Autor:José Calvo González (*)
Outra vez na tarefa de organizar minha biblioteca. É o custo de recorrer a ela com regularidade. Carrego obras que nestas semanas estavam entre minhas leituras e alguns dos escritos que se seguiram a elas. Uma delas é The path of the law, trata-se da conferência ditada por Oliver Wendell Holmes Jr., em 8 de janeiro de 1897 em Boston. Sua oportunidade esteve na ampliação de instalações da Universidade daquela cidade. Eram tempos em que o batismo dos edifícios se fazia com dissertações a cargo de juristas prestigiados; Holmes era juiz do Tribunal Supremo de Massachussets. Agora acontece de modo muito diferente e os políticos da academia e o colégio completo dos habitantes locais recorrem ao sacramento imobiliário. Sua conferência teve, além do formato apropriado, a qualidade que a Harvard Law Review reconheceu ao publicá-la pouco tempo depois.
Organizando minha biblioteca lembrei-me de meus amigos do Brasil — muitos estão nela — através de Holmes. Os caminhos da biblioteca são inescrutáveis. O Direito e sua Teoria no Brasil teve até pouco tempo um certo ar de família com o pensamento jurídico norte-americano da época em que Holmes pronunciou aquela conferência. Um dos assuntos — entre os vários que a integram — que este nela criticava era o “modelo de juiz” que, intimamente aglutinado a regras do Common Law britânico, limitava sua tarefa interpretativa à subsunção do caso concreto nos esquemas das regras gerais disponíveis, cuja pureza não-contaminada assegurava um desenvolvimento lógico-formal totalmente desentendido da Política. Holmes considerava que saber jurídico devia consistir em algo mais, e em algo diferente. Holmes, profeta de outro tempo, do futuro — todo profeta o é — anunciou em uma manhã que o porvir se cumpriu no Brasil. Hoje no Brasil se cumpriu a profecia. O conceito de Direito e sua aplicação nos tribunais seguiu uma senda que leva até o Brasil. A senda do Direito de Holmes desemboca no Brasil.
Os membros das mais altas instâncias judiciais deste país concretizaram a profecia. Da Academia — os teóricos e docentes do Direito — também colaboram, prestando o maior afã ao vaticínio. Tudo acontece com o inestimável esforço vanguardista de neoconstitucionalistas e a guarda pretoriana do ativismo judicial. Nada disso Holmes havia previsto, certamente. Mas os discípulos mais queridos estão para consumar a morte do maestro. E sempre há ferozes disputas por ser o primeiro da lista. À margem dessa pequena questão — de tamanho doméstico — o fundamental é a profecia. Holmes anunciou: “O objeto do nosso estudo, então, é a predição: a predição da incidência da força pública através da atuação dos tribunais”. O Direito como um saber da verdade jurídica: o Oráculo da Lei. E o que disseram que a lei diz que diz que é; unicamente o dictum de uma profecia. O direito legislado, as regras, não passam de ser uma pré-dição; é necessário esperar à jurisdictio, à dicção do Direito pelos tribunais. Holmes, como augur, adivinhou a conduta dos órgãos jurisdicionais do Brasil do século XXI. Adiantou o futuro. Holmes escreveu: “As profecias acerca do que os tribunais farão realmente e nada mais pretensioso que isso, é o que eu entendo por direito”. Brasil chegou a Holmes pela mais sinuosa senda do Direito.
Dedico a enganosa brevidade deste argumento a meu amigo Lenio Luiz Streck, herege da profecia; o último dos heresiarcas, que predica o Senso Incomum desde o deserto dos tártaros brasileiros.
*Texto traduzido por Rafael Giorgio Dallabarba, mestrando em direito na Unisinos.
Autor:José Calvo González é catedrático de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Málaga.