A presença dos crimes econômicos e ambientais em nossa sociedade, com a participação cada vez maior das empresas para sua efetivação, o crescimento econômico, a globalização, que acarreta uma verdadeira desnacionalização, e, principalmente, a despersonalização dos fenômenos relativos às pessoas jurídicas provocaram a discussão mundial sobre a necessidade de sua responsabilização penal.
Esse tema é um dos mais relevantes e polêmicos da atualidade do Direito Penal, sendo abordado de diversas formas pela doutrina. Dividimos as posições doutrinárias em três: a daqueles que não aceitam a responsabilização penal das pessoas jurídicas, a dos que apenas concordam com a aplicação de medidas especiais e a daqueles que admitem a responsabilização penal.
1. O PRINCÍPIO SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST[1]
O Direito romano não admitia a responsabilização penal da pessoa jurídica, cunhando a expressão supra-referida, um dos alicerces do Direito Penal clássico.
No final do século XVIII, foi imposta a Teoria da Ficção de Feuerbach e Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual a pessoa jurídica é uma criação artificial da lei e, como tal, não pode ser objeto de autêntica responsabilidade penal, que somente pode recair sobre os reais responsáveis pelo delito, os homens por trás das pessoas jurídicas. Esse pensamento ainda é adotado nos dias de hoje por ampla doutrina.
Os dois principais fundamentos para não reconhecer a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica são a falta de capacidade de ação e de culpabilidade.
A doutrina contrária à responsabilização penal desdobra os principais argumentos, apontando o princípio da personalidade das penas, ou seja, somente é punível quem executou materialmente o ato criminoso, ou o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, para o qual a responsabilidade criminal recai exclusiva e individualmente sobre os autores das infrações, ou, ainda, o princípio da intransmissibilidade da pena e da culpa, para o qual as penas não deverão ultrapassar, em nenhum caso, da pessoa que praticou a conduta, como barreiras insuperáveis para a criminalização dos entes coletivos.
Na doutrina alemã, HANS-HEINRICH JESCHECK entende, nesse sentido:
(…) las personas jurídicas y las asociaciones sin personalidad únicamente pueden actuar a través de sus órganos, por lo que ellas mismas no pueden ser penadas. Además, respecto a ellas carece de sentido la desaprobación éticosocial que subyace em la pena, pues sólo contra personas individuales responsables cabe formular um reproche de culpabilidad, y no contra los miembros del grupo no participantes, o contra uma masa patrimonial[2].
Igualmente, CLAUS ROXIN declara:
Tampoco son acciones conforme al Derecho Penal alemán los actos de personas jurídicas, pues, dado que les falta una sustancia psíquico-espiritual, no pueden manifestarse a sí mismas. Sólo “órganos” humanos pueden actuar com eficacia para ellas, pero entonces hay que penar a aquéllos y no a la persona jurídica[3].
Na doutrina italiana, ANTONIO PAGLIARO:
Anziché parlare di condotta della persona giuridica, basta considerare la condotta della persona fisica che funge da suo organo (es.: amministratore di società). È sempre una persona fisica, anche se qualificata da uno certo rapporto com lénte, a porre la condotta illecita.
In questo senso può dirsi che le persone giuridiche non sono idonee a compiere una condotta penalmente illecita[4].
No Direito brasileiro, RENÉ ARIEL DOTTI afirma:
No sistema jurídico positivo brasileiro, a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente, às pessoas físicas. Os crimes ou delitos e as contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos[5].
No mesmo sentido, OSWALDO HENRIQUE DUEK MARQUES:
As sanções impostas aos entes coletivos, previstas na nova legislação, não podem ter outra natureza senão a civil ou a administrativa, porquanto a responsabilidade desses entes decorre da manifestação de vontade de seus representantes legais ou contratuais. Somente a estes poderá ser imputada a prática de infrações penais[6].
2. A RESPONSABILIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA POR MEIO DE MEDIDAS ESPECIAIS
A irresponsabilidade penal da pessoa jurídica encontra outra vertente doutrinária que entende ser necessária uma criação intermediária entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal, para neutralizar a periculosidade que determinadas pessoas jurídicas podem trazer para o sistema social.
Essa posição defende a adoção de medidas preventivas especiais integrantes de um:
Direito de Intervenção, que seria um meio-termo entre Direito Penal e Direito Administrativo, que não aplique as pesadas sanções de Direito Penal, especialmente a pena privativa de liberdade, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional, para combater a criminalidade coletiva (…)[7].
As medidas especiais aplicadas às pessoas jurídicas diferem das medidas de segurança, empregadas quando o sujeito manifesta periculosidade criminal, ou seja, o potencial para cometer fatos considerados delituosos, embora não tenha a capacidade penal para responder penalmente por eles.
Para os defensores dessa visão, a pessoa jurídica não tem capacidade para praticar crime e, portanto, não pode oferecer periculosidade criminal, não sendo cabível em relação a ela a aplicação de medida de segurança.
O Direito de Intervenção para as pessoas jurídicas é visto no Direito português como Direito de mera ordenação social, situado entre o Direito Penal e o Direito Civil, em que são possíveis as aplicações de sanções como a multa, por exemplo, mas sem implicar sanção penal.
JOÃO CASTRO E SOUZA, analisando a questão, defende:
(…) situando-se, porém, o Direito Civil e o Direito de mera ordenação social no âmbito do eticamente indiferente, compreende-se que a violação das suas normas possa ser levada a cabo, tanto por pessoas singulares, como colectivas, pelo que se lhes poderá reconhecer capacidade de acção nestes domínios e negar-lha no direito criminal[8].
SANTIAGO MIR PUIG[9], por sua vez, defende que as medidas especiais a serem aplicadas às pessoas jurídicas podem ser: a dissolução da entidade, a mera intervenção na empresa, o fechamento desta, a suspensão de suas atividades ou a proibição de realizá-las no futuro.
Reputamos que as medidas especiais, de caráter ordenatório, administrativo ou civil, podem ser utilizadas para a prevenção dos ilícitos praticados pelas pessoas jurídicas, mas são insuficientes para responder à realidade criminal econômica e ambiental de nossos dias, devendo ser aplicadas juntamente com medidas de caráter penal, fazendo parte de um sistema jurídico-penal novo, apto a atuar de forma eficaz no combate à criminalidade contemporânea, à lavagem de dinheiro, à criminalidade organizada etc.
Nesse sentido, a análise de FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:
Por fim, a responsabilidade civil ou administrativa não pode impedir a responsabilidade penal dos entes coletivos. Em primeiro lugar, porque esse tipo de responsabilidade possui, respectivamente, o escopo de reparar o dano causado ou meramente preventivo (no sentido de se impedirem maiores prejuízos à coletividade), enquanto a responsabilidade penal possui o de punir os atos que causam perturbação da ordem pública. Em segundo lugar, não se pode deixar de mencionar a possibilidade de decisões de cunho administrativo serem objeto de ingerências políticas, o que tem levado ao descrédito desse tipo de sanção. Acrescente-se que, dotado o ato administrativo de auto-executoriedade, não é incomum abusos no exercício desse poder[10].
3. O RECONHECIMENTO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA
O Direito Penal tradicional traz conceitos dogmáticos incompatíveis com a responsabilização penal da pessoa jurídica. As noções de conduta e de culpabilidade são formuladas de acordo com a pessoa humana, sendo impróprias para as pessoas jurídicas. O Direito Penal clássico é feito com a visão individualista, herdada do Iluminismo, como uma limitação ao poder do Estado.
A realidade social em relação à criminalidade, entretanto, vem forçando a superação dos dogmas clássicos, com a adequação do sistema penal para apresentar soluções em face da nova criminalidade econômica, ambiental e, enfim, social.
KLAUS TIEDEMANN analisa a realidade criminal nos diversos países, anotando:
De una parte, la sociología nos enseña que la agrupación crea um ambiente, um clima que facilita a incita a los autores físicos (o materiales) a cometer delitos em beneficio de la agrupación. De ahí la idea de no sancionar solamente a estos autores materiales (que pueden cambiar y ser reemplazados), sino también, y sobre todo, a la agrupación misma. De outra parte, nuevas formas de criminalidad como los delitos de los negocios, en los que quedan comprendidos aquéllos contra el consumidor, los atentados al medio ambiente y el crimen organizado, se instalan en sistemas y medios tradicionales del Derecho Penal ante dificultades tan grandes que una nueva aproximación parece indispensable[11].
Há necessidade de criarmos um novo sistema teórico, apto a resolver os conflitos supra-individuais existentes na atualidade e sequer imaginados pela visão tradicional. Diga-se, de passagem, que a mudança não é exclusiva do Direito Penal, mas de todo o Direito, diante dos novos desafios do convívio social.
Um dos principais aspectos da mudança está exatamente no reconhecimento da capacidade penal da pessoa jurídica. Todas as correntes doutrinárias reconhecem a importância da pessoa jurídica na criminalidade dos dias atuais. Desde a efetuação do crime até a sua ocultação, como a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico ilícito de entorpecentes, o que constitui, por si só, crime. As diferenças ocorrem apenas quanto à forma de atuação do Direito em face desta realidade.
Historicamente, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi admitida na Idade Média e por um período da Idade Moderna, especificamente entre os séculos XIV e XVIII. Depois, caiu em desuso, voltando a firmar-se na segunda metade do século XIX, com a teoria da realidade de Gierke, em contraposição à teoria da ficção. Para a teoria da realidade, a pessoa jurídica é um autêntico organismo, realmente existente, ainda que de natureza distinta do organismo humano. A vontade da pessoa jurídica é distinta da vontade de seus membros, que pode não coincidir com a vontade da pessoa jurídica. Assim, a pessoa jurídica deve responder criminalmente pelos seus atos, uma vez que é o verdadeiro sujeito do delito.
Na esteira de DAVID BAIGÚN, apontamos o sistema da dupla imputação como uma das modificações necessárias ao Direito Penal:
Este sistema, que se cobija ya bajo el nombre de doble imputación, reside esencialmente em reconocer la coexistencia de dos vías de imputación cuando se produce un hecho delictivo protagonizado por el ente colectivo; de uma parte, la que se dirige a la persona jurídica, como unidad independiente y, de la outra, la atribuición tradicional a las personas físicas que integran la persona jurídica[12].
A adoção do sistema de dupla imputação, na hipótese de delitos praticados pelas pessoas jurídicas, permite que em relação às pessoas físicas não ocorra mudança, continuando o sistema penal tradicional com os conceitos e garantias individuais historicamente fixados. Em relação às pessoas jurídicas, entretanto, poderá ser firmado um novo sistema, rápido e eficaz, conforme exige a realidade da criminalidade empresarial.
Partimos do pressuposto de que a pessoa jurídica está apta a praticar ações independentes das ações das pessoas físicas que a integram. Isso é reconhecido pelo Direito na atualidade, para a responsabilização civil e administrativa da pessoa jurídica. O reconhecimento da vontade própria dos entes coletivos, portanto, já está assentado, restando apenas a discussão da utilização do Direito Penal para essa realidade.
Conforme FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:
(…) as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Essa vontade independe da vontade de seus membros e constitui uma decorrência da atividade orgânica da empresa.
Conclui-se, portanto, que diante dessa vontade própria é possível o cometimento de infrações, de forma consciente, visando à satisfação de seus interesses[13].
Consideramos também que a ação praticada pela pessoa jurídica, chamada de ação institucional, tem natureza diversa da ação praticada pelos seres humanos. Desse modo, o dolo e a tipicidade devem ser analisados de forma diferenciada.
A ação institucional decorre de um fenômeno de inter-relação, entre cada um dos participantes e a própria instituição, sendo resultado de uma confluência de fatores que é independente da vontade dos seus membros ou diretores, ou mesmo sócios.
Ainda baseados em DAVID BAIGÚN[14], afirmamos que a formação da conduta da pessoa jurídica tem um tríplice aspecto: o normativo, o organizacional e o interesse econômico.
A decisão institucional é um produto normativo estipulado no estatuto social, de acordo com a legislação vigente em cada país, em que há divisão de funções internas, de administração, e externas, de representação, havendo fixação de atribuições e responsabilidades, ou seja, a decisão institucional deverá ser conforme os seus estatutos determinem.
A organização está diretamente relacionada com a ordem normativa, entretanto manifesta-se autonomamente, posto que engloba a coletividade humana que integra a empresa, bem como um sistema de comunicação institucionalizado, um sistema de poder e o conseqüente conflito interno, ou seja, o estabelecimento de um sistema de controle interno.
O interesse econômico está na gênese das empresas, ou seja, na própria razão da sua formação, constituindo ao mesmo tempo seu objetivo. O que precisamos demonstrar é a sua interação com os componentes normativos e organizacional para a produção da ação institucional.
O interesse econômico da empresa é um fator que está presente na conduta de todos os indivíduos que integram a instituição, como agentes da sua organização, constituindo o verdadeiro motor da ação institucional. Além disso, o interesse econômico institucional passa a ser independente dos interesses econômicos individuais, no sentido de que a empresa passa a ter um interesse econômico próprio, alienado dos seus integrantes. O denominador comum do funcionamento dos mecanismos estatutários normativos e organizacionais é o interesse econômico.
Após essa análise, evidenciamos que a ação institucional existe independentemente da ação das pessoas físicas e tem formação e características próprias e diferenciadas, de acordo com as quais deverá ser analisado o elemento subjetivo, ou seja, o dolo e a culpa, e a conseqüente tipificação da conduta institucional.
JOÃO MARCELLO DE ARAÚJO JÚNIOR discorre nesse sentido:
A doutrina inglesa, holandesa e americana, tendo à frente, principalmente, John Vervaele, de Utrecht, sustenta que, se a pessoa jurídica tem capacidade de ação para contratar, tem também capacidade para descumprir, por exemplo, criminosamente o contratado, logo tem capacidade de agir criminosamente. Além do mais, principalmente no que se refere ao Direito Penal Econômico, ilícitos existem em que a lei prevê, exclusivamente, a conduta da empresa. É o que acontece, entre outros exemplos, com os crimes contra a livre concorrência. Quem exerce a concorrência desleal é a empresa. A ação da pessoa natural que atua por conta e no proveito dela é expressão do agir da empresa, pois quem pratica a ação é a própria empresa[15].
Firmada a capacidade de ação da pessoa jurídica, resta estabelecer a possibilidade de imputação penal ou a culpabilidade institucional.
No sistema da dupla imputação, a culpabilidade deve ser vista como a culpabilidade do fato. Não há dúvidas quanto à individualidade da culpa para o Direito penal, ou seja, cada indivíduo deve ser analisado de acordo com a sua situação pessoal, as suas circunstâncias pessoais, dentro das suas diferenças. Conforme SÉRGIO SALOMÃO SHECAIRA, entretanto, “não se pode deixar de lembrar que essa culpa só existe pelo cometimento de um ato em particular. Na realidade, o ponto de partida da intervenção penal na órbita mais geral do Direito é a prática de um fato delituoso previamente descrito em um tipo penal”[16].
A análise do renomado autor continua:
Não há que se negar que, uma vez constatada a culpabilidade em face da lesão a certo bem jurídico protegido pela norma penal, a conseqüência imediata é a intervenção estatal através da pena. Esta será aplicada – sempre – como uma última instância de controle social, observados os princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima, vigentes no Estado Democrático de Direito. O parâmetro para a aplicação da pena é, pois, delimitado pelo próprio princípio da culpabilidade, posto que a pena só há de ser implementada quando necessária e útil[17].
De acordo com essa visão, a culpabilidade da pessoa jurídica surge sem problemas teóricos, possibilitando ao Direito Penal realizar a imputação aos graves delitos praticados pelos entes coletivos.
JOÃO MARCELLO DE ARAÚJO JÚNIOR ressalta:
A admissão da capacidade de agir conduz, necessariamente, à da capacidade de culpa. Podemos, entretanto, agregar que a teoria do risco da empresa, conseqüente da culpa na própria organização e atuação, legitima a responsabilidade penal da pessoa jurídica e justifica a atribuição a ela, cumulativa ou isoladamente, do crime cometido por seus representantes em proveito da empresa. É esta a teoria da vantagem econômica, que fundamenta o juízo de reprovação pelo crime. Trata-se, assim, de uma categoria nova que a jurisprudência portuguesa e as propostas da Comunidade Européia chamam de “responsabilidade própria da empresa” (…)[18].
4. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO
A Constituição Federal determinou expressamente a aplicação de sanções penais e administrativas às pessoas jurídicas que praticarem condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, no seu art. 225, § 3.º. WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG, ao analisar o referido dispositivo constitucional, entende: “O art. 222, § 3.º, é até mais incisivo: para os estritos fins de tutela ao ambiente natural, equiparam-se pessoas jurídicas às físicas, ambas igualmente sujeitas a sanções quer penais, quer administrativas”[19].
O legislador ordinário está obrigado a estipular as sanções penais cabíveis às pessoas jurídicas que praticarem crimes ambientais, por força da norma constitucional em questão, que adotou importante posicionamento renovador, de acordo com as orientações da Comunidade Internacional.
A Organização das Nações Unidas, em seu VI Congresso para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, reunido em Nova Iorque em julho de 1979, no tocante ao tema do delito e do abuso de poder, recomendou aos Estados-membros o estabelecimento do princípio da responsabilidade penal das sociedades. “Isto significa que qualquer sociedade ou ente coletivo, privada ou estatal, será responsável pelas ações delitivas ou danosas, sem prejuízo da responsabilidade individual de seus diretores”[20].
Em relação aos demais crimes praticados pela pessoa jurídica, a Constituição Federal não foi explícita, mas permitiu que a legislação infraconstitucional estipulasse sanções penais cabíveis para a chamada criminalidade econômica, conforme a seguinte redação do seu art. 173, § 5.º:
Art. 173 (…)
(…)
§ 5.º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
As sanções penais são compatíveis com as pessoas jurídicas, conforme verificamos, de um modo geral, com exceção evidente da pena privativa de liberdade, devendo o legislador ordinário adequar as sanções civis, penais e administrativas à natureza dos entes coletivos, sem que isso prejudique a eventual sanção individual dos dirigentes.
Novamente WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG, analisando o referido dispositivo constitucional:
Fora de dúvida, entretanto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica está prevista constitucionalmente e necessita ser instituída, como forma, inclusive, de fazer ver, ao empresariado, que a empresa privada também é responsável pelo saneamento da economia, pela proteção da economia popular e do meio ambiente, pelo objetivo social do bem comum, que deve estar acima do objetivo individual, do lucro a qualquer preço. Necessita ser imposta, ainda, como forma de aperfeiçoar-se a perquirida justiça, naqueles casos em que a legislação mostra-se insuficiente para localizar, na empresa, o verdadeiro responsável pela conduta ilícita[21].
O legislador ordinário deu cumprimento à determinação constitucional explícita de reconhecer a responsabilização criminal da pessoa jurídica no que se refere aos crimes ambientais, por meio da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que, em seu art. 3.º, assim dispõe:
Art. 3.º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
A nossa legislação ambiental, portanto, estipulou a responsabilidade criminal da pessoa jurídica no âmbito dos crimes ambientais, determinando para tal responsabilização dois requisitos:
a) Que a decisão sobre a conduta seja cometida por seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado. Nesse passo, a nossa lei considerou a ação institucional de acordo com a sua normatização interna e seu caráter organizacional, conforme expusemos. A decisão deve ser tomada por quem estatutariamente poderia fazê-lo em nome da empresa e seguindo sua determinação organizacional interna.
b) Que a infração seja cometida no interesse ou benefício da pessoa jurídica. Mais uma vez, a legislação reputou a ação institucional dentro dos seus caracteres elementares, ao exigir o interesse econômico da empresa como finalidade da conduta infracional praticada.
[1] Expressão em latim que significa “A sociedade não pode delinqüir”.
[2] Tratado de Derecho Penal: Parte General. Trad. José Luiz Manzanares Samaniego. 4.ª ed. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 205.
[3] Derecho Penal: Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civitas, 1999. p. 258-259.
[4] Principi di Diritto Penale: Parte Generale. 6.ª ed. Milano: Giuffrè Editore, 1994. p. 161.
[5] DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica: uma perspectiva do Direito brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 11, jul./set. 1995. p. 201.
[6] A responsabilidade da pessoa jurídica por ofensa ao meio ambiente. Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 65, abr. 1998. p. 7. Edição especial.
[7] HASSEMER, Winfried. Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES, Luiz Flávio (coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. São Paulo: RT, 1999. p. 71.
[8] As pessoas colectivas em face do Direito Criminal e do chamado “Direito de mera ordenação social”. Coimbra: Coimbra Editora, 1985. p. 113.
[9] Derecho Penal: Parte General. 5.ª ed. Barcelona: [s. n.], 1998. p. 174.
[10] Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 45.
[11] Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en el Derecho comparado. In: GOMES, Luiz Flávio (coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. São Paulo: RT, 1999. p. 27.
[12] Naturaleza de la acción institucional en el sistema de la doble imputación. Responsabilidad penal de las personas jurídicas. In: BAIGÚN, David; ZAFFARONI, Eugenio Raul; GARCÍA-PABLOS, Antonio e PIERANGELI, José Henrique (coords.). De las penas. Buenos Aires: Depalma, 1997. p. 25-59.
[13] Op. cit. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. p. 40.
[14] Naturaleza de la acción institucional en el sistema de la doble imputación. Responsabilidad penal de las personas jurídicas. In: BAIGÚ, David; ZAFFARONI, Eugenio Raul; GARCÍA-PABLOS, Antonio e PIERANGELI, José Henrique (coords.). De las penas. p. 35.
[15] Societas delinquere potest: revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e Direito Penal. In: GOMES, Luiz Flávio (coord.). São Paulo: RT, 1999. p. 89.
[16] Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: RT, 1999. p. 78.
[17] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. p. 80.
[18] Op. cit. Societas delinquere potest: revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina. p. 91-92.
[19] A pessoa jurídica criminosa. Curitiba: Juruá, 1997. p. 24.
[20] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Op. cit. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. p. 45.
[21] Op. cit. A pessoa jurídica criminosa. p. 20.
* Gianpaolo Poggio Smanio
Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP; Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus; Promotor de Justiça de São Paulo