A reparação do dano no Direito Penal Brasileiro – perspectivas

Vladimir Brega Filho

Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos
Professor da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro
Mestre em Direito pelo Centro de Pós-graduação da Faculdade de Direito de Bauru
Doutorando pela PUC-SP
Professor da Escola da Magistratura do Paraná, Núcleo Jacarezinho
Editor da revista virtual TravelNet Jurídica

Sumário: 1. Introdução. 2. Vitimologia – Conceito e objeto. 3. Síntese histórica da reparação do dano no Brasil. 4. A reparação do dano na legislação especial. 5. Perspectivas para a reparação do dano. 6. Conclusões.

Resumo: Após conceituar a vitimologia e historiar a reparação do dano do direito brasileiro, apontamos as seguintes conclusões: a) durante muito tempo houve um “esquecimento da vítima no direito penal brasileito”; b) o resurgimento da vítima ocorreu com a edição da lei 9.099/95 (Lei do Juizado das Pequenas Causas), que trouxe grandes novidades, entre elas a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo; c) todos esses institutos, se bem utilizados, podem servir para, resolvendo a questão penal, reparar o dano causado pelo delito; d) esses institutos, porém, não são suficientes para garantir a reparação do dano em todos os casos, havendo a necessidade do Estado criar mecanismos para que esta reparação seja efetiva; e) a constituição de um Fundo de Reparação do Dano é instrumento importante para minimizar os efeitos danosos dos crimes.

Palavras-chave: Vitimologia. Reparação do dano. Evolução. Fundo de Reparação.

1. INTRODUÇÃO

Tanto a escola Clássica de Becaria e Fuerbach, como a Escola Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo, estavam centradas na tríade delito-delinqüente-pena. Nenhuma dessas correntes levou em consideração o outro componente da relação jurídico-penal que é a vítima.

As primeiras manifestações sobre a vítima apareceram na metade do século XX, tendo como pioneiro o professor alemão Hans von Hentig, que publicou na década de 1940 o livro The criminal and victim, onde pela primeira vez aparece a consideração da vítima como um fator na delinqüência. Hans von Hentig analisa a juventude, a velhice, a concupiscência, a depressão do sujeito passivo como um fator até mesmo decisivo na ação do delinqüente. Outra obra importante foi publicada no ano de 1956, pelo advogado de origem israelita Benjamin Mendelsohn, nela constando um artigo sobre “Vitimologia”, que era parte de uma obra que projetava, muito mais ampla (Horixons nouveaux bio-psychosociaux. La victimiologie). Mendelsohn foi o primeiro a utilizar a expressão vitimologia, hoje consagrada na doutrina.

Vários outros estudos foram escritos desde então, sendo possível encontrarmos neles o conceito e os objetos da vitimologia. Após nos referirmos a estes aspectos, nos preocuparemos com um dos aspectos da vitimologia, o da reparação do dano, que passará a ser o objeto principal deste artigo.

2. CONCEITO E OBJETO

Vitimologia é o estudo da vítima em seus diferentes aspectos. Eduardo Mayr conceitua vitimologia como sendo

“…o estudo da vítima no que se refere à sua personalidade, que do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer o de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos”.(apud RIBEIRO, 2001, p. 30)

Percebe-se, então, que a vitimologia é muito mais do que o estudo da influência da vítima na ocorrência do delito, pois estuda os vários momentos do crime, desde a sua ocorrência até as suas conseqüências.

Entre os objetivos finais da vitimologia destacamos os seguintes: evidenciar a importância da vítima; explicar a conduta da vítima; medidas para reduzir a ocorrência do dano; e assistência às vítimas, onde incluímos a reparação dos danos causados pelo delito.

É com este último aspecto que nos preocuparemos mais neste texto.

3. SÍNTESE HISTÓRICA DA REPARAÇÃO DO DANO NO BRASIL

As ordenações Filipinas, que tiveram vigência no Brasil entre os anos de 1603 e 1830, traziam as idéias de reparação e multa, mas isso tudo era muito confuso e não visavam “claramente à indenização, nem mesmo quando os bens do criminoso sofriam confiscação da coroa”.(apud FERNANDES, 1995, p. 161)

Com a proclamação da República e a outorga da Constituição de 1824, impôs o legislador constituinte a obrigação de um Código Criminal do Império. Assim, em 1830 é editado código com esta denominação, a partir de projeto de Bernardino Gonzaga. Tido como um código avançado para a época, previu a ação civil no processo criminal:

“O sistema era o da cumulação obrigatória, mas podia o ofendido, excepcionalmente, usar da via civil contra o delinqüente desde o momento do crime (art. 31, § 3º). Ficavam hipotecados os bens do delinqüente desde o momento do crime (art. 27), tendo a satisfação do ofendido preferência sobre o pagamento das multas (art. 30). Era eminentemente protetivo à vítima, estabelecendo mesmo que, na dúvida a respeito do valor a ser indenizado, a solução devia ser em favor do ofendido (art. 22). Chegava a prever prisão com trabalho do devedor para ganhar a quantia necessária à satisfação do dano (art. 32)”.(FERNANDES, op.cit., p. 163)

Proclamada a República, a matéria passa a ser tratada no Código Penal de 1890 (art. 69, b, 70 e 31). Fica afirmada a independência das ações civil e penal, regulando o Código Civil a matéria referente à indenização do dano. O Código segue a lei 261, de 1841, que em seu artigo 68, revogou o artigo 31 do Código Criminal do Império e estabeleceu a independência da ação civil e penal, mas deu força de coisa julgada civil à sentença penal, estabelecendo que a decisão sobre a existência do fato e sobre a autoria não pode mais ser discutida no cível. Esse sistema foi mantido no Código Penal de 1940 e até hoje a sentença penal é título executivo na esfera cível (art. 91, I).

Outros dispositivos, porém, dizem respeito à indenização ou reparação às vítimas dos crimes. Na suspensão condicional da pena e no livramento condicional, o criminoso deve reparar o dano para conseguir estes benefícios, salvo absoluta impossibilidade de faze-lo. É o que estabeleciam os art. 59, II e 60, III do Código Penal (hoje artigos 81, II e art. 83, IV). Preocupa-se o legislador não só com a imposição e a execução da pena, mas também com a vítima.

De qualquer forma, percebemos pela análise do Código Penal de 1940 que a referência à reparação do dano é mínima e o que ocorreu durante muito tempo foi o esquecimento da vítima pelo Direito Penal, preocupando-se exclusivamente com a imposição da pena. Sobre isso, Edgar de Moura Bittencourt escreve:

“A pessoa e o infortúnio da vítima estão na lembrança do povo enquanto dura a sensação do processo. Há por vezes, dirigida em prol do ofendido uma onda de caridade, que se mescla com a revolta contra o criminoso. O processo passa, a condenação subsiste por vários anos. O criminoso é quase sempre lembrado. A vítima cai no esquecimento; quando muito, um ou outro, ilustrado na literatura policial de jornais, guardar-lhe-á o nome”.(BITTENCOURT, 197-?, p. 33)

Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina escrevem o seguinte a respeito do abandono da vítima:

“O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual”.(GOMES E MOLINA, 2000, p. 73)

Esse “esquecimento” da vítima perdurou por muito tempo no direito brasileiro e somente em data recente a situação vem se revertendo. Algumas leis editadas nos últimos dez anos procuraram introduzir instrumentos e penas para garantir a reparação do dano.

A seguir trataremos de algumas dessas leis.

4. A REPARAÇÃO DO DANO NA LEGISLAÇÃO ESPECIAL

Como vimos, há muito tempo a legislação brasileira tem se preocupado com a vítima, mas com exceção do Código Criminal do Império, isso tem sido feito de maneira muito insipiente.

Diante disso, há que se destacar a Lei 9.099/95, que deu maior ênfase à reparação do dano às vítimas. Segundo Luiz Flávio Gomes ocorreu a “redescoberta da vítima”.(1997, p. 423). O mesmo autor conclui que

“… a lei 9.099/95, no âmbito da criminalidade pequena e média, introduziu no Brasil o chamado modelo consensual de Justiça Criminal. A prioridade agora não é o castigo do infrator, senão sobretudo a indenização dos danos e prejuízo causados pelo delito em favor da vítima”.(GOMES, op. cit., p. 430)

Isso fica evidente quando analisamos os novos institutos trazidos pela referida lei. Falaremos, em primeiro lugar, da composição civil, prevista nos artigos 71 a 74 da Lei 9.099/95. Estabeleceu o legislador que o juiz deve, sempre que existir dano, buscar a composição civil, destacando que a composição civil implica renúncia ao direito de queixa ou representação. Fica clara a intenção do legislador de estimular a composição civil e por conseqüência a reparação do dano, pois o autor do fato, não aceitando a composição, fica sob o risco da ação penal, preferindo muitas vezes realizar o acordo civil a sofrer a sanção penal.

Outra forma de valorizar a vítima prevista na lei 9.099/95 foi ampliar o número de crimes que dependem de representação, pois o art. 88 estabelece que dependem de representação os crimes de lesão corporal dolosa leve e lesão corporal culposa. Segundo Scarance Fernandes, a conseqüência disso é que “cresce a dependência do Estado, em sua atividade persecutória, à vontade da vítima e, por conseqüência, aumenta a possibilidade de o autor do fato reparar o dano que foi causado pelo crime, visando evitar a acusação”.(2002, p. 212)

A lei 9.099/95 instituiu no Brasil a suspensão condicional do processo. Por este instituto, o processo fica suspenso pelo prazo de 02 a 04 anos e o autor do crime tem de cumprir algumas condições. Entre elas está a reparação do dano à vítima (art. 89, § 1º, I). Fica evidente, mais uma vez, a intenção do legislador de incentivar a reparação do dano e vincular alguns benefícios a sua ocorrência.

Embora os progressos trazidos pela lei 9.099/95, no tocante à reparação do dano, sejam elogiáveis, não podemos deixar de destacar alguns pontos relativos à vitimologia que devem ser corrigidos. O primeiro e mais importante deles é o do momento da representação nos crimes de ação penal pública, condicionada à representação. Segundo a lei, a representação deve ser feita em audiência preliminar, na presença do autor do fato. Isso faz com que a vítima, já perturbada com o delito, sinta-se ainda mais constrangida. A não representação é muitas vezes fruto deste constrangimento. Imagine-se alguém que tenha sido ameaçado de morte e que tenha de representar contra o autor da ameaça na frente do juiz. Se existia alguma inimizade, isto somente iria exacerbá-la.

Acreditamos que essa situação deve ser corrigida pela legislação ou mesmo pelo Juiz. Não obtida a composição civil, o juiz deve ouvir a vítima sem a presença do autor. Não há razão alguma para que o autor presencie o momento da representação, devendo ele ser trazido novamente à audiência quando da transação penal, ato que é personalíssimo e exige a sua presença.

Outra lei que se preocupou com a vítima foi a lei 9.503/98 que instituiu o Código de Trânsito. Nela, no art. 297, o legislador fez previsão da imposição de multa reparatória, “que consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime”.

Com base neste dispositivo, o juiz pode impor o pagamento de multa reparatória ao réu, desde que tenha ocorrido prejuízo material à(s) vítima(s), sendo certo que este valor será revertido à vítima e não poderá ser superior ao prejuízo demonstrado no processo.

A lei 9.605, de 12.2.98, criou no âmbito dos crimes contra o meio ambiente a pena da prestação pecuniária, que segundo a lei consiste no pagamento em dinheiro à vítima ou à entidade pública ou privada, com fim social, de importância, fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a 360 salários mínimos.

Com redação semelhante, a lei 9.714, de 25.11.98, que modificou a redação de vários artigos que tratavam das penas restritivas de direitos, criou a pena da prestação pecuniária. Segundo o art. 45, § 1º do Código Penal, com a redação dada pela lei acima referida, a prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima e seus dependentes de importância fixada pelo juiz.

Percebemos, então, que a legislação pátria, especialmente a partir da lei 9.099/95, preocupou-se muito com a vítima e com a reparação do dano, sendo este rumo a ser seguido pela vitimologia.

5. PERSPECTIVAS PARA A REPARAÇÃO DO DANO

Mesmo diante dos últimos avanços da vitimologia no campo da reparação do dano, muito ainda precisa ser feito. Embora a Lei 9.099/95 e as outras leis acima referidas tenham trazido importantes instrumentos para a busca da reparação, o certo é que em todas elas há a previsão de que a reparação do dano só será obrigatória quando o agente tiver meios de fazê-lo. No Brasil pobre em que vivemos, onde a situação dos réus reflete a situação do país, não há dúvida de que a maioria deles são pessoas pobres e incapazes de reparar o dano. Diante disso, todo e qualquer avanço no campo da reparação do dano esbarra na impossibilidade material dos réus. Já em 1973, Edgar de Moura Bittencourt escreveu o seguinte:

“Quando o infrator tem recursos, é simples a restauração do equilíbrio econômico, com a correlata ação de indenização, que a lei civil outorga ao ofendido contra seu ofensor. Mas quando este não tem com que indenizar ou pelo menos com o que indenizar cabalmente (talvez esta seja a maioria dos casos), restará a injustiça social, pelo desequilíbrio econômico”.(BITTENCOURT, op. cit., p. 34)

Solução interessante poderia ser a instituição de um fundo de reparação de danos às vítimas, constituído da receitas obtidas com as multas e com verbas estatais. O Estado, em última instância, tem por obrigação garantir os bens jurídicos e, em caso de lesão, deve promover a sua indenização.

Registramos que no 1º Congresso Internacional de Vitimologia, realizado em Jerusalém, foi recomendado que as nações criassem um instrumento oficial de compensação para as vítimas de crime, independente da reparação do dano por parte do próprio criminoso.(cf. FERNANDES & FERNANDES, 1995, p. 464)

Falando a respeito do tema, Scarance Fernandes relata o seguinte:

“Crescem os fundos de indenização. Preocupam-se os países em criar estímulos para que o delinqüente repare o dano, prevendo-se programas de reparação e de conciliação tendentes a evitar a imposição da pena, estimulando-se a reparação como pena para pequenos delito ou como sanção substitutiva, Acentua-se visível inclinação para admitir que entidades coletivas, associações, sindicatos, possam defender, em sede penal, interesses civis. A temática da responsabilidade por ato ilícito evolui de uma postura individualista, para um sentido coletivista, diante do contínuo progresso das teorias sobre socialização dos riscos na sociedade”.(1995, p. 161) (grifos no original)

Note-se a necessidade de que a multa penal, originariamente destinada a ressarcir o prejuízo da vítima, volte a ter esta destinação.

Desde os primeiros tempos, os pagamentos impostos ao agente ou os bens que lhe eram confiscados revertiam em parte para a vítima e em parte para o rei, os senhores feudais, a Igreja e o Estado. Na Idade Média, paulatinamente, as multas e os bens confiscados passam a ficar exclusivamente para a Igreja, os senhores feudais e os reis. Essa situação se consolidou com o fortalecimento do Estado e a multa passou a ser destinada à Administração Pública. Entre nós, a multa é destinada ao fundo penitenciário.

Ocorre que a obrigação de cuidar do sistema penitenciário deve ser atribuída ao Estado, não sendo razoável que as multas pagas pelos acusados e sentenciados sejam destinadas a esse fim. Muito melhor do que um Fundo Penitenciário, é a constituição de um Fundo de Reparação à vítima.

A nosso ver, este é o caminho da evolução e a perspectiva é de um sistema garantidor da reparação do dano. Somente com a constituição de um Fundo de Reparação à vítima, o Estado dará resposta eficaz à população que exige um sistema adequado, e que garanta o ressarcimento do dano causado pela criminalidade, pois em última instância é o Estado quem deve garantir a segurança da população.

6. CONCLUSÕES

Vários são os aspectos da vitimologia e procuramos abordar exclusivamente um deles, a reparação do dano. Vimos que o Código de 1830 deu grande ênfase à reparação do dano, mas que os demais Códigos não tiveram a mesma preocupação. Ao contrário, houve um esquecimento da vítima.

Essa situação só foi modificada com a edição da Lei 9.099/95, que trouxe importantes modificações no que diz respeito à reparação do dano, entre elas a composição civil, a ampliação do rol de delitos que dependem de representação e a suspensão condicional do processo, tendo a reparação do dano como uma das condições. Essas modificações caminham no sentido da valorização da vítima, tendência atual do direito penal, o que é percebido em outras leis editadas recentemente.

Mas todas essas modificações legislativas recentes não serviram para tornar efetiva a reparação dos danos na maioria dos crimes, pois os réus são pobres e estão impossibilitados materialmente de reparar o dano. Assim, como conclusão principal desta reflexão entendemos que há a necessidade de ser criado um Fundo de Reparação do Dano, instituído pelo Estado, e tendo como receitas dotações do próprio Estado e verbas decorrentes das penas pecuniárias.

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