A súmula cancelada do TST e o desafio da substituição processual

O TST cancelou o Enunciado 310, que consagrava a tese no sentido de que “o artigo 8º., inciso III, da Constituição Federal, não assegura a substituição processual pelo sindicato”. Essa súmula se baseava no entendimento de que o dispositivo constitucional não seria auto-aplicável, isto é, dependeria de legislação definindo as hipóteses em que o sindicato poderia agir em nome próprio defendendo direitos de terceiros (trabalhadores). Quando da sua edição, poucas eram as hipóteses expressas na legislação infraconstitucional, como, por exemplo, a Lei 8073/90, que autoriza o Sindicato demandar a satisfação da legislação de política salarial.

O Enunciado começou a ruir em dezembro passado, quando os ministros da Seção Especializada iniciaram o exame de um recurso de embargos (ERR 175894/95) interposto pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Petroquímicas do ABCD paulista. Sentiu-se a necessidade de reformular ou cancelar a súmula, optando-se pela segunda alternativa.

A opção adotada indica claramente que a Seção Especializada não se convenceu, ao menos ainda, da antítese, ou seja, que o artigo 8º., III, da Constituição garantiria aos Sindicatos substituição processual irrestrita. Fosse essa a convicção de Suas Excelências, a súmula teria sido revista, e não cancelada.

O “silêncio” (vácuo sumular), aqui, não é tão “eloqüente” quanto alguns podem estar imaginando, senão e unicamente para mostrar que a substituição processual deve ser mais ampla do que admitido na redação do Enunciado cancelado.

A jurisprudência terá que ser reconstruída, mais uma vez, caso a caso, até se chegar a um novo consenso. Terão papel fundamental as instâncias inferiores nesse debate, pois do confronto de várias decisões paradigmáticas, em recursos de revista (art. 896, “a”, CLT) e de embargos para a SBDI (art. 894, “b”, CLT), é que a questão poderá ser mais uma vez cristalizada em um novo Enunciado.

Independentemente da interpretação literal que se pudesse intuir do inciso III do art. 8º da Carta vigente, é indiscutível que o principal papel das entidades sindicais é mesmo a “defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”.

Dentre os objetivos dos sindicatos, previstos desde muito antes da Constituição de 1988, no artigo 511 da CLT, não há como negar que a “defesa e coordenação dos interesses econômicos ou profissionais” é primordial, ou seja, tem importância fundamental, maior ainda do que a assistência social e o patrimônio. Tanto assim que as alíneas do artigo 519 da CLT são dispostas justamente por ordem de importância: na primeira alínea (“a”) consta o “número de associados”; na segunda (“b”), os serviços sociais; e na última (“c”), o valor do patrimônio.

Sindicato não é, por excelência, entidade benemerente, mas órgão de defesa dos interesses de uma determinada categoria.

A velha máxima “a união faz a força” é absolutamente pertinente e necessária para que a classe trabalhadora possa se colocar diante do poder econômico em pé de igualdade. Qualquer iniciativa que subestime ou dificulte a ação conjunta dos trabalhadores através de ente impessoal e coletivo terá como conseqüência o desequilíbrio dessas relações. José Augusto Rodrigues Pinto (Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, LTr, São Paulo, 1998, pág.135) lembra: “Não há a menor dúvida de ser de luta pela conquista de melhores condições laborais e existenciais dos trabalhadores o primeiro papel do sindicato moderno. Foi nessa necessidade, firmada na consciência de oposição da força do número contra o poder econômico, sua própria razão de surgir na esteira da Revolução Industrial, como traço de coesão das categorias profissionais”.

A eficácia da atuação sindical depende mais da disponibilização de instrumentos e menos do mero título de tutor de interesses da categoria.

O Enunciado 310 realmente parecia rigoroso demais e desafinado até com o espírito democrático que fundamenta toda a Constituição Federal de 1988. Não bastasse o artigo 3o., é possível identificar verdadeiro princípio que foi polvilhado sobre a redação de vários outros dispositivos da Constituição Federal, deixando evidente que o que se busca é a participação mais efetiva da sociedade organizada. Para ficarmos em apenas três exemplos (do estímulo empolgado do legislador constituinte com a participação social), é possível encontrar nítidos traços da difusão de responsabilidades (descentralização de poder) nas diretrizes das ações e serviços públicos de saúde (art. 198, inciso III: “participação da comunidade”), das ações governamentais na área da assistência social (art. 204, inciso II: “participação da população, por meio de organizações representativas”) e na educação (art. 205: “colaboração da sociedade”).

Não poderia ser diferente nas relações entre capital e trabalho. Esperar que o Estado garanta, sozinho, a melhoria das condições do trabalhador é ignorar as suas limitações.

O capitalismo contemporâneo não se equilibra, não se regula e não se harmoniza sem os chamados corpos intermediários. Estão aí para quem quiser ver as organizações não governamentais (ONG’s), sem as quais boa parte das iniciativas sociais simplesmente não existiriam.

O desafio, agora, é decidir entre duas hipóteses de substituição processual: ampla e irrestrita, ou restrita aos direitos difusos, coletivos e individuais da categoria.

Os interesses individuais da categoria devem ser entendidos do ponto de vista do grupo, e não da soma dos interesses individuais desse grupo. Em outras palavras, como lembra Regina Maria Vasconcelos Dubugras (Substituição Processual no Processo do Trabalho, LTr, São Paulo, 1998, pág. 68), “corresponde ao próprio interesse da “pessoa moral” no tocante à sua economia e seu patrimônio pessoal”, para quem, ademais, inclusive no caso das contribuições sindicais, “o sindicato como categoria organizada, pela sua própria natureza é pessoa de direito coletivo e seus interesses são exclusivamente de cunho coletivo” (idem).

Entre as duas hipóteses, o bom senso parece recomendar imediatamente a segunda. Do contrário, atribuir-se-ia aos sindicatos poder maior do que a Constituição e a legislação infraconstitucional atribuem, por exemplo, ao Ministério Público, que só pode manejar as ações civis públicas para a defesa de interesses difusos e coletivos, mas não para individuais homogêneos.

A demarcação das fronteiras da substituição processual pelos sindicatos, tudo indica, será fincada paralelamente às que limitam a atuação do Ministério Público, até porque no inciso III do artigo 8o. da Constituição assim se quis explicitamente, ao não se incluir os direitos individuais dos trabalhadores, mesmo havendo homogeneidade.

Portanto, deverão ser aproveitadas a doutrina e a jurisprudência relativas à (i)legitimidade do Ministério Público para ações civis públicas, guardadas as necessárias proporções (afinal o MP defende a sociedade e os sindicatos apenas a categoria), para a se fixar o poder dos sindicatos de exigir em juízo, em nome próprio, direitos alheios.

Em nível de Turmas do TST, entretanto, essa tendência ainda não é palpável. Em recente acórdão da 4ª Turma (proc. TST-RR-665.016/2000.7) os postulados do Enunciado 310 se fizeram sentir, uma vez que o Sindicato-autor foi considerado parte ilegítima para postular a multa do parágrafo 8o. do art. 477 da CLT, sob os fundamentos de que “o art. 8o., inciso III, da Constituição Federal não assegura a substituição processual pelo sindicato” e que a substituição processual ainda é excepcional, admitida na defesa dos associados e, ainda assim, somente nas hipóteses expressamente previstas em lei.

O Sindicato deveria ser considerado parte ilegítima não por esses motivos, mas porque a multa por atraso na quitação das rescisórias é um direito individual homogêneo, não chegando sequer a configurar interesse ‘individual da categoria” (art. 8o. III, CF).

Os níveis de concentração de renda ainda são vergonhosos no Brasil, como mostra o excelente trabalho do IBGE recentemente publicado. É um sinal evidente que na correlação de forças, o capital ainda está levando larga vantagem sobre o trabalho.

José Luis Fiori, cientista político e professor titular de Economia Política Internacional das Universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro, autor do livro O Vôo da Coruja – Para reler o desenvolvimento brasileiro (Ed. Record, 144 págs.), em entrevista publicada na edição desta semana da revista Carta Capital (págs. 32/34), relembra uma velha tese de Marx sobre a “tendência à pauperização e o desenvolvimento desigual do capitalismo”, bastante negada e criticada ao longo do século XX. Mas as estatísticas formam um retrato bastante objetivo do século passado e devem servir para reflexão sobre a necessidade de aperfeiçoar o capitalismo a partir dos resultados até agora muito ruins na América Latina.

A ampliação da substituição processual é um dos muitos instrumentos que podem contribuir para modernizar o sistema, não só do ponto de vista da justiça social e da cidadania, como, principalmente, do abandono do individualismo. Evolução essa que o processo civil já alcançou no mundo inteiro, em boa parte também entre nós.

O artigo 6o. do CPC não constitui qualquer óbice, afinal princípio constitucional estimula a participação da sociedade organizada. Desta maneira, a interpretação do CPC e de outras leis processuais sofrem influência desse princípio constitucional, e não vice-versa.

Mas sem exageros, sob pena de pecar pelo outro extremo: o de transformar a substituição processual em panacéia para todos os males, o que já se tentou fazer também com a ação civil pública.

Mário Gonçalves Júnior é advogado do escritório Demarest & Almeida Advogados, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho

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