A revoada dos corvos

João Antonio Garreta Prats

São Paulo viveu uma grande tragédia. Numa verdadeira ação terrorista, criminosos desencadearam covardes ataques a policiais, matando mais de trinta integrantes das polícias civil e militar. À repugnância pelas vis ações de uma facção criminosa, somaram-se a perplexidade e a consternação da sociedade brasileira com as famílias daqueles que morreram somente porque escolheram a proteção dos cidadãos de bem como profissão.

Na primeira hora, a maior emissora de televisão do país expressou, em editorial: “Quem sabe esta tragédia não seja a oportunidade que nos faltava para refletir sobre esses homens e mulheres, que por tão pouco soldo, protegem algo muito frágil, delicado: a construção do Brasil”. (Programa Fantástico, de 14 de maio de 2006)

Quando se esperava que fossem deixados de lado as paixões políticas e os interesses menores; que fossem reconhecidos o heroísmo dos que sucumbiram e a extrema coragem dos que, para restaurar a paz, enfrentaram tão perigosos facínoras sem sequer poder chorar pelos companheiros tombados; alguns representantes de órgãos estatais e de organizações não governamentais esforçam-se para desmoralizar os responsáveis pelo restabelecimento da ordem.

Atraídos pelas luzes de setores da imprensa, interessados na fácil notoriedade, buscando tirar proveito da situação, eles pretendem fazer crer que a resposta das autoridades foi exagerada. Invertem completamente os valores. Saídos das sombras, clamam pela punição de agentes da lei por excessos de que sequer indícios há. Postulam a destituição dos responsáveis pelos órgãos de segurança. Exigem publicação de nomes de marginais mortos, ainda que isso possa custar a vida de mais policiais ou atrapalhar a punição dos que ainda estão soltos. “Em redor das grandes luzes,/ há sempre sombras perversas/ Sinistros corvos espreitam/ pelas douradas janelas.” (Cecília Meireles, em Romance XXI ou das idéias)

Não lhes importa a apuração efetiva. Contentam-se com simples históricos de boletins de ocorrência e esboços de laudos. É que têm medo de que, passado o estrépito, não mais tenham palco para satisfazer seus egos e defender seus escusos interesses. São perigosos como corvos. Há um ditado espanhol que ensina: crie corvos, e eles lhe arrancarão os olhos.

A Justiça não pode abrigar operadores que não tenham como missão buscar a verdade. Entendemos que não há espaço para a busca da fama, da realização de sentimentos de satisfação pessoal, como vendeta e projeção na mídia. O que, evidentemente, constituem-se de aspectos que em nada auxiliam na realização do direito penal.

Talvez haja excessos por parte da reação policial. Aliás, eles são até prováveis ante ao clima que se instalou na cidade e no Estado durante o período em que os criminosos espalharam o terror e o medo. Ninguém pode compactuar com a impunidade, menos ainda o Ministério Público de São Paulo. E assim, se algum agente do Estado se desviou de suas atribuições, ele deve ser punido. Entretanto, parece-nos que a precipitação e a busca desenfreada pela capas de jornais e noticiários televisivos têm conduzido a injustiças que o tempo não é capaz de cicatrizar. Para ficar em dois exemplos recentes: Escola Base e Bar Bodega.

Um outro aspecto temerário da divulgação precipitada: a própria investigação! Trata-se de princípio básico que a técnica investigativa envolva discrição e trabalho árduo. Nenhum criminoso agiria se soubesse investigado. Divulgar dados sem nenhum critério apenas traz prejuízo ao Estado e benefício aos delinqüentes, conscientes de cada passo da investigação.

Por fim. Quem se responsabilizará pela vida de agentes policiais infiltrados, promotores que se aprofundam nos casos e juízes que autorizam atos como a escuta judicial? Quem pode garantir que a divulgação de partes da investigação não comprometa outras ações igualmente importantes? Se, uma vez mais, os criminosos se safarem, estas pessoas que hoje apenas buscam holofotes virão a público e explicarão as suas culpas?

O momento exige dedicação ao Estado e à sociedade e não a busca desenfreada de projeção. Precisamos de cautela, trabalho sério, obstinação, revolta com a barbárie e união. Não tenho dúvida da capacidade dos promotores e procuradores de justiça de São Paulo. Não precisamos, como o Estado de São Paulo também não precisou, de ajuda externa. Temos em nossos quadros os melhores profissionais que este país já produziu.

É por isso que os promotores de Justiça que atuam no Foro Central Criminal da Capital (SP) firmaram documentos recolocando as coisas em seu devido lugar. Hipotecaram solidariedade às famílias enlutadas e reconheceram a eficiência das polícias civil e militar. Há a certeza de que, como sempre, aqueles que verdadeiramente se dedicam à garantia da paz e da ordem, cumprirão seus papéis, norteados exclusivamente pela lei.

Passada a revoada dos corvos, prevalecerão os verdadeiros valores democráticos.

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