos perquirimos apenas em que aspecto?
Foi mais longe o jurista, teceu alusões ao tempo e sua relatividade, dizendo que é preciso pensá-lo antevendo-se um condenado recolhido à casa prisional, onde a sensação temporal é diferente daquela que se dá além muros.
Ora, a partir dos dizeres do nobre jurista mencionado, forçoso é se conceber que se está criando, na esfera da defesa criminal, novo e valioso campo de defesa, pois o bom causídico da área penal buscará, e tem que fazê-lo, procrastinar o julgamento do réu ao máximo, agora não mais visando alcançar a prescrição, mas sim, em admitindo a condenação, objetivando subtrair da pena concretizada o tempo de duração do processo criminal interposto – veja-se a ironia, pois é possível que o Estado tenha que indenizar o réu caso a pena seja menor que o tempo de tramitação do processo.
É preciso ir-se além na interpretação da decisão comentada, pois não há de se examinar a responsabilidade da dilação temporal para o término da ação penal. É questão puramente objetiva. O Estado deve ser sagaz, célere, pouco importando os artifícios, ardis, e técnicas procrastinatórias da defesa. O Estado, como já dito, por tudo é responsável. É isso, vire-se o Estado, legítimo representante do todo comunitário! A ele nada, aos cidadãos de bem, nada, ao crime e ao criminoso, tudo (e veja-se, que, sem qualquer ressalva,é preciso respeitar o direito do réu, a ampla defesa, a presunção da inocência, mas tudo tem um limite aceitável no plano no bom senso do homem médio).
Seguindo na mesma esteira, ao proceder ilações sobre o tempo, o nobre pensador, de elevado conhecimento jurídico-social, restringiu seu pensar apenas ao aspecto intramuros prisionais – o tempo passa, e passa lento, para o condenado a prisão por algum crime. E para a vítima de crimes violentos, seus familiares, seus entes queridos, como fica o tempo? Por certo não passa rápido, passa ainda mais lentamente. O restante da vida, maculada pelos traumas da violência sofrida, pela indignação da não punição do criminoso, pela revolta, sentimento nascido a partir da ausência da realização da justiça, dá-se em desenrolar arrastado, consistindo a morte, em muitos casos, verdadeiro acontecimento libertador. Isso não é pensado por quem pensa como o jurista, e seus companheiros, palestrante, aqui referido. O que deduzir, subtrair do tempo da vítima, de seus familiares? Que compensação a eles deve ser aposta em face do sofrido? Monetária – o dinheiro não compensa tudo, as vezes até mesmo nada.
Sustentou, ainda, que todos os cidadãos que vivem em comunidade são criminosos, pois o delito ocorre em várias situações de nossa vida, tais como nos casos dos chamados “camelôs” e na não exigência de notas fiscais em aquisições comerciais ou na atividade.
Ao acatarmos a teoria finalista da ação – por ela sabemos que a conduta típico-penal tem um objetivo – podemos afirmar que o comerciante ilegal – o camelô – que vende um produto sem nota fiscal, o fazendo para alcançar o seu sustento, de sua família, não age no mesmo patamar criminal que o famigerado “Fernandinho Beira-Mar” – isso apenas como exemplo – eis que este não vende “CDs”, rádios, mas sim “maconha”, cocaína, e outros entorpecentes, destruindo lares e vidas, visando apenas o lucro fácil. Esse último, sim, comete crimes.
Mas há mais, aquele que age como “camelô”, por exemplo, tem ao seu lado, em tese, a possibilidade de sustentação de excludentes da ilicitude (estado de necessidade) ou da culpabilidade – possuindo, em muitos casos, licenciamentos da municipalidade para laborar em suas atividades.
Podemos ir mais adiante. E aqueles que compram nos “camelôs”, cometem crimes? Ora, se os chamados “vendedores ambulantes” estão devidamente instalados, licenciados pela municipalidade, o comprador pode, e o faz, imaginar que tal atividade mercantil é perfeitamente legal. Funciona aqui a chamada “Teoria da Aparência”, estando afastada no agir do adquirente a “ausência da potencial consciência da ilicitude”, uma das excludentes da culpabilidade.
Mas isso são apenas pensares secundários, pois o que vale é o mérito do proceder. Perguntamos, pois: qual a conduta que realmente fere o seio social – a de “Fernandinho Beira-Mar” ou dos “camelôs”? Façamos ao inverso: qual o procedimento que evita outros danos ao contexto social? A de “Fernandinho Beira-Mar” ou a dos “camelôs”. Não é preciso ser um gênio para responder.
Isso são apenas digressões jurídico-sociais. Apenas isso. O pensar do expositor em discussão é, pois, destoado de sustentáculo fáticos e da esfera do direito positivo, ou mesmo, natural – “não causar danos a outrem”.
Ao direcionar a conclusão de sua explanação, o jurista em lide declinou a modernidade do Código de Processo Penal do Paraguai, expondo que sua Corte Suprema tem o prazo de três anos para julgar um recurso interposto pelo réu, em não o fazendo, ele é tido por procedente. Já se for recurso da acusação, não julgado em tal prazo, tem-se o mesmo como improcedente. Teceu elogios a esse respeito. O espanto assolou-me aí por completo – e o sagrado e constitucional princípio da igualdade entre as partes de uma ação judicial, aqui de natureza penal, onde fica, onde está? Inacreditável ter-se tal norma por justa, jurídica, moral e eticamente falando. É o raciocinar apenas em prol de um lado, ser parcial. E para qual lado, para o lado do criminoso, daquele que “fere, que mata e que fica”, como diz o poeta.
Atacou o palestrante a figura das prisões cautelares, em especial o critério norteador da ordem pública, embasador da possibilidade da prisão preventiva. Disse-o sustentáculo de pensar “hitleriano”. Como explicitar tal barbárie?
A afirmativa é: “não cabe prender-se alguém antes da sentença final transitada em julgado”. Deixou sem resposta, o pensador, questionamento de como ficam as situações jurídico-fáticas daqueles que praticam atos nocivos à vida social e podem, a qualquer tempo, reiterá-los; que são perigosos aos seus concidadãos; que lesam à instrução criminal; que podem evadir-se do cumprimento da pena. Em tal passo, não poderiam ser presos, antes de finalmente julgados, o maníaco do Cassino (Rio Grande, RS), serial killer conhecido como “Titica”; Adriano, acusado de ser o autor das mortes de inúmeras crianças na região Soledade (RS); ou mesmo o assassino de Márcia Schüller, jovem grávida de nove meses que, após alvejada pelo pai da criança em gestação, foi enterrada em um terreno da periferia de Pelotas (RS). Repito, não caberia encarcerar, provisoriamente, tais criminosos, competindo-lhes o direito de aguardar em liberdade a tramitação de seus processos. Vire-se o Estado, a sociedade, torno a dizer! Heresia sem precedentes tal concepção jurídico-doutrinária..
Acredito, em vista do exposto, que “hitlerianas” são as condutas criminais que praticam os autores delituais, os ferimentos causados às vítimas, a sua incolumidade pública, ao seu patrimônio, as suas vidas, enfim, digna de Hitler é a brutalidade do criminoso e não o agir do Estado ao prender alguém, sob a responsabilidade de um Juiz de Direito, com todas as garantias legais incidindo a seu favor, em prol do bem comum.
Em final sustentou o pensador o equivocado aspecto material do Direito Penal moderno – é um direito do terror, disse. Simbolicamente afirmou que se moradores do “morro” (alusão a pessoas ou criminosos que ocupam tais áreas das grandes cidades) resolvessem descê-lo, em direção aos chamados bairros nobres, dentre outras localidades, não haveria direito penal que os impedisse. Façamos ilação em contrário: se não houvesse o Direito Penal, com seus critérios de prevenção e repressão, os moradores do “morro” já teriam descido há muito tempo – e as práticas criminais recrudesceriam ainda mais – e não só eles, pois moradores de bairros da classe média ou alta também passariam ao cometimento de todo tipo de delitos, já que as condutas delitivas não são monopólio das camadas pobres da população, não havendo qualquer sinonímia entre as palavras pobreza e criminalidade.
Nisso – controle social pela possibilidade da punição – reside a instrumentalidade do Direito Penal, que deve ser, sem dúvida alguma, mantida.
Não se está aqui sustentando a “selvageria”, a “brutalidade”, o desrespeito aos mais básicos direitos do homem. Pelo contrário, é imperativo preservar-se o direito do homem, de todos os homens, e não apenas dos criminosos, daqueles que matam, estupram, ferem crianças, furtam, roubam o pouco que muitos tem. As vítimas estão em todas as camadas sociais, como também o estão os criminosos, cumprindo ao direito, considerar ambos, equanimente, em peso e medida, no contexto do direito penal e processual penal.
Aqueles que são responsáveis por práticas delitivas, sejam abonados ou não, devem ser responsabilizados por seus agires. Muitos escapam das punições, utilizando-se de estratagemas legais, dentre os quais entendemos como inseridos esses apostos na decisão judicial anteriormente mencionada. Mude-se, pois, os procedimentos, mas não se queira justificar o crime sob o palio de argumentação destoada de realidade prática, fática e justa.
As partes, em um processo penal, devem ter tratamento igualitário e digno – vigendo o Estado de Direito em sua plenitude. Naquilo que ouvi e senti, a partir da explanação do ínclito pensador referenciado, após a devida maturação intelectual, não encontrei posicionamento de trato equânime ou ideação capaz de beneficiar à vida em sociedade organizada e, por incrível que pareça, o próprio réu – aquele que inocente quer ser julgado e declarado não culpado das imputações que lhe foram feitas -, figura central da construção doutrinária criticada, pois em seu âmago não se está a buscar a realização da justiça, mas sim evitar a prisão do acusado em uma ação penal, mantendo-o em liberdade.– seja culpado ou inocente.
Prefiro pensar e agir de forma diferente, por isso mesmo ouvi, senti, e repeli, em sua quase totalidade, tudo aquilo que expressado – em parte aqui colacionado – com brilhantismo, pelo nobre pensador. De utopias e teorias mirabolantes estamos todos cansados. Democracia é pensar o todo, e em um acontecimento criminal, sabe-se, há dois pólos, ambos, para haver justiça, tem que receber a mesma consideração da lei, do magistrado, do doutrinador, do teórico ou do prático do direito. Se isso não ocorre, não há justiça, sem justiça, não há direito, sem direito, não há vida em sociedade, e o homem não vive, como bem concebeu Aristóteles, a não ser em sociedade.
Respeito o que ouvi, mas com aquilo que foi dito, com a devida vênia, não concordo.
*Promotor de Justiça – Professor Universitário