Olney Queiroz Assis*
O ingresso do menor incapaz na sociedade limitada por causa mortis (herança de cotas) ou por ato inter vivos (doação ou alienação de cotas) já mereceu muitas discussões doutrinárias. Analisando mandado de segurança contra a decisão de Junta Comercial, que negou arquivamento de contrato social em virtude da presença de sócio incapaz, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as Juntas Comerciais e os Registros Civis das Pessoas Jurídicas devem aceitar contratos ou alterações de contratos de sociedade de responsabilidade limitada com sócio incapaz (menor), desde que presentes os seguintes pressupostos: a) o incapaz não pode exercer a gerência; b) o capital social deve estar totalmente integralizado; c) o absolutamente incapaz deve ser representado e o relativamente incapaz deve ser assistido pelos seus representantes legais. Com base no entendimento unânime do STF, as Juntas Comerciais e os Registros Civis das Pessoas Jurídicas passaram a aceitar os contratos ou alterações contratuais com sócios incapazes, desde que presentes os pressupostos indicados pelo Tribunal.
Os pressupostos prescritos para o menor devem também incidir sobre as demais categorias de incapazes, inclusive as pessoas portadoras de deficiência mental. Aliás, em relação ao empresário individual, o Código Civil estabelece que o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, poderá continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança (art. 974). Para a continuação da empresa, é necessária a autorização do juiz mediante concessão de alvará judicial, após exame das circunstâncias e dos riscos da empresa e também da conveniência em continuá-la, podendo a autorização ser revogada pelo juiz, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou interdito, sem prejuízo dos direitos adquiridos por terceiros (art. 974, § 1.º). Mediante autorização judicial, portanto, o incapaz (inclusive o portador de deficiência mental, o ébrio habitual e o dependente de tóxicos), por meio de representante ou devidamente assistido, pode continuar o exercício da empresa nas hipóteses apontadas pela lei: incapacidade superveniente ou herança.
Vale dizer, se o empresário individual adquire uma deficiência mental (incapacidade superveniente) que o impede de continuar gerindo os negócios, o representante legal (curador), devidamente nomeado pelo juiz, poderá continuar o exercício da empresa. Do mesmo modo, se um empresário individual falece, o herdeiro portador de deficiência mental poderá sucedê-lo no negócio praticando os atos por intermédio de um representante legal (curador).
Sobre a cessão de cotas de sociedade, é importante especificar as duas possibilidades:
I – Transmissão inter vivos: o contrato social pode estabelecer a livre cessão das cotas (sociedade de capital) ou impor restrições pela exigência da concordância prévia dos demais sócios (sociedade de pessoas). Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua cota a terceiros, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social (CC, art. 1.057).
II – Transmissão causa mortis: a morte do sócio não acarreta por si só a dissolução da sociedade. O contrato social pode estabelecer não só a cláusula de continuação da sociedade mas também a cláusula que determine: a) ou a continuação da sociedade com os herdeiros (sociedade de capital); b) ou a dissolução parcial, com levantamento de balanço especial para pagar os haveres do sócio morto (sociedade de pessoas).
Não é lícito aos sócios sobreviventes recusar a entrada na sociedade dos herdeiros do sócio morto, desde que o contrato social contenha cláusula que estabeleça a continuação da sociedade com os herdeiros. Mas aos herdeiros é facultado entrar ou não na sociedade. Como os herdeiros não são sócios, mas apenas credores nos limites dos seus respectivos quinhões, aplica-se o princípio constitucional da livre associação.
Isso posto, no caso de uma sociedade de capital, as cotas do sócio falecido podem ser, mediante formal de partilha, transferidas ao herdeiro incapaz, mesmo quando se trata de herdeiro portador de deficiência mental, ébrio habitual ou dependente de tóxicos. No caso de sociedade de pessoas, a solução é outra; os herdeiros não sucedem o sócio morto, é feita, de acordo com a lei, a liquidação parcial da sociedade, com a apuração dos haveres, mediante balanço de determinação, que deverão ser entregues ao espólio.
É INCONSTITUCIONAL A EXCLUSÃO DO SÓCIO FUNDADA EM INCAPACIDADE SUPERVENIENTE
A incapacidade superveniente decorre de embriaguez habitual, dependência de tóxicos e deficiência mental completa ou reduzida (CC, art. 4.º, II). O Código Civil prevê a hipótese de o sócio ser excluído judicialmente da sociedade por incapacidade superveniente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios (art. 1.030). Não obstante o teor literal dessa norma, a interpretação sistemática exposta indica que a incapacidade superveniente não constitui, em absoluto, motivo para exclusão, mas apenas hipótese que justifica o afastamento do sócio do cargo de administrador. A incapacidade, seja por deficiência mental, embriaguez habitual ou dependência de tóxicos, deve ser comprovada com sentença judicial que declare o sócio incapaz. A mesma sentença deve nomear pessoa com poderes para representar o incapaz perante a sociedade.
A tecnologia jurídica, apressada em tecer comentários sobre o Código Civil ou apegada em demasia ao teor literal da norma, conclui, sem maiores considerações, que é possível a exclusão do sócio em virtude de incapacidade superveniente, mediante decisão judicial, em ação proposta pela maioria dos demais sócios. Na interpretação da norma que autoriza tal exclusão, é preciso fixar duas premissas: a) exclusão é uma sanção que só se justifica no caso de falta grave; b) a incapacidade por deficiência mental, ao contrário da incapacidade por embriaguez ou dependência de tóxicos, não decorre de ato voluntário.
É óbvio que a incapacidade superveniente justifica plenamente o afastamento do sócio do cargo de administrador, mas não justifica a exclusão. O sócio cotista apenas participa dos lucros da empresa, motivo pelo qual a sua incapacidade, superveniente ou congênita, não afeta nem compromete a estrutura empresarial, conforme já decidiu o STF no caso do menor incapaz. Não faz sentido, portanto, a exclusão do sócio cotista com fundamento em incapacidade congênita ou superveniente. Ademais, a exclusão do incapaz, especialmente aquele que adquire uma deficiência mental, não se ajusta aos valores que têm presidido a interpretação dos princípios constitucionais que tratam dos direitos e garantias das pessoas portadoras de deficiência. É bom lembrar que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (LICC, art. 5.º). A exclusão é uma sanção que deve ser aplicada ao sócio que age de má-fé, que não observa o dever de lealdade ou não cumpre as obrigações contratadas. A expulsão é um ato que repercute negativamente na auto-estima do sócio excluído e, na maioria das vezes, significa perda de patrimônio, especialmente quando se trata de empreendimento que progressivamente vem obtendo sucessos financeiros e reputação no mercado.
É pouco provável a hipótese de uma pessoa adquirir uma deficiência mental por vontade própria. A dependência de álcool e de tóxicos, embora resultante de um ato de escolha (uma péssima escolha), é um problema social que, não obstante a literalidade da norma constante do art. 482 da CLT, não constitui motivo para a demissão (exclusão) do empregado por justa causa no âmbito do Direito do Trabalho, conforme reiteradas decisões dos Tribunais. Dessa forma, também não pode ser considerada “falta grave” para a exclusão do sócio da sociedade. Os valores sociais predominantes impõem que se enxergue o dependente de álcool ou tóxico como uma pessoa que necessita de ajuda terapêutica. Sob esse ponto de vista, o incapaz se enquadra no conceito de pessoa portadora de deficiência, razão pela qual a norma do Código Civil que autoriza a exclusão de sócio por incapacidade superveniente afronta diversas normas constitucionais, inclusive o princípio da função social da empresa (CF, art. 5.º, XXIII).
Imagine um sócio administrador que tenha dedicado grande parte de sua vida ao sucesso do empreendimento e que, por algum motivo (idade avançada, acidente no trânsito ou trabalho), adquira uma deficiência mental. Situações como essas não podem, em hipótese alguma, justificar a expulsão daquele que se dedicou à preservação da empresa e sempre se comportou com lealdade e boa-fé perante os demais sócios. Vale dizer, a interpretação teleológica evidencia que a exclusão fundada em incapacidade superveniente não coaduna com os valores que presidem os princípios constitucionais. Assim, a interpretação literal da norma que autoriza a exclusão do sócio incapaz (incapacidade superveniente) implica a inconstitucionalidade da norma.
A interpretação teleológica também evidencia que a exclusão fundada em deficiência superveniente consiste em negar os princípios da lealdade e da boa-fé, que presidem as relações dos sócios entre si. Vale dizer, a incapacidade superveniente por si só, em especial a que resulta de deficiência mental, não justifica a exclusão do sócio da sociedade. Vale fixar que qualquer forma de exclusão que atinge a pessoa em virtude da sua deficiência constitui afronta aos princípios básicos da Constituição Federal (art. 5.º; art. 34, VII, “a”; art. 7.º, XXXI; art. 23, II; art. 24, XIV, além de outros).
* Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP e Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus.