A tortura policial no Brasil e o Poder Judiciário

É óbvio que a polícia é incapaz de apurar crimes praticados pelos próprios policiais. Diante disso, a quem atribuir tal tarefa se o Judiciário se mantém reticente no reconhecimento de que o poder de investigar é inerente ao poder de fiscalizar?

Renato Barão Varalda

Nos dias 30/11 e 1º/12 de 2000 foi realizado, no Superior Tribunal de Justiça, o Seminário Nacional sobre “A Eficácia da Lei de Tortura”, o qual contou com a participação de inúmeros Procuradores-Gerais de Justiça, Ouvidores da Polícia Civil, Médico-legista, Perito Criminal, Professores de Direitos Humanos e de Direito Penal (Bristol – Inglaterra), membro da Associação de Prevenção de Tortura, Diretor do Penal Reform International – Costa Rica , Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Assessor da ONU para Direitos Humanos, entre outros.
A par disso, vale salientar que há no Brasil normas suficientes de proteção às vítimas e de punição do crime de tortura, a saber: Lei 9.807/99 – organização e manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas; Lei 9.4555/97 – tipificação do crime de tortura; Decreto 40 de 15/2/91 – convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cíveis, desumanos e degradantes – ONU; Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura – ratificada pelo Brasil em 20/7/89; princípios constitucionais de proteção aos direitos humanos; art. 1º, III; dignidade da pessoa humana , art. 4º – II; prevalência dos direitos humanos etc.
Contudo, indo na contramão dos efetivos mecanismos de proteção aos direitos humanos, recente decisão de primeiro grau no Distrito Federal, a qual condenou agentes de polícia a três anos de reclusão e à perda da função com base na Lei 9.455/977, foi reformada (2ª Turma Criminal, HC 2000.00.2.005055-6, j. 23.11.00), nulificando os atos processuais a partir do relatório final da autoridade policial, haja vista a participação do Ministério Público na fase inquisitorial. Conforme bem colocado pela juíza federal do Estado do Rio de Janeiro Simone Schreiber, no Seminário acima mencionado, “apesar de existência de um sistema integrado de proteção de direitos humanos, com normas e mecanismos de proteção de direito interno e de direito internacional, ao examinarmos os efeitos concretos de atuação de tais aparatos de proteção, a realidade é extremamente preocupante”
Com efeito, as Promotorias de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial recebem toda semana notitia criminis acerca de torturas e abusos de autoridades praticados justamente pelos agentes responsáveis pela proteção dos direitos humanos. Nesse sentido, vale continuar destacando o entendimento da referida magistrada, verbis: “apesar dos raros casos de apuração de tortura, para responsabilização civil e criminal do agente, partiremos da premissa de que há tortura no Brasil. E há em grande escala, ou seja, tratando especificamente da tortura do preso pelos agentes responsáveis pela investigação (polícia judiciária) e pelo encarceramento (agentes administrativos dentro das penitenciárias). Podemos afirmar que há prática corriqueira de submeter o preso a sofrimentos físicos e morais, a tratamento cruel e degradante, pelos mais diversos motivos, desde a investigação, até a contenção da massa carcerária, como mecanismo de imposição de disciplina, considerando-se um sistema penitenciário que mantém os presos em uma situação limite, insuportável, reduzindo-os a uma condição abaixo do limite da dignidade inerente à condição humana, onde a utilização da violência é mecanismo tolerado de controle”. Grifo nosso
O que fazer o Ministério Público, órgão com atribuições constitucionais de controle externo da atividade policial e o dominus litis da ação penal pública, ao se deparar com um inquérito policial pouco instruído, pouco apurado, até mesmo próximo à prescrição da pretensão punitiva, e as vítimas e as testemunhas presentes no gabinete do Promotor de Justiça? Colher as declarações visando à formação da opinio delicti ou ignorar a presença dos ofendidos e testemunhas e arquivar o inquérito policial omisso na apuração? Baixar o inquérito policial para que os próprios investigados “cumpram” as diligências requisitadas? Devem os torturados se calar, já que a grande maioria das 241 denúncias por crime de tortura envolve policiais civis e militares?
Com propriedade expõe o juiz paulista Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior , em artigo intitulado “O judiciário brasileiro em face dos direitos humanos”: “ao invés da adoção de medidas de caráter social, que busquem resgatar uma significativa parcela da população que hoje ostenta a condição de excluída, considerados excluídos aqueles que não têm acesso aos mais básicos direitos decorrentes de sua condição humana e de sua condição de cidadão, é adotada uma política criminal meramente simbólica, com a aprovação de novas leis repressivas, ou a notícia de novas políticas de segurança com tônica em espetaculares, mas absolutamente tópicas e esporádicas, ações repressivas”. Grifo nosso
Há julgados resguardando ao Ministério Público suas legítimas atribuições de investigação criminal e controle externo da atividade policial, contemporizando à referida Instituição efetivos meios de proteção aos direitos humanos (sobretudo, a investigação dos crimes, quando a apuração é falha ou omissa). É patente que os atos de investigação destinados à elucidação de crimes não são exclusivos da Polícia Judiciária e que tal prática não inviabiliza o Promotor de Justiça de promover a denúncia, por tratar-se de uma proposta de demonstração, a qual pode ser contrariado pelo acusado, pois a imparcialidade está no ato de julgar.
A partir da Constituição de 1988, a jurisprudência dominante dos Tribunais reconheceu ao Ministério Público a atribuição de oferecer peças acusatórias, com base nos elementos informativos de que dispuser, inclusive os coletados nos procedimentos administrativos internos. Ora, negar posicionamento contrário é negar ao Ministério Público a defesa dos direitos humanos.
Ressalte-se, por outro lado, que o crime de tortura é praticado em fundo de quintal e de delegacias, em porões, o que inviabiliza a descrição da conduta típica de cada co-autor. Como bem exposto pela Procuradora-Geral de Justiça do Estado de Goiás e Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça Ivana Farina, no Seminário Nacional retrodescrito, o crime de tortura é praticado às surdinas, impossibilitando uma peça acusatória com a narração de todos as circunstâncias, o meio, motivos e maneira empregados por cada co-autor.
É suficiente, pois, a qualificação dos autores e a exposição do fato criminoso, prescindindo-se da descrição da ação ou omissão específica de cada co-autor, haja vista o tormento físico e mental da vítima no momento dos fatos, dificultando um relato preciso das condutas. Nesse caminho, os Tribunais já posicionaram pela dispensabilidade da individualização da conduta específica de cada agente nos casos de autoria conjunta ou coletiva, em especial, nos delitos societários .
Ressalte-se, também, que se deve atribuir à palavra da vítima a viga mestre da estrutura probatória (entendimento já pacífico nos crimes contra os costumes), haja vista a existência de técnicas de tortura que não deixam vestígios e a prática ocorrer às surdinas, conforme acima exposto.
A tortura no Brasil é uma herança cultural ainda arraigada na sociedade, cabendo aos operadores do direito uma formação do efetivo respeito aos direitos humanos, seja no melhor aparato do Estado na obtenção da prova (confissão é tão-somente um dos meios), seja na aplicação das normas de proteção relativa à vedação do crime de tortura, seja no reconhecimento do Ministério Público como órgão de proteção dos direitos humanos. É óbvio que a polícia é incapaz de apurar crimes praticados pelos próprios policiais. Diante disso, a quem atribuir tal tarefa se o Judiciário se mantém reticente no reconhecimento, de uma vez por todas, de que o poder de investigar é inerente ao poder de fiscalizar?

Renato Barão Varalda – Promotor de Justiça no Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial no Distrito Federal e pós-graduando em Direitos Humanos pela FESMPDFT/UnB/University of Essex

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