A repercussão da decisão da Suprema Corte americana sobre o “copa”
A melhor solução contra a disseminação de pornografia na Internet está na edição de leis específicas que proíbam esse tipo de conteúdo ou encontra-se no uso de ferramentas tecnológicas à disposição dos pais de crianças? Essa é a questão que atualmente divide opiniões de sociólogos, educadores, políticos, assistentes sociais, juristas e todo o espectro de profissionais que, de uma maneira ou de outra, estão envolvidos e se preocupam com o acesso indiscriminado à pornografia por crianças, facilitado pelo advento da Internet, que se tornou um canal privilegiado e praticamente sem controle para a divulgação de material dessa natureza. Mais recentemente, esse tema foi objeto de discussão entre os juízes da Suprema Corte dos EUA, por ocasião do julgamento (em sessão do dia 29 de junho deste ano) de um recurso1 em torno da constitucionalidade de uma lei editada pelo Congresso daquele país, o Child Online Protection Act (conhecida simplesmente pela abreviatura COPA), que se propõe a impedir a exposição de crianças a material de conteúdo sexual explícito na Internet.
A referida Lei, em síntese, estabeleceu a imposição de pena (multa até 50 mil dólares e seis meses de prisão)2 para qualquer operador de website comercial que coloque conteúdo considerado “prejudicial a menores”3, a não ser que comprove que restringiu o acesso a esse tipo de material por meio da utilização de sistemas de verificação de idade4, que pode ser a exigência do número do cartão de crédito do internauta5, de uma conta bancária, um código de acesso ou qualquer outro sistema digital6.
O COPA foi editado como resposta do Congresso ao julgamento de uma lei anterior, declarada inconstitucional pela Suprema Corte7. O Communications Decency Act (CDA)8, assinada pelo Presidente Clinton em 1996, foi a primeira tentativa do Congresso americano de tornar a Internet um ambiente mais seguro para crianças, através da proibição da disseminação de material “obsceno” e “indecente”9. A Suprema Corte julgou que o CDA violava o princípio constitucional da liberdade de expressão (freedom of speech), uma vez que a vaguidade dos conceitos de obscenidade e indecência representava uma limitação do conteúdo do discurso permitido na Internet, forçando os provedores a vetar uma imensa massa de material de valor educacional, artístico, médico e literário. Apenas um ano depois desse primeiro julgamento10, o Congresso norte-americano editou o COPA, assinado pelo Presidente Bill Clinton em 1998. De modo a não incorrer no mesmo vício de inconstitucionalidade da lei antecessora, os congressistas tiveram o cuidado de colocar no texto do COPA o conceito de material “prejudicial a menores” como sendo aquele (em linhas gerais) que uma pessoa média possa considerar como apelativo a interesses prurientes, por descrever um ato sexual ou exibir imagens de órgãos sexuais e que, considerado como um todo, carece de sério valor literário, artístico, político ou científico11.
Mesmo essa nova Lei (o COPA) também foi contestada em termos de violação à liberdade de expressão do pensamento, ao argumento de que não foi estreitamente desenhada de modo a atender ao interesse público de proteção às crianças e que existem outros meios menos restritivos de se alcançar esse objetivo. De acordo com a doutrina constitucional norte-americana, qualquer restrição ao discurso (entenda-se: à liberdade de expressão) baseada em limitação do conteúdo deve atender a um “relevante interesse público”12 e o Governo tem o ônus de provar que não existem outras alternativas igualmente eficazes13. A razão lógica é assegurar que o discurso não seja restringido mais do que o necessário para a realização do interesse público representado em lei editada pelo Congresso. Uma corte distrital14 concedeu decisão preliminar, suspendendo a execução do COPA, por entender que não era estreitamente desenhada para cumprir o interesse público pretendi15 do e que existem meios alternativos tão eficazes e menos restritivos de prevenir as crianças de usar a Internet para ter acesso a material pornográfico, particularmente o uso de programas e tecnologias de bloqueio e filtragem (os conhecidos softwares de filtros para Internet). Essa decisão foi mantida por um tribunal federal de apelações e o Governo dela recorreu para a Suprema Corte.
No julgamento do dia 29 de junho, a Suprema Corte considerou (por maioria de votos, 5×4) que não dispunha de meios suficientes para avaliar a eficácia da tecnologia de filtros para programas de navegação na Internet e determinou que o processo na Corte inferior seguisse para instrução. Falando em nome da maioria dos integrantes da Corte, o Juiz Anthony M. Kennedy expressou sua opinião de que nos autos não havia elementos suficientes que refletissem o estado atual do desenvolvimento da tecnologia de filtros16. Já se haviam passado cinco anos desde que a Corte distrital colhera os primeiros pareceres e depoimentos de especialistas sobre a matéria (quando examinou o pedido liminar), daí porque os juízes da Suprema Corte decidiram ser mais conveniente manter a decisão preliminar e devolver o caso à instância inferior, onde as partes terão oportunidade de atualizar e suplementar os seus elementos de prova, de forma a revelar o grau de desenvolvimento atual da tecnologia de filtros para a Internet17.
Embora tendo devolvido a questão à instância inferior, para nova colheita de provas técnicas quanto à atualidade da tecnologia de filtros para Internet, a Corte Suprema parece já ter deixado assente sua inclinação pela preferência a esse meio alternativo (técnico) de restrição à pornografia. Em seu voto condutor, o Justice Kennedy repetiu as conclusões da Corte distrital no sentido de que essa tecnologia é menos restritiva e mais eficiente (no que tange à proteção de menores contra material impróprio) do que a proibição de conteúdo por via legal. Ele explicou que a solução dos filtros permite que adultos tenham acesso a material pornográfico sem a necessidade de terem de se identificar perante um provedor ou operador de website. Os pais que optarem por ter acesso a material dessa natureza só têm de desligar os filtros no momento em que eles próprios navegam na Internet. Além disso, a Lei (o COPA) somente teria possibilidade de penalizar operadores de websites residentes nos EUA, enquanto os filtros permitem bloquear sites de pornografia baseados no exterior. Segundo pesquisa lida por ele, 40% do material pornográfico ou considerado impróprio para crianças provêm de sites operados do exterior. Anthony Kennedy ressaltou que, mesmo sendo a Lei aprovada, os administradores de websites pornográficos poderiam mover suas operações para fora do território dos EUA ou se registrar em provedores de outros países. Ele destacou ainda dados existentes no processo que comprovam que os filtros são mais eficazes do que sistemas de verificação de idade (implantados nas páginas de entrada dos websites), pois estes últimos estão sujeitos à burla e mesmo alguns menores de idade possuem cartão de crédito18. Finalmente, concluiu, os filtros podem ser aplicados a qualquer forma de comunicação na Internet, incluindo os servidores de e-mail, e não somente na Web (a World Wide Web), único canal da Internet sobre o qual a Lei teria efeito.
Os softwares e filtros para a Internet, obviamente, não representam uma solução perfeita para o problema da proteção de crianças contra pornografia. Eles podem bloquear material que não seja impróprio como podem falhar em bloquear conteúdo efetivamente pornográfico. Quaisquer que sejam, no entanto, as deficiências das soluções técnicas de filtragem, é quase certo que elas venham a prevalecer como opção menos gravosa à liberdade de expressão. O processo das tentativas de controle da informação que circulam na rede mundial deixa transparecer que entra em nova fase. Se a primeira foi marcada pela iniciativa legislativa dos governos, com a edição de leis repressivas, censurando certos tipos de conteúdo (como aconteceu com o CDA e com o COPA), a segunda é caracterizada pela utilização de programas de computadores e dispositivos tecnológicos, os conhecidos filtros de conteúdo, que permitem bloquear o acesso a certos tipos de informações indesejadas, pelos próprios destinatários e de forma voluntária. Limitações legais à liberdade de expressão são presumivelmente inválidas. Qualquer lei que pretenda suprimir da Internet uma grande quantidade de conteúdo que os adultos têm o direito constitucional de receber e divulgar corre o risco de ser tachada de inconstitucional, por ferir o princípio da liberdade de expressão. Como disse o Juiz Kennedy, “proibições relativas ao conteúdo, impostas com base em severas penalidades criminais, têm o constante potencial de ser uma força repressiva nas vidas e pensamentos de um povo livre”19.
Seria importante que os nossos próprios legisladores retirassem as mesmas conclusões dos julgamentos da Suprema Corte norte-americana. Afinal, nossa Carta Constitucional também consagra o princípio da liberdade de expressão (art. 5o, IV, VI, VII, IX e XIV, e art. 220). Na Câmara dos Deputados tramita uma série de projetos de lei com objetivo similar ao do CDA e do COPA, buscando a proteção das crianças pela mesma via da criminalização da transmissão de material obsceno na Internet20.
A bem da verdade, esses julgamentos parecem já ter ecoado por aqui. No dia 26 de maio deste ano, ao oferecer parecer ao Projeto de Lei n. 1.070, de 1995, de autoria do Deputado Ildemar Kussler (PSDB/RO), que dispõe sobre crimes oriundos da divulgação de material pornográfico através de computadores – ao qual foram apensados todos os outros projetos que tratam sobre o mesmo tema -, o Deputado José Mendonça Bezerra (PFL/PE), relator perante a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), opinou pela aprovação do projeto com substitutivo em que sugere apenas a obrigatoriedade da utilização de sistemas de verificação de idade nos sites destinados ao público adulto21, excluindo a opção da criminalização de certos conteúdos. Na justificativa do substitutivo, o relator reconhece que a tipificação do crime de transmissão de material obsceno é “regra de difícil aplicação, uma vez que não é consensual a definição do que seja obscenidade”22. O relator também reconhece que a proposta original corria o risco de violar o princípio da liberdade de expressão.
Projetos mais recentes estão até mais atualizados23, pois apenas impõem aos fornecedores de sistemas operacionais e de programas de navegação e aos provedores de Internet a obrigação de colocar, à disposição dos usuários, programa (software) que permite o controle do acesso de crianças a endereços de sítios na rede que ofereçam material inadequado à sua faixa etária. Trata-se, portanto, de política legislativa destinada a incentivar a disseminação dos filtros de conteúdo para a Internet24, demonstrando que, ao contrário do que se pensa, nossos legisladores já estão atentos para a necessidade de garantir a proteção das crianças contra material impróprio na Internet, sem deixar que se sacrifique por completo o valor constitucional da liberdade de expressão dos adultos. É esse tipo de equilíbrio que a sociedade espera deles.
Notas:
1 O caso Ashcroft v. American Civil Liberties Union.
2 A Lei altera o 47 U.S.C § 231.
3 A expressão, em inglês, é harmful to minors. A lei considera menor a pessoa com menos de 17 anos.
4 A Lei na verdade estabelece uma affirmative defense, ou seja, impõe ao acusado o dever de provar que restringiu o acesso ao conteúdo do site.
5 A pressuposição dos legisladores é que, por meio da exigência do fornecimento do número do cartão de crédito, o operador do site tem como verificar se o internauta que pretende ter acesso é menor de idade.
6 § 231(c)(1).
7 No julgamento do caso Reno v. American Civil Liberties Union, 521 U. S. 844 (1997).
8 Que poderia ser traduzida como “Lei da Moralização das Comunicações”, numa tradução não literal.
9 A Lei responsabilizava os provedores de acesso à Internet em cujos sistemas fosse encontrado material considerado obsceno, com a aplicação de multas de até 250 mil dólares, e dois anos de prisão.
10 Que ocorreu em 1997.
11 Material “harmful to minors” é definido como (no original, em inglês): “any communication, picture, image, graphic image file, article, recording, writing, or other matter of any kind that is obscene or that:
(A) the average person, applying contemporary community standards, would find, taking the material as a whole and with respect to minors, is designed to appeal to, or is designed to pander to, the prurient interest;
(B) depicts, describes, or represents, in a manner patently offensive with respect to minors, an actual or simulated sexual act or sexual contact, an actual or simulated normal or perverted sexual act, or a lewd exhibition of the genitals or post-pubescent female breast; and
(C) taken as a whole, lacks serious literary, artistic, political, or scientific value for minors.” § 231(e)(6).
12 A expressão em inglês é compelling governmental interest.
13 Em precedente citado no julgamento (o caso United States v. Play-boy Entertainment Group, Inc., 529 U. S. 803), que também envolvia uma restrição a conteúdo por via legal com o objetivo de proteger crianças do acesso a material prejudicial, ficou assente na jurisprudência da Corte Suprema essa orientação, no sentido de que, não tendo o Governo provado que outros meios alternativos não são tão eficazes, a limitação ao discurso não se compadece com a garantia constitucional da liberdade de expressão (free speech), enclausurada na 1ª Emenda.
14 Corte Federal Distrital da Filadélfia (United States District Court for the Eastern District of Pennsylvania).
15 Corte de Apelações para o 3º Circuito (United States Court of Appeals for the Third Circuit).
16 Esse problema da não-atualização dos registros e informes processuais tem-se verificado quase sempre que uma corte tem de julgar problema envolvendo a Internet, como disse o próprio Juiz Kennedy, pois “a rede se desenvolve em passos rápidos”.
17 Os juízes também ressaltaram que seguindo o processo para instrução regular, a Corte distrital poderá analisar a circunstância adicional de que, nesse espaço de cinco anos, o Congresso passou duas novas leis que podem ser consideradas como alternativas menos restritivas ao COPA – uma que proíbe nomes de domínio enganosos (misleading domain names), pretendendo com isso combater a prática de registro e estabelecimento de sites com nomes ligeiramente parecidos com sites tradicionais e conhecidos, mas que na verdade contêm material pornográfico, e outra que cria um domínio de segundo nível (kids), para o qual só se aceitam registros de sites de conteúdo adequado ao desenvolvimento de crianças.
18 Um relatório apresentado por uma Comissão perante o Congresso americano (em outubro de 2000), e citado pelo Justice Kennedy, atribuiu um percentual de eficácia de 7.4 aos filtros instalados em servidores, 6.5 aos filtros instalados em computadores pessoais, 5.9 aos sistemas digitais de verificação de idade e 5.5 aos sistemas de verificação de cartão de crédito.
19 “Content-based prohibitions, enforced by severe criminal penalties, have the constant potential to be a repressive force in the lives and thoughts of a free people”.
20 Podem ser citados os seguintes projetos, que dispõem sobre o tema:
Projeto de Lei n. 1.654, de 1996, de autoria do Deputado Herculano Anghinetti, que proíbe a fabricação, importação e comercialização de jogos eletrônicos ou programas com material obsceno (tem abordagem similar ao da proposição geral de combater a pornografia vedando a divulgação de material obsceno);
Projeto de Lei n. 3.268, de 1997, de autoria do Deputado Agnelo Queiroz (PCdoB/DF), que proíbe o acesso a sítios e a veiculação de mensagens eletrônicas ou programas de caráter obsceno; Projeto de Lei n. 3.498, de 1997, do Deputado Silas Brasileiro (PMDB-MG), que tipifica o crime de veicular material pornográfico pela Internet;
Projeto de Lei n. 3.258, de 1997, do Deputado Osmânio Pereira (PSDB-MG), que dispõe sobre crimes perpetrados por meio de redes de informação, tipificando a divulgação pela Internet de material pornográfico, instruções para fabricação de bombas caseiras e textos que incitam e facilitam o acesso a drogas ilegais.
Todos esses projetos foram apensados ao Projeto de Lei n. 1.070, de 1995, do Deputado Ildemar Kussler (PSDB/RO), que dispõe sobre crimes oriundos da divulgação de material pornográfico através de computadores.
21 O art. 2º do Substitutivo dá nova redação à Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), acrescentado o art. 79-A, que nos §§ 1º e 2º prevêem a obrigatoriedade aos operadores de sites de conteúdo destinado ao público adulto de adotar sistemas de verificação de idade.
22 Além disso, o Substitutivo impõe que os sites destinados ao público adulto contenham aviso a respeito da classificação do seu conteúdo.
23 Projeto de Lei n. 2,231, de 1999, do Deputado Carlos Elias (PTB/ES), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de controle do acesso de crianças e adolescentes a redes de computadores destinados ao uso do público; Projeto de Lei n. 4.426, de 2001, da Deputada Ana Corso (PT/RS), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de controle do acesso de crianças e adolescentes a redes de computadores destinadas ao uso do público; Projeto de Lei n. 1.264, de 2003, do Deputado Leonardo Monteiro (PT/MG), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de controle do acesso de crianças e adolescentes a redes de computadores destinadas ao uso do público; Projeto de Lei n. 2.842, de 2003, do Deputado Takayama (PMDB/PR), que modifica a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, regulando o acesso de crianças e adolescentes a provedores de informações na Internet.
24 Diversos programas já disponíveis no mercado (Surfwatch, Cybernanny, Cyberpatrol e outros) oferecem essa funcionalidade.
* Demócrito Ramos Reinaldo Filho
Juiz integrante do Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Juiz Auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça de Pernambuco, Professor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco e da Faculdade de Direito de Caruaru.