Autor: Lúcio Delfino (*)
À moda [1] do sistema jurídico anglo-saxão, a legislação processual trouxe para o Brasil a técnica da superação (ou overruling), cujo propósito segue rumo a: i) extirpar em definitivo da ordem jurídica provimento[2]obrigatório alvo de invencível desgaste pela dinamicidade social;[3] e ii) substituir o provimento eliminado por entendimento normativo que preencha o vazio que até então havia sido deixado. Se o sistema normativo traz em si uma obsolescência notada de tempos em tempos, é preciso que esteja abastecido de ferramental capaz de, num só é único lance, varrer velharias do seu espectro e promover uma auto-dinamização em socorro às conveniências e necessidades da sociedade.
Questão fulcral, hoje no centro do debate doutrinário, diz respeito a quem pode superar provimentos obrigatórios. Seria mecanismo cuja utilização estaria liberada a todo e qualquer órgão judicial, ou seu manejo reservar-se-ia apenas àquele tribunal responsável por ensejar a criação do procedente obrigatório? Advirta-se desde logo que não está em jogo aqui puramente um problema formal de competência, porquanto a dúvida repercute outrossim na eficiência esperada de um modelo de provimentos obrigatórios.
A leitura isolada do artigo 489, §1º, VI, do CPC-2015 sugere que a ferramenta estaria a disposição de qualquer juiz ou tribunal. Afinal, o texto normativo surge livre e solto impondo que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” À primeira vista, tem-se a impressão que o sistema processual fez mesmo opção por manter pujante a criatividade dos juízes. No imorredouro puxar de cabelos entre estabilidade das decisões judiciais e mobilidade do Direito pela via jurisprudencial, teria a última outra vez logrado êxito.
No entanto, uma reflexão mais penetrante recomenda não ser esta a melhor resposta exegética. E a razão principal está encimada sobre a tutela da isonomia e segurança jurídica, base justificadora da adoção de um modelo de provimentos obrigatórios, sintetizada na indagação, já clássica, formulada pelo mestre lusitano, José Alberto dos Reis: “que importa a lei ser igual para todos se for aplicada de modo diferente a casos análogos?”[4]
É fato o ímpeto do brasileiro pela valorização quase sem peias da criatividade dos juízes, a prevalecer continuamente sobre a estabilidade das decisões judiciais.[5] Com precisão cirúrgica, Eduardo José da Fonseca Costa leciona que falta a boa parte dos tribunais brasileiros a chamada “reverência aos antecessores”: cada novo juiz que acende ao tribunal quer imprimir ali sua visão particular de mundo, não raro destoando de entendimentos majoritários pacificados há décadas, um personalismo individualista absolutamente incompatível com o ideário republicano.[6]Nutrimos àquele fetiche pelo avanço, pela criação, pela mudança, cuja contrapartida denuncia perigoso desdém à história institucional que haveria de caracterizar as construções jurisprudenciais.
Dito isso, basta um passo para se perceber que o alargamento demasiado do manejo da superação, colocando-a a disposição de todo e qualquer juiz ou tribunal, tem real potencialidade de provocar a sua própria banalização, a ponto de fazer da regra a exceção e vice-versa. É dizer, e sem desprezar a dimensão hermenêutica,[7] a regra, que é o respeito aos provimentos obrigatórios, tornar-se-ia exceção, ao passo que a utilização do overruling, algo excepcional, verter-se-ia em regra. Ao fim e ao cabo, nada menos que esquizofrenia jurisprudencial ao quadrado!
A aspiração hodierna é alterar o panorama de imprevisibilidade que distingue a prática judiciária brasileira, com decisões em sentidos múltiplos para casos semelhantes. Não por acaso, o CPC/15 inflige aos tribunais os deveres de uniformizar sua jurisprudência, mantê-la estável, íntegra e coerente (CPC/15, artigo 926). Contudo, o tiro decerto sairá pela culatra se o modus operandi da superação caracterizar-se pelo descomedimento. Seria dar com uma mão e tirar com a outra.[8]
Portanto, a melhor solução, afinadíssima à lógica do empreendimento, está em excepcionar a técnica para que dela lance mão apenas o órgão judicial responsável pela produção do provimento obrigatório cuja superação se anseia atingir.[9] É apostar numa prática judicial resistente a viradas de ocasião, que se não chega a engessar o Direito, impõe ao menos que o seu avanço se dê a partir de marchas mais lentas, em respeito à tradição e num agir segundo o qual se exija superior esforço argumentativo que justifique a guinada de entendimento.
Outra questão de primeira ordem está atrelada à eterna vigília contra rasgos autoritários perturbadores do esforço contínuo e sempre inacabado de construção do Estado Democrático de Direito.[10] É habitual o uso de argumentos extra-normativos, comumente empregados na seara parlamentar, como fundamento de decisões judiciais que superam provimentos obrigatórios. Por exemplo, aduz-se que o provimento “não pegou” (sociológico), que é injusto (moral), excessivamente protecionista ou libertário (ideológico). Contudo, em que medida argumentos de tal jaez (de política) se mostram legítimos para justificar a amputação peremptória de um provimento obrigatório da ordem jurídica?
São dois os caminhos possíveis: ou o órgão judicial faz uso incoercível e irrestrito de argumentos de política, ou apenas serve-se deles de forma setorial, como reforço a argumentos de princípio (=fundados na ordem jurídica).[11] A primeira opção indicaria que tribunais operam no modo overruling de maneira atípica, na condição de legisladores, fazendo escolhas decisórias a partir de raciocínios pragmáticos e finalísticos. Como é evidente, ter-se-ia nessa hipótese o incremento da discricionariedade por uma superação reduzida a espécie de picareta normativizada, hábil para abrir fendas enormes na ordem jurídica através das quais elementos exógenos ganhariam passagem incontinente para um mundo que não é seu e no qual não são bem-vindos.[12] Resultado: recrudescimento de decisionismos e arbitrariedades judiciais a engordar o fenômeno dacanibalização do Direito.[13]
Sem dúvida, uma tal solução encontra entrave intransponível na Constituição. É verdade que o Judiciário, vez por outra, funciona atipicamente praticando atos próprios dos Poderes Executivo e Legislativo, mas o faz somente quando autorizado pelo constituinte. E como não há permissivo constitucional validando tribunais a metamorfosearem-se de legisladores no exercício do overruling, é dever deles atuar nos limites da racionalidade legal, sob pena de patente atentado contra a separação de poderes. Trocando em miúdos: criando ou superando provimentos obrigatórios, o órgão judicial desempenha seu mister manietado à responsabilidade política que distingue sua função, atento à circunstância de que deve reverência à autoridade do Direito, empregando argumentos de política no máximo como reforço aos argumentos de princípio.[14]
Evoluir é aprimorar àquilo que tem se mostrado apropriado no âmbito do sistema normativo e recusar a subsistência do que é ruim. Partes podres são decepadas e energia é dedicada à implementação de estratégias orientadas a inverter aquele estado de coisas cujo relevo está sobretudo na nocividade de suas consequências. Mas todo cuidado é pouco para que os objetivos pretendidos, e o próprio alicerce que a tudo sustenta, não escapem da lembrança, pois do contrário agiremos como a mãe que deixa a torneira aberta com o bebê dentro da banheira para ir cuidar do jantar. Uma negligência tamanha pode custar muito caro…
Autor: Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).